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o reconhecimento de Lobato quanto à condição do trabalhador e ao lucro capitalista

Para eles era eu o empregado – e também vinte dias antes eu me considerava apenas um empregado, isto é, humilde peça da máquina de ganhar dinheiro que os senhores Sá, Pato & Cia. houveram por bem montar dentro de uma certa aglomeração humana (p. 16).

[...]

O professor Benson falava das suas invenções com tanta simplicidade e me tratava tão familiarmente que jamais me senti tolhido em sua presença – como me sentida, por exemplo, na do Senhor Pato [...]. Sempre que me cruzava com o comendador eu tremia, tanto se impunha aos subalternos, aquela formidável massa de banhas vestida de fraque, com anel de grande pedra no dedo e uma corrente de relógio toda berloques que nos esmagava a humildade sob a arrogância e o peso do ouro maciço. (p. 36).

Nestes dois recortes, a personagem principal descreve sua condição de empregado numa empresa de cobranças (Sá, Pato & Cia). Auferimos pelas linhas acima e por sua biografia, que o autor reconheça a condição do trabalhador submetido aos auspícios da lógica de produção com vistas ao acúmulo do capital. Mas Lobato também nos presenteia com outro aspecto deste modo de produção: é preciso dominar o trabalhador também pelo imaginário de poder e submissão além de uma existência subjugada à expropriação de sua mão de obra.

Em cotejo com passagens anteriores é perceptível que este reconhecimento não ultrapassa o campo da “denúncia”, uma vez que o autor o descreve apenas como uma alavanca, um estímulo, para que o sujeito despreze sua realidade e que lhe sirva como impulso para “trocar de casta”. Ou seja, não vemos aqui um Lobato “revolucionário” com as diferenças de condições entre as classes dominantes e dominantes, mas, sim, propala que os sujeitos, individualmente e por seus méritos, se destaquem em meio a esta existência já determinada, para o merecido acesso social. Esta lógica se coaduna com o princípio liberal da igualdade,

Monteiro Lobato, a literatura, o modelo econômico-social... || || 49 cujo pressuposto orienta que todos partem com as mesmas condições de existência.

A igualdade civil moderna nasceu com a Revolução Francesa e a filosofia política e jurídica que a antecedeu. Dois pensadores tornaram-se clássicos no exame da implantação do princípio da igualdade: Rousseau, que teorizou a igualdade civil, e Marx, que lhe conferiu a dimensão material ou econômica, derrogando aquela por ilusória, numa crítica contundente, cujas conseqüências alteraram depois, parcialmente, as bases do Estado moderno. (BONAVIDES, 2009).

Os alicerces dessa igualdade, porém, conflitavam-se entre o plano teórico e o plano da existência fática:

A utopia de uma igualdade absoluta, alcançada por via da igualdade jurídica, ficou patente quando a reflexão demonstrou que esta última não eliminava as desigualdades materiais, aumentadas historicamente em razão da chamada Revolução Industrial, da introdução da máquina e do conseqüente surto do capitalismo (BONAVIDES, 2009).

Neste excerto, Bonavides (2009) destaca a impossibilidade da gerência do Estado de orientação liberal em estabelecer ações em todas as frentes por meio do princípio da igualdade. A este tipo de Estado (liberal) caberia a aplicabilidade e garantias ao princípio da liberdade. Quanto à igualdade, caberia a legitimidade formal e política; o que possui outra aplicabilidade quando falamos do Estado Social.

Considerações finais

A descrição de Lobato de suas expectativas políticas através da trama do livro “O Presidente Negro – ou O Choque das Raças” é um exercício rico para o reconhecimento não somente dos determinantes sociopolíticos e econômicos da época que recorta o tempo de vida e da obra do autor, mas também enquanto elemento profícuo ao desvelamento ideológico do autor diante dos dilemas sociais e das respostas que oferece no enfrentamento destas temáticas.

A conciliação existente entre a opinião do autor com a forma como expunha sua vida e resolve sua rotina só pode ser debatida com

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personalidades públicas por quem muito se escreveu e denunciam suas perspectivas ao longo da vida. A riqueza encontrada em Lobato, neste sentido, é impar. O volume de escritos sobre sua vida particular e pública tem rendido vários exemplares de obras destinadas ao desvelamento de sua arte. Tal notícia traz a beleza dos dados e a rudeza dos limites acadêmicos para exploração e recorte ao objeto.

A pesquisa, ao que melhor respondesse nossa análise a obra “O Presidente Negro – ou O Choque das Raças”, pautou-se na qualidade de documentos que denunciassem o tempo vivido pelo autor, da mesma forma que apresentassem em sua literatura a opinião que coaduna com sua experiência, com sua rotina.

Em Lobato, é possível descrever com riqueza esta comunhão de elementos, autorizando-nos a apresentação da íntima relação que o autor possui com sua escrita, molhada de seu produto ideológico.

Da mesma forma, este estudo nos permitiu reconhecer que a Literatura traz em si o material suficiente à exposição do que há de mais íntimo ao Direito: 1) A orientação das condutas políticas, sociais e econômicas; 2) O estabelecimento e revisitação ao contrato social; e 3) A revelação do tipo de Estado constituído.

referências

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SoBrEvivEr E vivEr: um grÃo DE CuLPA NA

LiTErATurA DE TESTEmuNho

Cristiana Vieira

“Todo mundo é capaz de dominar uma dor, exceto quem a sente.” Shakespeare – “Muito barulho por nada”.

introdução

Ainda! Assim a historiadora Annette Wieviorka (2005, p. 9) apresenta seu livro “Auschwitz, 60 ans après”, para mostrar o quanto pode ser difícil e mesmo penoso o trabalho de manter ou de recuperar – ou tentar recuperar – uma história, um testemunho, a memória.

Ainda! “Memória saturada, fascinação perversa pelo horror, gosto mortífero do passado, instrumentalização política das vítimas...Sair final- mente de Auschwitz... esquecer que existiu. Ou então falar, com a condição de inscrever os mortos de Auschwitz na litania dos assassinatos em massa, índios americanos, mortos da Primeira Guerra Mundial, armenianos, camponeses ucranianos, Tutsi, cambodjanos, até que todos se dissolvam”.

No entanto, continua Wieviorka, “o verdadeiro problema de Auschwitz é que ele existiu e, com a pior ou a melhor boa vontade do mundo, nós nada daí podemos mudar.”

Numa entrevista durante sua visita a Auschwitz, a teórica política alemã Hanna Arendt, quando perguntada sobre os números do holocausto, responde que, nesse caso, jamais se pode pensar em termos de quantidade, pois esse tipo de crime é simplesmente inaceitável. Ainda que tivesse havido um só morto, o fato de aceitar que um homem possa

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torturar e matar outro homem pelo simples fato de querer exterminar uma “raça” no mundo, já guarda em si mesmo o signo da barbárie.

A intolerância

O holocausto foi único em muitos sentidos. Não que queiramos aqui ignorar ou apagar outros crimes de guerra e genocídios da história, mas como o elegemos sujeito desta discussão é necessário deixar evidente que nenhum outro massacre teve os mesmos princípios, embora os estudos sobre o holocausto venham não raro acompanhados de referências ao genocídioarmênio, por exemplo.

Havia uma guerra, é certo. Mas esta guerra não era contra o povo judeu, tampouco havia uma disputa por territórios ou pela hegemonia étnica. Não existiam os Jovens Turcos.Simplesmente o holocausto abriu espaço em meio a um conflito mundial, pela vontade de um homem que contava “purificar a raça humana” – por razões que muito mais Freud do que qualquer historiador, cientista político ou especialista desse período pode explicar – e que fez dessa purificação seu símbolo.

Buscar qualquer outra justificativa para esse massacre soaria semelhante ao “silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina”.1 Em

1929, dez anos antes de sua morte, o fundador da psicanálise temia pelo destino do homem e encerrava assim o “Mal-estar na civilização”:

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle que, com sua ajuda,não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois “Poderes Celestes”, o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. (FREUD, 1997).

Suas palavras hoje, après coup, ganham contornos quase premo- nitórios.

Sobreviver e viver || || 55 Os que viveram esse período da história, que sobreviveram aos campos de concentração, e que, neles, perderam pais, irmãos, amigos, esperança, ainda que tenham escapado da tatuagem que lhes daria um número por identidade, ou que a tenham apagado para nunca mais lembrar, estão irresistivelmente marcados.

Marcados como Anna Traube, 16 anos em 1942, viva e lúcida, que repetia, elevando a voz durante mesa redonda que a emissora France 2 levou ao ar na véspera da première do filme “La Rafle”, da diretora Rose Bosch, que a única maneira de sobreviver foi não obedecer, não confiar, resistir sempre. O filme, lançado no último dia 10 de março, retraça o momento da “rafle” (arrestação em massa) no antigo Velódromo de Inverno de Paris, quando mais de 13.000 judeus foram presos em suas casas pela polícia francesa, nos dias 16 e 17 de julho de 1942, e deportados para Beaune-La-Rolande antes de serem enviados a Auschwitz.

A leste do mesmo continente, outro sobrevivente, Danny Chanoch, refaz a viagem entre a Lituânia e a Polônia, passando pelos campos de Auschwitz, Mathausen et Dachau, com seus dois filhos, Miri e Shagi, nascidos em Israel. Eles cresceram escutando o pai ler “Desde minha infância a Shoah faz parte da minha vida”, livro de sua autoria, na hora de dormir. Seu objetivo é plasmar na vida dos filhos o que foi sua própria experiência, e isso com um prazer assustador. Acompanhados por uma equipe de filmagem, a expedição termina com uma crise nervosa de Miri, gritando que nunca, nunca, nunca, poderá viver o que o pai viveu e que tudo aquilo faz a ela um mal insuportável.

Após horas de viagem, Chanoch espera obter a autorização para dormir num dos alojamentos de Auschwitz com seus acompanhantes. Ele se vale de sua tatuagem e não hesita em mostrá-la, como um laissez passer inquestionável e soberano, enquanto exige de uma das secretárias da administração do Campo a autorização imediata para seu projeto. A experiência tem como resultado o documentário “Pizza em Auschwitz”, do realizador Moshe Zimerman, ele mesmo um sobrevivente.