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Considerações finais: o fetiche e a dignidade da perversão

Muito embora a perversão não possa nunca ser aceita como solução política (aliás, nenhuma “solução política final” é que não pode deixar de ser perversa), ela, no caso da “Crônica da Casa Assassinada”, enquanto um apego incondicional, saturador e destrutivo a um objeto, fazendo com que não haja nenhuma separação entre ele e o sujeito, é capaz de trazer algumas conclusões interessantes e que não podem passar despercebidas. Uma conduta perversa que tanto é o pano de fundo da moralidade de uma família tradicional como das atitudes de fuga que buscam toda a destruição desse patrimônio não pode ser simplesmente compreendida como inadequada, leviana ou “pouco crítica”. O livro, ao contrário, convida a pensar esses estados místicos de existência, que anulam o sujeito dessubjetivando-o, não vêm necessariamente em vão. Isto porque produzem restos.

O perverso pode se consumir em sua experiência limite e até vir a apodrecer abaixo de sete palmos de terra por isso (como vai acontecer com todo mundo), mas, por muitas vezes, ele deixa um fetiche, uma sobra que indica que ali houve uma dessubjetivação. É interessante voltar à figura de Timóteo, aquele que se travestia como forma de se contrapor à família. Ele

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utiliza as roupas da falecida mãe, mas, assim o fazendo, fica trancafiado no quarto, como se essa lei própria que ele se dá o saturasse e o consumisse.

Houve tempo – disse ele quase de costas para mim – houve tempo em que achei que devia seguir o caminho de todo o mundo. Era criminoso, era insensato seguir uma lei própria. A lei era um domínio comum a que não podíamos nos subtrair. Apertava-me em gravatas, exercitava-me em conversas banais, imaginava-me igual aos outros. Até o dia em que senti que não me era possível continuar: por que seguir leis comuns se eu não era comum, por que fingir-me igual aos outros, se era totalmente diferente? Ah, Betty, não veja em mim, nas minhas roupas, senão uma alegoria: quero erguer para os outros uma imagem de coragem que não tive. Passeio-me tal como quero, ataviado e livre, mas ai de mim, é dentro de uma jaula que o faço. É esta a única liberdade que possuímos integral: a de sermos monstros para nós mesmos. (CARDOSO, 1996, p. 57).

Na impossibilidade de uma reação à sua condição, Timóteo, portanto, faz um monstro de si mesmo e procura na repetição de seu proceder uma esfera mínima de liberdade. Curiosamente, tudo o que consegue é ficar cada vez mais cativo em seu próprio quarto, chegando quase ao absurdo de se tornar um objeto completamente integrado ao lar. Não produzia nada e não modificava nada, apenas existia para servir de vergonha da família e, talvez assim, justificar o rigor imposto aos outros membros, principalmente o jovem André, o qual era proibido de ver o tio, sob a alegação de que ele poderia ser uma má influência para o desenvolvimento normal do menino.

Mas, com certeza, não se trata de um autêntico transexual, mas de um travestido que o faz por opção e fetichismo, ainda que isto o condene. Guy Besançon (1996, p. 692-693) diz, sobre Timóteo:

Não encontramos nele exatamente a busca permanente de transformação sexual e de estado definitivo que caracteriza o verdadeiro transexualismo. Tudo o que Timóteo mostra é voluntariamente derrisório e ridículo; seu travestismo grotesco pode ser mais um meio para disfarçar a homossexualidade e o fetichismo. Contudo, é o mais autêntico dos irmãos Meneses e o mais consciente do declínio irreversível da casa.

Por um lado, vê-se em Timóteo um personagem recluso e atormentado em sua monstruosidade por opção, mas, por outro, não se

Da beatitude à perversão || || 177 pode deixar de reconhecer a lucidez com a qual faz seu destino e também a sua capacidade de prever a destruição irremediável que estaria por vir. Também não é avesso ao passado. Muito pelo contrário, é Timóteo que afirma estar possuído por uma tia-avó, mulher forte que manifestara tendências homossexuais e que igualmente fora um tanto quanto lúcida com relação à podridão da família. Portanto, o personagem admite que condiz com uma tradição reprimida por aquela que prevaleceu.

A produção de restos por meio do excesso, tanto na consecução das ruínas da casa, como na produção de corpos mortos ou no fetiche por travestismo revela que a perversão pode ser vista como uma tentativa de insucesso de aprisionamento do objeto impossível de desejo. Muito embora este objeto seja impossível de se reconhecer em sua plenitude, a fabricação de restos ou fetiches – e a perversão é a crença plena de que objeto pode satisfazer plenamente o desejante – indica uma certa dignidade e aponta diretamente para um testemunho. Aponta, sobretudo, para a lei.

O fetiche, portanto, aponta para um testemunho impossível ou a uma dessubjetivação, marcada pela impossibilidade de junção plena entre sujeito e objeto. Mas se o resultado dessa tentativa é uma precipitação, ela pode, ao mesmo tempo, sugerir a própria divisão que outrora existiu e que não pôde ser sanada; essa fratura consiste no próprio homem.

O núcleo originário do significar não reside nem no significante e nem no significado, nem na escritura e nem na voz, mas na dobra da presença sobre a qual eles se fundam: o logos, que caracteriza o homem enquanto zoon logon echon, é essa dobra que recolhe e divide cada coisa na conjunção da presença. E o humano é, exatamente, esta fratura da presença, que abre um mundo e sobre o qual se sustenta a linguagem. O algoritmo S/s deve, portanto, ser reduzido apenas a uma barreira:/; mas, nesta barreira, não devemos ver apenas o rastro de uma diferença, e sim o jogo topológico das conjunções e das articulações (συνάψιες), cujo modelo procuramos delinear no αἶνος apotropaico da Esfinge, na melancólica profundidade do emblema, na Verleugnung do fetichista. (AGAMBEN, 2007, p. 248).

Essa fetichização marca a tentativa louca de suprimento de uma falta. A consciência de Timóteo é a consciência de que, na casa onde não existe falta, também não há amor. E o desejo louco de reconhecer esse

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amor em um objeto, portanto de materializá-lo ou precipitá-lo, é a sua fetichização.

– Muitas vezes – e agora era eu quem confessava – em dias passados, imaginei o que poderia tornar esta casa tão fria, tão sem alma. E foi aí que descobri a terrível imutabilidade de suas paredes, a gelada tranqüilidade das pessoas que habitam nela. Ah, minha amiga, pode acreditar em mim, nada existe de mais diabólico do que a certeza. Não há nela nenhum lugar para o amor. Tudo o que é firme e positivo é uma negação do amor. (CARDOSO, 1996, p. 337).

Ao final, o enterro de Nina, que, como já se sabe, era completamente previsível, faz com que Timóteo, o mais astuto dos Menezes, coloque violetas no caixão da morta conforme outra vez prometera. Mas o faz diante de toda a sociedade local, para o espanto de seus irmãos. E da forma mais escandalosa possível, a saber, puxado por dois descendentes de escravos em uma rede e chorando em um vestido negro que escondia pouco suas próprias banhas, já que estava gravemente obeso. Ao fim, o seu fetiche final consiste num gesto inexplicável: um tapa no rosto de Nina já falecida. Um gesto que já não é da ordem da perversão, porque não se esgota e, portanto, condiz com uma falta e não com uma certeza.

Ele não necessariamente ressignifica toda a trama, mas dá a ela a possibilidade infinita de se ressignificar, consistindo em um gesto de catarse, o qual, muito se poderia associar com o que diz Agamben (2007, p. 63) sobre o assunto. “O lugar – ou melhor, o ter lugar – do poema não está, pois, nem no texto nem no autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso”. O tapa em Nina se trata de um gesto de amor, talvez o único de todo o livro, mas que, nas últimas páginas consegue quebrar uma certeza que já vinha desde o início. Essa precipitação louca, em parte consciente e em parte inconsciente, é o que consegue redimir uma espera de quinze anos em um quarto.

A casa, sim, vem abaixo, mas o que é verdadeiramente assassinado é o nome da família, maculado pelo travestido que, por amor, consegue roubar a cena. Este ato de juízo exemplifica o que Lucio Cardoso pode dizer com qualquer cena de excesso ou desespero: justamente que é impossível saber de forma exata aquilo que governa suas personagens, mas se pode conjecturar que cada manifestação reafirma de alguma forma a

Da beatitude à perversão || || 179 lei (talvez antes de pô-la abaixo). Mais impossível ainda é achar alguma objetividade que permita valorar esta lei que serviu outrora de referência.

Neste sentido, o excesso é uma tentativa de aceitar essa indeterminação, seja no desespero, seja na crueldade, onde se sabe da Lei apenas por um outro olhar: não mais por aquele da teleologia e nem mesmo conforme o niilista, mas saber que qualquer subversão, por mais louca ou gratuita que seja, teve um contexto e que sua singularidade se manifesta apenas associada a uma pluralidade, ainda que velada.

referências

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BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1973. CARDOSO, Lúcio. Crônica da casa assassinada. Edição crítica. Mário Carelli (Coord.). Rio de Janeiro: ALLCA XX, 1996.

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NANCY, Jean-Luc. L’impératif catégorique. Paris: Flammarion, 1983. OST, François. Sade et la loi. Paris: Odile Jacob, 2005.

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