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A literatura de monteiro Lobato: um homem inquieto

A literatura tem sido uma importante área de estudo porquanto nos apresenta a própria existência, “[...] de épocas e de instituições [...]” que por meio de uma forma particular de descrição, “[...] revela uma realidade” (GODOY, 2002, p. 19).

Para Candido (1989),

[...] a literatura pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual.

Enquanto instrumento de descrição, embora particular ao estilo daquele que a realiza, a produção (obra) tem aspectos que não se opõem ao volume da realidade histórica do sujeito (autor) que faz do exercício literário sua marca, sua opinião.

Marx e Engels (1982) assertam que os sujeitos se formam e se relacionam a partir de dadas condições, em determinado tempo e espaço,

Monteiro Lobato, a literatura, o modelo econômico-social... || || 33 e isso ocorre em consequência ao desenvolvimento de determinado modo de produção. Ao afirmar isso, o autor esclarece que será a partir das necessidades de existência supridas (e isso significa localizar em que dado momento histórico estamos falando, uma vez que cada um destes urge por determinadas condições de existência), que o ser humano também complexifica suas relações imateriais.

Um sujeito terá sempre como princípio para o acesso ao elemento imaterial a sua realidade histórica objetiva.

A apresentação desses aportes se faz imediatamente necessária, uma vez que o estilo de um autor ou as premissas que apresenta para instruir sua obra, denunciam, exemplarmente, os determinantes e as complexidades sociais acumuladas historicamente e até onde é possível verificar, seu campo de acesso e trânsito aos mesmos.

Como afirma Candido (2006, p. 35) sobre o artista, sua obra e seu tempo:

[...] a obra exige necessariamente a presença do artista criador. O que chamamos arte coletiva é a arte criada pelo indivíduo a

tal ponto identificado às aspirações e valores de seu tempo, que parece dissolver-se nele [...]. Devido a um e outro motivo,

à medida que remontamos na história temos a impressão duma presença cada vez maior do coletivo nas obras; e é certo, como já sabemos, que forças sociais condicionantes guiam o artista em grau maior ou menor. (Grifos nossos).

Na obra de Monteiro Lobato, é possível conferir a expressão dos determinantes de seu tempo porquanto esse não tenha se eximido em apresentar uma opinião que se derrama, sem constrangimentos, quanto sua condição de classe e que revela seus acessos.1

Nunes (1998, p. 11) considera este traço inquieto de Lobato como “incomum” para o período e, constantemente interpretado como contraditório: aparência de um “maledicente negativista [...] quando era justamente um [...] otimista inesgotável”.

A inquietação se pronuncia também pela alternância em diferentes cargos assumidos pelo autor ao longo da vida: de promotor a fazendeiro, de adido comercial a editor e escritor. Todos marcados pelo traço do

1 Lobato se envolvia em questões por vezes emblemáticas o suficiente para que construísse

inimizades e provocasse “governos” (como no período em que foi detido acusado de “proselitismo nacionalista ao petróleo” no período getulista – depois de sua experiência nos Estados Unidos exercendo a função de “adido comercial” (GODOY, 2002, p. 104).

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intelectual insatisfeito com “nosso progresso material, [...] a infraestrutura” que demonstram as marcas do “[...] nosso contexto subdesenvolvido” (NUNES (1998, p. 11).

Esse traço de país subdesenvolvido, embora majestosamente exuberante em riquezas naturais, foi objeto do exercício literário de Monteiro Lobato. Conforme Nunes (1998), Lobato escreve uma série de artigos cujo primeiro lote volta-se às questões de saneamento básico (assim como descrito na figura do “Jeca Tatu”), uma vez que prioritariamente não vencidas as más condições de higiene e existência da população, seria impossível superar a incapacidade do brasileiro em reagir diante dos demais dilemas nacionais.

Não somente Lobato se pronunciou diante destes aspectos como foi influenciado a fazê-lo pela experiência compartilhada junto a iminentes personagens no Brasil entre os séculos. XIX e XX. As incursões sanitaristas de Belisário Pena e Carlos Chagas pelo país eram reconhecidas por Lobato, amigo de Pena, e, de tal forma lhe exacerbava a indignação que a denúncia ao descaso pela saúde básica da população era continuamente o alvo em seus escritos jornalísticos (NUNES, 1998, p. 71).

Outro importante testemunho retirado dos relatórios sanitaristas de Belisário Pena (e exposto nas cartas que este remetia a Lobato) encontra- se em sua queixa aos latifúndios expropriadores enquanto aspecto nocivo para o desenvolvimento da vida nacional:

A pequena propriedade é o bem estar coletivo: é a riqueza dividida entre muitos; é a prosperidade do Estado. O latifúndio é a riqueza concentrada em poucas mãos; é a miséria coletiva; é a pobreza do Estado. A pequena propriedade significa trabalho livre, voluntário e independência econômica. [...]. O latifúndio implica trabalho escravizado e dependência. Mata o estímulo, anula a vontade, estiola as iniciativas, incentiva a ignorância, o vício e a doença e destrói o espírito de família. (BELISÁRIO PENA, apud NUNES, 1998, p. 70).

Estes aspectos se destilam enquanto “gasolina” ao espírito inflamado de Lobato, acendendo-lhe ainda mais a indignação diante das disparidades de uma nação rica, que expropria o trabalho e a dignidade do caboclo, remetendo-lhe numa vida rural miserável e egoísta, de perfil concentrado no latifúndio.

As angústias de Lobato são sugeridas pelas bibliografias estudadas como resultado de um espírito sonhador com viés pragmatista, ou seja,

Monteiro Lobato, a literatura, o modelo econômico-social... || || 35 seus apontamentos e resoluções se apresentam como manietados aos rigores futuristas que se regulam por uma mecânica de efeitos objetivos consequentes, o que se demonstra faticamente impossível, uma vez que desconsidera as armadilhas dialéticas presentes na própria existência e que não coaduna harmoniosamente enquanto “precisa regularidade” (GODOY, 2002).

Esta contingência existencial tem especial demonstração pública tanto nos resultados obtidos por Chagas e Pena, cujo incentivo científico se deu originalmente com Oswaldo Cruz, assim, como já aludimos anteriormente, pelo período que Lobato viveu nos Estados Unidos.

O emprego do método científico como resposta à vida prática e cotidiana do homem médio enchia de paixão o espírito de escritor:

[...] o verdadeiro sábio não emite opinião; consulta o laboratório e repete o que o laboratório diz sem enfeite nem torção. É com esse espírito novo que havemos de estudar e resolver nossos problemas – e este espírito por enquanto só se demonstra em Manguinhos. O povo cretinizado pela miséria orgânica de mãos dadas à mistificação republicana, olha em torno e só vê luz no farol erguido por Oswaldo num recanto sereno do Rio. Só de lá tem vindo, e só de lá há de vir, a verdade que salva. Foi de lá que reboou esse veementíssimo brado de angústia que é o livro de Belisário Pena – Saneamento do Brasil –, voz de sábio que escarna ao vivo as mazelas do país idiotizado, exangue, leishmanioso, papudo, faminto na proporção de 80%, e grito de indignação dum homem de bem contra a pitiríase organizada em sistema político que rói com fúria acarina o pobre com organismo inânime. (Monteiro Lobato, apud NUNES, 1998, p. 76).

Enquanto realizamos a análise aos determinantes que compunham a realidade do início do século XX, não entendemos o otimismo de Monteiro Lobato pelo produto da ciência como algo exclusivo a este autor, mas sim, uma contingência de seu tempo.

Na era “auspiciosa” da revolução industrial e suas reconhecidas consequências sociais, é impossível a um homem de oportunos acessos, amplo trânsito entre a burguesia nacional e internacional e predicados que historicamente o aproximam dos quesitos mais caros às novas tecnologias que despontam, ficar alheio a elas. Pelo contrário, o autor apresenta fartamente em seus escritos os ventos dessa modernidade, queixando-se da falta de iniciativa do Estado nacional em apropriar-se grassamente dessa racionalidade para a reorientação de sua pauta pública:

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As mazelas econômicas e políticas do país são trazidas à luz sem cerimônia. O Brasil é retratado através da conhecida metáfora do gigante adormecido, ganhando, porém, roupagem um pouco diferente: “Quem trepa a um Corcovado imaginário e de lá procura ver em conjunto o Brasil, espanta-se da sua atitude. É um gigante deitado e adormecido. Mas não dorme; estertora com a respiração opressa e faz desordenados movimentos convulsivos para romper o cordoame enleador”. (LAMARÃO, 2002, p. 60).

Deslindado dos determinantes que polarizam as nações dominantes e dominadas, Lobato pode nos levar a crer que seus manuscritos sejam portadores de uma ingenuidade descabida, haja vista que parece entender que seja possível uma transferência objetiva e imediata de recursos que se operam nas nações centrais, para com as de economia periférica, como o Brasil, de forma automática e tranquila.

Sua grande preocupação pelo Brasil, que a princípio lhe parecia nação inviável, vai encontrar o alívio na estada nos Estados Unidos. A grande nação americana dá-lhe a fórmula de felicidade para os países subdesenvolvidos, e, simplista, esquematizador, Lobato trata logo de aplicá-las no Brasil, que deseja ver no papel dignificante de Estados Unidos da América do Sul. (NUNES, 1998, p. 19).

Esta interpretação da conduta do autor, para nós, possui duas suposições: está muito mais próxima de um estado de alienação, ou de alguém que se configura enquanto participante de uma “burguesia esclarecida”, que ao invés de manifestar um pensamento revolucionário pretendia-se “radical” em contrapeso ao modelo conservador, mas que não se distancia deste (CANDIDO, 1988, p. 4):

Gerado na classe média e em setores esclarecidos das classes dominantes, ele não é um pensamento revolucionário, e, embora seja fermento transformador, não se identifica senão em parte com os interesses específicos das classes trabalhadoras, que são o segmento potencialmente revolucionário da sociedade.

Sustentados por estes aportes iniciais é que fundamentaremos nossa análise às perspectivas político-sociais e econômicas de Lobato descritas no texto, “O Presidente Negro – ou O Choque das Raças” de 1926, em cotejo aos elementos principiológicos das garantias civis que despontavam naquele início de século no Brasil.

Monteiro Lobato, a literatura, o modelo econômico-social... || || 37 Por certo que o espírito inventivo, idealista e sardônico de Lobato (NUNES, 1998) nos forneceu rica e inquestionável produção literária – e a história brasileira merecidamente reconhece sua arte –-, porém, o elemento que nos chama atenção na experiência lobatiana, enquanto construção literária e que se denuncia no volume de seus escritos, será a proximidade do autor com a reforma dos comportamentos, da ciência e a condição política brasileira.

Estes temas são pertinentes ao próprio objeto de investigação e análise de outra área afeta ao estudo que aqui empreendemos: o Direito.

Foi de fato uma transformação cheia de modernidade, que pôs em cheque o idealismo romântico e as explicações religiosas, questionando a legitimidade das oligarquias, propondo explicações científicas e interpretações de cunho relativista e comparativo, inclusive pela transformação profunda dos estudos de Direito que formavam o centro da cultura acadêmica. (CANDIDO, 1999, p. 51).

Segundo Ferraz Júnior (2003, p. 22) o Direito se aliança com as alterações da realidade porquanto ser fenômeno que resulta das escolhas humanas.

O exercício da ação humana para a manutenção de existência da própria espécie não se dá no vazio nem se objetiva sem que gere efeitos. É previsível que esta ocorra em meio a conflitos. Conflitos que necessaria- mente não incline por si os sujeitos à barbárie, mas que tenha por pers- pectiva a alteração do status quo das relações e da própria existência diante da palavra empenhada, do que se decide, diante dos desejos expostas ou enquanto elemento regulador/limitador das vontades involuntárias.

Outras questões apontadas pela própria Sociologia Jurídica são ricas para verificarmos o leque de imbricações entre os comportamentos sociais, as relações de poder, o cotejo entre a revolta e o disciplinamento, etc., que são orientados em consonância com a expressão do ordenamento jurídica e seus institutos.

Como a linguagem é um instrumento imprescindível para ambas as artes (tanto para a Literatura quanto para o Direito), o exercício de resgate ao comportamento de uma época, assim como a análise e impressões do autor que desvelam a riqueza de seu trânsito e experiência na apresentação de sua leitura de mundo, deve ser por certo minucioso e ocorre nas entrelinhas do discurso descrito na obra.

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Olivo e Siqueira (2008, p. 260) destacam que a Literatura possui uma “função privilegiada para a compreensão do Direito”. Isso ocorre por seu matiz “denunciador” contribuindo desta forma “diretamente à formulação e à elucidação das principais questões relativas à justiça, à lei e ao poder”. O cotejo entre a Literatura e o Direito é instrumento eficaz para a investigação comprometida aos elementos que denunciam o ânimo dos sujeitos no exercício de suas vidas, na construção de suas rotinas, destacando tais atos a partir dos códigos de licitude/ilicitude acordados socialmente.

É o que nos ensina Candido (1999) quando destaca que o papel da Literatura no desvelamento dos atos à existência:

[...] [d]aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor.

A literatura e a crítica em Lobato: novos rumos do