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1.2 Caracterizações literárias e jornalísticas do texto-crônica

1.2.2 A crônica literária

Segundo PEREIRA (2004), a crônica nasce inter-relacionada com a historiografia, mas se modifica com o tempo e passa a tratar de quaisquer discursos que tratem ou relatem os efeitos de um grupo social. Observa-se que a crônica está “ligada à fluidez temporal de cada organização social. Uma

34 forma de narrativa que irá enunciar os eventos sociais reconhecidos e determinados de acordo com a institucionalização do tempo” (PEREIRA, 2004, p. 17).

A noção de crônica enquanto relato histórico [...] se depara com outra confusão semântica [...] a crônica ganha outro significado. Para alguns autores, esse período histórico nos fornece elementos para a identificação da gênese do termo crônica. A chave para a decifração será Essais, ensaios, que não se legítima mais através da relação entre História e ficção literária, mas terá uma particularidade: a interpretação dos eventos e suas funções sociais [...]

O caráter informal do ensaio e a busca da valorização da linguagem coloquial, dentro da tradição encetada por Montaigne, fazem com que alguns autores, de acordo com os estudos desta forma de expressão tão cultuada no século XVI, voltem a empobrecer uma relação de significados existentes para definir a crônica. (PEREIRA, 2004, pp. 18-19)

Para Wellington Pereira (2004), é justamente no conceito de ensaio de Montaigne que irá proporcionar aos estudiosos uma grande dificuldade na definição da crônica, pois o ensaio se encontra na inter-relação da produção oral e da produção escrita, como a tradução do pensamento de seu produtor em um texto breve, o qual procura interpretar a realidade e se utiliza de sequências narrativas, descritivas, expositivas e argumentativas.

Para o estudioso atrelar a crônica ao ensaio, além de prendê-la a uma forma de construção do discurso em determinada época, empobrece a relação conceitual da crônica. Em seus estudos, concluiu que o entendimento da crônica ser uma variação do ensaio se dá porque, em alguns países, a crônica reflete um estudo acabado e concluso sobre algo como o ensaio conceituado por Montaigne.

A crônica configura-se, em sua gênese, como um texto narrativo: organiza em ordem cronológica os acontecimentos, traçando um perfil da sociedade de seu tempo. Entretanto, com o passar dos anos, a sociedade modifica-se e

35 todos os “sistemas de gêneros”3 se adaptam às novas necessidades, ganhando novo significado.

Em sua origem, durante o século XVI, com Montaigne, ocorreu a primeira tipificação da crônica, uma vez que o texto produzido procurava manter uma linguagem coloquial e tratar de um assunto, profundamente, de forma curta e metódica.

A partir do conceito de ensaio, mesmo prevalecendo um modelo exercido com brilhantismo por Montaigne, dir-se-ia que a noção de crônica vai se tornando cada vez mais ampla de acordo com a possibilidade dos momentos históricos encetarem novas formas narrativas. No conceito extraído dos ensaístas do século XVI, a crônica não passa de um acessório utilizado pelos escritores para legitimar suas expressões artísticas através do ensaio. (PEREIRA, 2004, p. 20)

Durante o século XIX a crônica ganha novas dimensões, procura retratar a percepção do cotidiano por meio de uma linguagem mais literária, passando a relatar os fatos, não devido à ordem cronológica e sim pela “infidelidade à razão; um tributo à imaginação, fazendo com que o ato de enunciação de quaisquer fatos possa transitar entre os anais da História e a ficção literária.” (PEREIRA, 2004, p. 24)

Neste instante em que a crônica ganha liberdade estética, tornando-se um texto mais híbrido, bem como semanticamente, passa a designar um tipo de texto centrado na linguagem literária, dessa forma tem a possibilidade de agregar diversas formas de expressão no mesmo espaço textual. Assim a crônica extrapola em forma e significado, o que propiciou diferentes divagações e estudos no que concerne a sua natureza semântica e genérica.

3 O conceito de sistema de gêneros empregado refere-se aos textos institucionalizados que uma pessoa realiza em determinada atividade, conforme postulado por Bazerman em Gêneros textuais, tipificação e interação, 2009.

36 Com o Romantismo, a crônica é “concebida” como sinônimo de gênero literário: uma conceituação precipitada, se procurarmos entender a relação que a crônica mantém com outras linguagens no interior do texto jornalístico.

No instante em que a crônica passa a habitar os cânones da literatura, surgem algumas definições redutoras, colocando-a numa posição de confronto diante dos “gêneros maiores” da literatura [...] (PEREIRA, 2004, p. 26)

Afrânio Coutinho demonstrou que a crônica possui ambiguidade ao se buscar encontrar sua relação com a literatura, pois com o Romantismo ela cresce de importância, chegando a receber o status de gênero literário com características próprias, autônoma.

O conceito de crônica pela literatura apresenta um texto preocupado com o estilo do autor, denotando grande preocupação com a qualidade literária, “um misto de estilística e retórica que dá aos nossos oradores a ilusão de palavras difíceis serem sinônimos de erudição” (PEREIRA, 2004, p. 27)

Segundo Pereira (2004), foi durante o século XIX que a crônica se tipifica e deixa de ser compreendida, apenas, a partir do tempo cronológico, passando a focalizar não apenas determinado fato histórico, mas também as relações do mundo moderno e as suas necessidades.

O cronista procura entender a nova ordem de enunciação imposta pela sociedade industrializada [...] para buscar uma compreensão melhor da forma de organização social efetiva pela burguesia, empresta nova entonação à palavra crônica. O elemento privilegiado na construção do texto será a enunciação, a capacidade de narrar fatos ocorridos em um mundo no qual a memória vai se distanciando do fazer e da experiência vivida pelos homens. O cronista sabe que é impossível “contar” os fatos de uma forma ordenada, cronológica. Isto, ele buscava na literatura – o meio de expressão mais eficaz para veicular as suas impressões sobre a nova formulação das ideias diante do curso da história. Através da literatura, o cronista emerge para além dos limites impostos ao exercício da crônica. (PEREIRA, 2004, p. 23-24)

37 Segundo Moisés (1997), a crônica utilizada no século XIX deixa a historicidade e passa a ser utilizada no sentido literário, tendo como difusora a imprensa, que passava por uma ampla expansão, desde suas origens, por volta de 1799, com Julien-Louis Geoffroy. Este escrevia para o Journal de Débats, “fazendo a crítica diária da atividade dramática, esse professor de Retórica na verdade cultivava uma forma ainda embrionária de crônica” (MOISÉS, 1997, p. 245). Para o autor, muitos imitadores desse tipo de texto, crítica da atividade dramática, surgiram e se espalharam por toda Europa e América.

Para Pereira (2004), com o Romantismo a crônica passou a ter maior liberdade estética e, ao ser classificada como gênero literário, excede ainda mais suas possibilidades estéticas, o que levou os produtores desse gênero a se preocuparem ou darem maior ênfase na linguagem literária, conjugando diferentes formas de expressão na enunciação do texto. Dessa maneira, o cronista, do Romantismo, deu maior ênfase no efeito estético, valorizando a expressão por figuras de linguagem.

Nesta relação, é que podemos entender o significado da crônica e sua natureza estética, a partir do qual deixa de ser elemento organizador de eventos temporais para recriar os relatos do dia-a- dia, em nível de conotação que enuncia as particularidades dos fatos sociais.

Mas a crônica não encarnou a definição positivista de literatura, enxergando na série de textos de uma determinada época o conjunto das obras literárias de um povo. Ao assumir o caráter literário, a crônica não só ampliou seu significado, como também provocou divagações em torno de sua natureza semântica [...] (PEREIRA, 2004, p. 25)

Por meio do Romantismo, a crônica estabelece-se enquanto gênero de texto, uma vez que criou uma nova forma estético-estilística. Alguns autores acreditam que o Romantismo levou à ruptura dos gêneros literários em voga, dando liberdade aos autores para transitarem livremente entre a poesia e a prosa em um texto narrativo.

38 O conceito de crônica passou a ser compreendido como uma narrativa mais poética dos acontecimentos diários, sendo veiculada, nos periódicos, em um espaço denominado folhetim, espaço reservado e publicado em rodapés inicialmente, onde se publicava quaisquer textos, além das notícias.

No continente americano, a crônica surgiu após 1836, no “Folhetim”. E percorreu um longo caminho até se firmar como gênero literário. Ainda que dado como um “gênero menor”, conforme afirma Antônio Cândido.

Assim alguns estudiosos tratam a crônica como sendo uma variação do ensaio; enquanto outros estudos afirmam que a crônica assume outras acepções e seu conceito se ampliou, deixando de apresentar as características e fórmulas do ensaio clássico, uma vez que o cronista procura, em seu texto, apresentar, demonstrar e tratar dos ideais modernos em voga. Dessa forma, os cronistas passam a produzir textos que contenham não apenas características literárias, mas também novas formas de expressão que desvelem fatos, ideologias, interesses de um grupo social.

Os autores estudados como Cândido, Pereira, Bender e Laurito, Coutinho, Letria, Melo dentre outros postularam que o gênero crônica é produzido, essencialmente, para ser vinculado na imprensa, seja nas páginas de um jornal ou de uma revista. A característica da crônica consiste em abordar os mais diversos assuntos de forma frívola, rápida e fugaz, com o passar do tempo ela se ampliou, recebeu um caráter literário já que muitos escritores produziram crônicas jornalísticas.

Lado a lado encontram-se textos publicados no jornal, entendido este como ramerrão cotidiano, ou erguendo-se ao nível abstrato e desejadamente universal [...] Ambígua, duma ambiguidade irredutível, de onde extrai seus defeitos e qualidades, a crônica move-se entre ser no e para o jornal, uma vez que se destina, inicial e precipuamente, a ser lida no jornal ou revista. Difere, porém, da matéria substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de fazer do cotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera informação: o seu objetivo, confesso ou não, reside em transcender o dia a dia pela universalização de suas virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista

39 de ofício. O cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento sua porção imanente de fantasia [...] A crônica oscila, pois, entre a reportagem e a Literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por meio da fantasia [...] (MOISÉS, 1997, p. 247)

Segundo Moisés (1984), no jornal encontram-se duas categorias de texto linguístico: os escritos para o jornal e os escritos no jornal. Os primeiros morrem diariamente, os segundos não. Os escritos no jornal utilizam-se deste como veículo de divulgação, não como melhor, nem como único. Para o autor, o cronista se encontra em uma ambiguidade irredutível, pois a crônica move-se entre “ser no” e “para” o jornal. Para o autor, o texto-crônica não visa à mera informação e afirma: O cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, apesar de reagir imediatamente ao acontecimento.

Segundo Melo (1994), há claras diferenças entre o uso do termo crônica no Brasil, quando comparado a outros países, o que faz com que, aqui, a palavra adquira significado e forma singulares. Classificando-a como “relato poético do real”, atribui a este texto duas características: fidelidade e crítica social. Para o autor, trata-se de um gênero jornalístico que se enquadra no chamado jornalismo opinativo.

... a crônica moderna gira permanentemente em torno da atualidade, captando, com argúcia e sensibilidade, o dinamismo da notícia que permeia toda a produção jornalística... Produto do jornal, porque dele depende para a sua expressão pública, vinculada à atualidade, porque se nutre dos fatos do cotidiano, a crônica preenche as três condições essenciais de qualquer manifestação jornalística: atualidade, oportunidade e difusão. (MELO, 1994, p. 154)

Segundo Coutinho (1997), a crônica é um gênero literário em prosa em que o menos importante é a qualidade do estilo. A efemeridade é característica constante, já que, devido a sua atualidade temática (como a notícia), tende a não ser um tipo de texto que pode ser lido em qualquer época, em qualquer

40 lugar. Para ele, o cronista parte de fatos aparentemente miúdos para fazer divagações, análises, críticas; comparando a crônica brasileira ao ensaio (dissertação curta e não metódica, sem acabamento, sobre assuntos variados) do tipo familiar, coloquial e informal. Entretanto, para Coutinho (1997), a crônica tem também uma natureza literária e é por meio dela que diferencia a crônica do texto jornalístico.

...enquanto o jornalismo (artigos, editoriais, tópicos) tem no fato o seu objetivo, seja para informar divulgando-o, seja para comentá-lo dirigindo a opinião, para a crônica o fato só vale, nas vezes em que ela o utiliza, como meio ou pretexto, de que o artista retira o máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espírito, de sua graça, de suas faculdades inventivas. A crônica é na essência uma forma de arte, arte da palavra, a que se liga forte dose de lirismo. É um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima ante o espetáculo da vida, as coisas, os seres. O cronista é um solitário com ânsia de comunicar-se. Para isso, utiliza-se literalmente desse meio vivo, insinuante, ágil, que é a crônica.” (COUTINHO, 1997, p.97)

A crônica possui a finalidade de agradar e distrair os leitores, dentro de um espaço curto e pré-determinado, criando, no decorrer dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o cronista e os seus leitores, por conter um comentário leve e breve sobre algum fato do dia a dia ou do cotidiano.

Como a crônica nacional aparece incialmente no jornal, os autores que caracterizam a crônica literária em forma geral recorrem à crônica jornalística. Pois como já vimos, ela se consolida como espaço heterogêneo onde convivem o pequeno ensaio, o conto, o poema em prosa, tendo como resultante a sua identidade única no mundo. Esta combinação de gêneros é responsável por dar características primordiais da crônica brasileira.

Segundo Coutinho (1997), a crônica tem relação muito próxima ao jornalismo devido à atualidade de seus assuntos. Mais especificamente, para ele, a crônica é um gênero literário em prosa em que o menos importante é a qualidade do estilo. A efemeridade é característica constante e o cronista parte de fatos aparentemente pequenos para fazer divagações, análises e críticas.

41 Entretanto, para Coutinho (1997), a crônica tem também uma natureza literária e é por meio dela que se diferencia a crônica do texto jornalístico:

...enquanto o jornalismo (artigos, editoriais, tópicos) tem no fato o seu objetivo, seja para informar divulgando-o, seja para comentá-lo dirigindo a opinião, para a crônica o fato só vale, nas vezes em que ela o utiliza, como meio ou pretexto, de que o artista retira o máximo partido, com as virtuosidades de seu estilo, de seu espírito, de sua graça, de suas faculdades inventivas. A crônica é na essência uma forma de arte, arte da palavra, a que se liga forte dose de lirismo. É um gênero altamente pessoal, uma reação individual, íntima ante o espetáculo da vida, as coisas, os seres. O cronista é um solitário com ânsia de comunicar-se. Para isso, utiliza-se literalmente desse meio vivo, insinuante, ágil, que é a crônica.” (Coutinho, 1997, p.97)

Por esses motivos, para Coutinho (1997), a crônica alcançou uma categoria que fez dela uma forma literária de requintado valor estético, gênero específico e autônomo tipicamente brasileiro.

Coutinho classificou as crônicas na literatura brasileira em:

crônica narrativa: tem em seu eixo uma história, aproximando-se do

conto;

crônica metafísica: constituída de reflexões mais ou menos filosóficas – dissertar filosoficamente;

crônica-poema em prosa: possuidor de um conteúdo lírico, onde se

percebe o extravasamento da alma do artista;

crônica-comentário: onde o escritor comenta os mais diversos

acontecimentos.

Segundo Moisés (1997), no instante em que o caráter literário assume a primazia, ou seja, deixa o olhar noticioso, investigativo para um caráter mais leve, bem humorado sobre acontecimentos que “saltam aos olhos” do autor, como uma resposta imediata, rápida aos fatos, a crônica deriva para o conto ou à poesia.

42 Para Cândido (1992), a crônica é um gênero que se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Simultaneamente, ela não possui pretensão, pois a crônica humaniza e também tem profundidade de significado, além de uma forma que se aproxima da perfeição. Nas palavras do autor, a crônica é um gênero que aqui se desenvolveu com originalidade. Esse gênero foi diminuindo de tamanho e ganhando um ar de superficialidade, deixando a sua função primeira, de informar, para comentar e divertir o leitor.

Na crônica brasileira, podemos afirmar que ocorre um tipo de fusão de dois tipos de textos: o ensaio, do qual retoma um certo desprezo pelo rigor acadêmico, levando a um tratamento mais informal dos assuntos abordados, e o folhetim, de onde absorve a dimensão Usual e Inusitado do fato noticioso ou do dia a dia.

Segundo Moisés (1984), a crônica tem subjetividade, não tem intenção ou repele a intencionalidade, é escrita no e para o jornal; as ideias na crônica surgem espontaneamente e sem compromisso. Assim, o cronista não visa persuadir, mas simplesmente, pensar em voz alta uma filosofia de vida, apoiada no efêmero cotidiano, tem reflexões despretensiosas de um poeta/ficcionista não de um ensaísta. Para Moisés (1997) a crônica se torna literária no instante em que é reunida e lançada em forma de livro, ganhando a atenção dos críticos literários.