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As novas tecnologias como elemento de avanço social e de urgente domínio por sua inexorável revolução nas

condutas humanas

1.

– Sonhei, portanto, mudar de casta e [...] entrei certa manhã

numa agência e comprei a máquina que me mudaria a situação social. Um Ford. (p. 11 – grifos nossos).

O protagonista da história expõe o que para Lobato deveria ser um elemento latente nas classes populares: descontentamento com sua condição de despossuído.

Aqui, ter um “Ford” está muito além da aquisição de um veículo. Para o autor, o acesso a esta tecnologia “mudaria a situação social” uma vez que ao invés de discursos vazio e sonhos que poderiam não resultar em algo, a personagem materializaria a pretensão e adquire para si um bem

Monteiro Lobato, a literatura, o modelo econômico-social... || || 45 que no imaginário coletivo o habilita a se inserir na classe de “possuidores”. Por certo que ao longo da história Lobato apresenta as fragilidades na manutenção do bem adquirido por aquele que é despossuído de condições para mantê-lo, tendo em vista as imprevisibilidades da vida (como acidentes, por exemplo), porém não tece críticas maiores por este dado, uma vez que o protagonista é “perdoado” pela atitude ante a insatisfação de sua realidade.

Também se justifica a mudança de condição social pelo desejo que a personagem tem em acessar um bem que é produto da mais alta tecnologia de seu tempo: um “Ford”. Ter o conhecimento do que há de mais avançado no campo tecnológico e apropriar-se de um exemplar significa não só riqueza material, mas o reconhecimento e a sapiência de informações privilegiadas que nos instala em meio a revolução industrial e que acarreta a projeção da nação em âmbito internacional. Esta parece ser a lógica com que o autor trata a si mesmo. Possuir sonhos grandiloquentes, porém materializáveis, mas que desmoronam pelas contingências objetivas da sociedade e seus determinantes.

Da mesma forma, destacamos o reconhecimento e os acessos do autor junto às novidades tecnológicas de seu tempo. A grandiosidade tecno-científica experienciada nos novos tempos de revolução científica será para Lobato a grande alavanca para superação do atraso das nações periféricas.

2.

– [...] estamos na Determinação, que é o que os filósofos chamam

presente... o futuro é a Pré-determinação. [...]. O professor Benson

expô-la com luminosa clareza mostrou-me o maravilhoso do determinismo [...] e da sua comparação do ‘2 + 2 = 4’. [...] ao escrever o ‘2 + 2’, vê imediatamente o futuro 4. (p. 29).

Ao expor a lógica de seu invento, a personagem (Dr. Benson) situa a existência planetária a partir do paradigma da determinação. Como um cálculo matemático absoluto, a existência seria concebida por determinantes objetivos que deságuam em um futuro também objetivo e situado pelas relações anteriores.

Este tipo de raciocínio foi duramente criticado por Marx na análise aos princípios fundantes do materialismo científico. Feuerbach – principal representante desta concepção – descrevia um materialismo que não reconhece o processo histórico dos determinantes existentes:

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A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias – o de Feuerbach incluído – é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto [des Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não como atividade sensível humana, práxis, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo – mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos objetos do pensamento; mas não toma a própria atividade humana como atividade objetiva [Gegenständliche

Tätigkeit]. (MARX, 1982).

E a realidade que nos foge do controle?

– Mas a leitura das linhas da mão? A quiromante que na Martinica predisse a Josefina, então burguesinha crioula que seria imperatriz da França?

– Aí o acaso é diverso, como no de todas as profecias compro- vadas. Havemos de conceber certas organizações possuidoras duma faculdade pré-determinante. E não me custa admitir isso, já que construí o pré-determinador. (p. 32, grifos no original).

Assim como nas aventuras do Barão de Munchäusen, quando sem saída a personagem resolve o conflito puxando o cordão de suas próprias botas e, assim, sair ileso do pântano2 (Popper apud LÖWY, 2000,

p. 57), nesta passagem, o professor Benson também “puxa seus próprios cadarços” para não enfrentar o que lhe foge à compreensão.

O pensamento a-histórico reproduz de forma “mágica” a existência objetiva das coisas do mundo como se elas assim sempre estivessem disponíveis. Da mesma forma, o elo incompreensível dos elementos que não podem ser explicados pela racionalidade, porquanto se pretendem puramente objetivos, são desdenhados como um “acaso diverso” – e sobre ele nos basta a contemplação do que existe mas que não regula a vida. Objetivamente, seria o “desvio padrão” cuja existência “toleramos” em qualquer investigação.

2 Em outras traduções podemos encontrar a mesma passagem com a personagem puxando

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o enriquecimento dos sujeitos que se aliançam a esta

apropriação tecnológica e de conhecimentos de ponta

– o conhecimento mudando a história das pessoas?

1.

[...] a paixão da carreira grelara em mim e, depois de um mês já não contente com a velocidade desenvolvida por aquele carro, pus-me a sonhar a aquisição de outro, que chispasse cem quilômetros por hora. (p. 11).

Lobato parece nos lembrar que o estado de insatisfação é uma condição humana. Afora a insatisfação que pode crescer apenas com a usura do consumo, tal estado parece (em Lobato) muito mais próximo de uma pungente necessidade no desbravamento de novas possibilidades e novas tecnologias, o que acarreta maiores e contínuos investimentos do Estado no desenvolvimento da produção e da ciência.

2.

– Os efeitos dessa compra foram decisivos na minha vida. Ao verem-me chegar ao escritório fonfonando, os patrões abriram as maiores bocas que ainda lhes vi e vacilaram entre porem-me no olho da rua ou dobrarem-me o ordenado. Por fim dobraram-me o ordenado, quando demonstrei o quanto lhes aumentaria o renome da firma terem um auxiliar possuidor de automóvel próprio (p. 11). Nesta passagem, Lobato orienta com sucesso a escolha do protago- nista na compra de seu automóvel “Ford” e o “premia” com a receptividade social positiva e o aumento de salário, ou seja, o autor reforça o ideal de mérito individual para o insatisfeito com sua classe e condições materiais.

3.

– [...]. Não caibo em mim de gosto ao ver o homem que podia ser dono do mundo, se quisesse, tratar-me como se eu fora alguém. – Não se espante disso. Meu pai é coerente com as suas idéias. Todos para ele somos meras vibrações do éter. (p. 42).

Neste trecho, o autor traz um clássico conceito de cientista, como aquele que, em nome de sua ciência, seus estudos e teorias, encontra-se neutro e imparcial diante das alegorias do mundo da vida (LÖWY, 2000, p. 19). Esta particularidade persegue falsamente um maior rigor científico ao elemento descoberto. Além disso, a ideia de que os seres humanos se

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reduziriam a algo como um “éter em vibração” é um conceito conveniente para as transformações da produção originais à Revolução Industrial e toda a sorte de avanços tecnológicos do início do século XX.

o reconhecimento de Lobato quanto à condição do