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A criação de uma unidade wajãpi e sua referenciação discursiva

Capítulo 1: Apresentação

1.1 Breve apresentação histórica dos Wajãpi

1.1.1 A criação de uma unidade wajãpi e sua referenciação discursiva

Nos anos pós-contato oficial, as noções de território e identidades coletivas ainda não existiam porque, para os Wajãpi, a unidade de autonomia permanece sendo os wanã. No início dos anos 90, o conceito de jane ywy (nossa terra) passa a ser utilizado pelos Wajãpi com sentido semelhante ao nosso conceito de território. Nessa época, intensificam-se os contatos com outros índios, sobretudo com lideranças indígenas, e os Wajãpi criam, então, uma nova categoria genérica: indio kõ (os índios), ampliando as categorias tradicionalmente usadas para fazerem referência aos não-wajãpi (GALLOIS, 1988). Ao mesmo tempo, começa a ser forjada uma nova categoria, de identidade coletiva, necessária para se apresentarem ao “outro”. É nessa ocasião, que a categoria wajãpi passa a ser usada, pelos próprios Wajãpi, para referenciar o coletivo étnico nas relações do contato. Segundo Gallois (1988), ocorre também nessa época o retorno dos Wajãpi que viviam nas cidades de Macapá e Belém.

Em decorrência do contato oficial e diante das exigências políticas e sociais da sociedade envolvente, os Wajãpi passam, então, a se apresentar, aos não-índios, como uma unidade, um coletivo Wajãpi. A noção de coletivo passa a ser construída paralelamente à noção de território. De acordo com Gallois (2005):

[foi] no decorrer dos anos 80 do século passado, que os membros dos diferentes grupos locais dispersos se assumiram como Wajãpi,

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enunciando esse etnônimo em ocasiões que requeriam o uso de uma unidade social e política, antes raramente utilizada e que continua não fazendo muito sentido no âmbito de suas relações interpessoais ou intercomunitárias. Wajãpi, na verdade, é uma referência à língua compartilhada por esses diferentes grupos, dispersos historicamente numa vasta região na fronteira do Brasil com a Guiana Francesa. Para seus falantes, o uso de variantes de uma mesma língua nunca foi sinônimo de qualquer unidade social, ou de algum consenso político, servindo, ao contrário, ao jogo de contraposições entre subgrupos que podiam, como podem até hoje, enunciar suas diferenças internas e suas dissensões. (GALLOIS, 2005, p. 113-114).

A intensificação das relações com lideranças indígenas de outros povos e com representantes de órgãos governamentais brasileiros (FUNAI, Governo do Estado, Secretaria de Educação, entre outros) em reuniões para tratar de questões relacionadas, sobretudo, ao território, motiva a criação de um novo gênero discursivo destinado exclusivamente aos não-índios. Segundo Gallois (2002, p.212-213) esse novo gênero pode ser inserido na categoria “discurso político”, denominado pelos Wajãpi como “jane ayvu kasi (“nossas falas duras”)”. Esse discurso político destinado aos não-índios exige um padrão monológico, contrariamente ao padrão dialógico de todo discurso wajãpi11. Nas “falas para brancos”, as lideranças, normalmente, proferem seus discursos em Wajãpi, cabendo a tradução a algum jovem.

Discursivamente, surge a expressão “nós Wajãpi”, largamente presente no discurso oral e escrito, sobretudo em textos burocráticos.

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Gallois não utiliza a expressão dialógico nos termos bakhtinianos. A autora pretende salientar com essa expressão que o discurso político, entre os Wajãpi, é sempre uma “conversa”, um “diálogo cerimonial”, com regras composicionais próprias. Gallois (2002) descreve que os discursos políticos wajãpi, quando falados em wajãpi e enunciados para outros wajãpi, obedecem a um padrão dialógico em que um indivíduo fala e outro, em sua resposta, repete partes finais da fala do primeiro. Quando os Wajãpi se encontram para participar de grandes reuniões, o uso desse tipo de discurso é, de fato, predominante, sobretudo entre lideranças. O discurso político, utilizado nas conversas entre eles, é marcadamente distinto das conversas em contextos não-políticos. Em relação a esse tipo de fala, é comum ouvir os mais jovens comentando que precisam aprender a falar como os mais velhos falam.

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Como exemplo do uso dessa marca discursiva, recorro ao texto reproduzido abaixo, retirado da publicação “Livro do artesanato Waiãpi” (CTI, 1999), distribuída junto com peças de artesanato feitas pelos Wajãpi e vendidas em diferentes locais e ocasiões. Pode-se observar, no texto, a expressão “nós Wajãpi” claramente com a função de destacar uma unidade e de apresentar, ao não-índio, uma imagem coletiva desse povo:

Nós, Waiãpi, sabemos tudo e valemos muito.

Nós sabemos fazer reuniões. Sabemos fazer festas. Nós somos contadores, lutadores, brincalhões, guerreiros.

Nós, Waiãpi, sabemos fazer filhos para o povo Waiãpi não acabar. Nós, Wajãpi, somos inteligentes também.

Sabemos ler e escrever, fazer projetos, usar dinheiro... Sabemos dirigir carro, motor de popa.

Sabemos manter a nossa floresta, os rios, nossas famílias... Sabemos criar filhos de animais como filhos de humanos.

O “nós Wajãpi” é bastante representativo do discurso para brancos porque evidencia, externamente, uma unidade, que, de fato, inexiste internamente, produzindo uma imagem de unidade adequada ao contexto político e reivindicatório.

Não é à toa, portanto, que o “nós, Wajãpi” introduza, textualmente, grande parte das comunicações de caráter institucional escrita por jovens e adultos Wajãpi. Afinal, se a unidade exigida pelo contato é uma informação nova para o próprio grupo e funcional apenas para as relações do contato, nada mais natural que seja enunciada e anunciada recorrentemente na interlocução entre wajãpi e não- wajãpi.

Essa marca discursiva, quando endereçada para determinados destinatários, carrega consigo a característica de ser uma informação nova apenas para os autores dos documentos e não para o interlocutor que, em sua maioria, mas sem

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generalizar, não pressupõe, a julgar pelo caráter das propostas de intervenção e de apoio à autonomia Wajãpi, que a unidade enunciada não exista.

No exemplo apresentado a seguir, pode-se ver essa mesma expressão, agora reforçada pela palavra “lideranças”, pois se trata de um ofício destinado a algumas autoridades de órgãos governamentais do Amapá e o remetente se coloca na mesma posição de autoridade do destinatário: lideranças wajãpi escrevem para lideranças karaikõ. O ofício, de 2006, foi escrito por Kaitona Wajãpi, então presidente do Conselho das Aldeias Wajãpi – Apina –, como uma manifestação de descontentamento com o não comparecimento de representantes de órgãos governamentais locais a uma reunião proposta pelos Wajãpi. No mesmo documento, encontramos o trecho “os outros órgãos não respeitaram os Wajãpi”. Novamente, podemos observar a clara remissão que a expressão “os Wajãpi”, com a idéia de coletivo, faz à questão territorial.

Nós, lideranças Wajãpi, convidamos os órgãos do governo: Funai/Macapá, Funasa/AP, Procuradoria Geral da República (PGR/AP), Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas (Sepi), Secretaria de Estado da Educação (Seed), Companhia de Eletricidade do Amapá (Cea) e Ibama/AP para participar da reunião na aldeia Aramirã/T.I.W., no dia 12 de junho, e darem resposta de como irão atender as nossas reivindicações.

Nossas reivindicações foram apresentadas no documento "Prioridades dos Wajãpi para 2006", que foi entregue com antecedência para esses órgãos governamentais.

Escrevemos o documento para explicar novamente para os órgãos do governo – pois muitos não estão dando o apoio que precisamos – que a nossa decisão de morar em aldeias espalhadas e distantes dos postos é importante para fortalecer o nosso modo de vida e que não vamos desistir de cumprir o que decidimos.

Dos órgãos convidados para a reunião só o Ibama/AP compareceu. Os outros órgãos não respeitaram os Wajãpi. Nós não queremos que isso continue acontecendo, porque está atrapalhando muito o nosso trabalho.

Por isso, decidimos fazer essa nota de repúdio aos órgãos governamentais que não compareceram a reunião: Funai/Macapá, Funasa/AP, Procuradoria Geral da República (PGR/AP), Secretaria Extraordinária dos Povos Indígenas

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(Sepi), Secretaria de Estado da Educação (Seed) e Companhia de Eletricidade do Amapá (Cea).12

Ainda com o contato, outras categorias abrangentes surgem, muitas delas construídas no bojo dos cursos de formação. Os Wajãpi costumam fazer referência aos adultos, que recebem educação formal, designando-os como “os professores”, “os agentes de saúde”, “os microscopistas” ou “os pesquisadores”, sendo que cada um desses grupos abrange indivíduos que, tradicionalmente, não seriam agrupados em uma mesma categoria por pertencerem a grupos locais distintos.

1.1.1.1 A criação da unidade linguística

Coube à categoria dos professores a criação de uma unidade linguística: a língua wajãpi escrita.

Como veremos mais adiante, a grafia dessa língua foi criada por missionários do Summer Institute of Linguistics – SIL13. Como toda proposta de grafia feita por essa instituição, tratava-se de uma escrita fonêmica em que cada som corresponde a uma única letra. Esse tipo de grafia pressupõe alto grau de abstração e a participação de um especialista, o linguista, no caso, porque é baseado em um conhecimento não consciente do falante. Durante a década de 1980 e começo de 1990, os Wajãpi que frequentavam a escola e, por ventura, escreviam na língua materna, utilizavam essa grafia, referida por eles como “a grafia do missionário”. A partir do primeiro curso de formação de professores promovido pelo Iepé (então CTI), cujo início é justificado pelo contexto educacional da época, em que a língua indígena deveria passar a ser a língua da educação

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Disponível em http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=38376 Acessado em 03 de fevereiro de 2010.

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O SIL é uma organização não-governamental que trabalha com minorias etnolinguísticas ao redor do mundo. No Brasil, o SIL atua sob o nome de Associação Internacional de Linguística. No site podemos ler que o trabalho dessa instituição junto às minorias linguísticas é motivado pela crença em que todas as pessoas são criadas à imagem de Deus, mas que não há proselitismo de sua parte. Disponível em < http://www.sil.org/sil/> Acessado em 30/11/2010.

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escolar indígena, os então recém-professores em formação se viram diante da tarefa de escrever, preparar materiais de alfabetização e ensinar em sua língua materna. É então que surge, para eles, o problema da padronização da língua pela escrita. A criação de uma grafia passa a régua em diferenças dialetais, o que não foi aceito de forma passiva pelos professores wajãpi, provenientes de grupos locais distintos. Nenhum deles queria abrir mão de fixar a variedade de seu grupo e ao mesmo tempo não seria possível aceitar a opção alternativa de registrar todas as variedades. Presenciei inúmeras discussões sobre como grafar, por exemplo, as poucas palavras que não obedecem ao padrão silábico consoante- vogal, palavras terminadas em r- e n-, já que elas admitem ou não a presença de uma vogal baixa, ocasionando ressilabificação dessas palavras. Durante muito tempo, o resultado dessas discussões era pelo não uso da língua wajãpi na escola, coroado com frases inflamadas do tipo “a língua wajãpi é muito difícil.” Hoje, passados vinte anos das primeiras discussões coletivas sobre estabelecimento de grafia, muitos ajustes foram feitos, nenhum sem resistência ou discussão. Na medida em que outros conceitos de unidade foram sendo incorporados pelos Wajãpi, foi ficando mais fácil para eles compreenderem que a criação de unidades requer escolhas. Há uma grafia razoavelmente unificada a ser seguida, mas ainda podem ser observadas muitas variações, sobretudo relacionadas à concepção do que é uma palavra na língua e às notações dos sons nasais e suas modificações nos segmentos que estão à sua margem14.