• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 4: Modos de escrever: a escrita escolar na segunda língua

4.2 Marcas composicionais da tradição oral

4.2.1 Para quem os Wajãpi escrevem?

4.2.1.1 Léxico em língua wajãpi

Um dos sentidos que solicitam a atualização do leitor para saírem da obscuridade diz respeito à compreensão do léxico em língua wajãpi. Os textos apresentam pouquíssimas palavras nessa língua, mas em muitos deles sua existência pode ser tomada como uma estratégia do autor diante de um leitor com competência suficiente para interpretar tais palavras.

Nos textos abaixo, as palavras em negrito são todas wajãpi. O uso dessas palavras em um texto em língua portuguesa pode ser motivado por alguma dificuldade de tradução, mas arrisco dizer que não é esse o caso desses textos. Muitas dessas palavras fazem parte do vocabulário de qualquer não-índio que já conversou informalmente com os Wajãpi por mais de uma vez.

138

O texto 1 é um fragmento mítico que narra um evento ocorrido em uma época em que janejarã convivia com os homens. Janejarã é o criador de toda a humanidade. Nesse texto, uma palavra especificamente, ojerejere60, é um neologismo usado somente no diálogo entre alguns Wajãpi e alguns não-índios. A palavra mais usada para dizer que alguém está bêbado é –ka´u. Mais especificamente ainda, essa palavra começou a ser usada pelos alunos do curso de formação em que esse texto foi escrito para designar o modo de andar, quando bêbados, de alguns não-índios, dentre os quais está incluído o professor da disciplina em questão. Texto 1

Eu vou escrever história antigo sobre o janejarã [criador].

Muito tempo atrás o nosso avó encontrava janejarã, o nosso avó ficava tomava kasiri [bebida de mandioca]. A esposa do Janejarã ficava ojerejere [bêbada], ele chegava perto dela conversava que bom que você bebi caxiri. O ele tocou a flauta o nosso avó escutava som da flauta o tamokõ falava para ele como que você tocar ele falou para eles. Deixa eu tocar primeiro para vocês ouvirem, aí janejarã tocou flauta dele, wirirãwirirã!!!! toto!!!! Eu vim de Araguari toto!!!! E daí o nosso avó falava para o janejarã deixa eu tocar seu flauta está bom. Eles tocava errado outro pegou tocou errado de novo. O janejarã falou para eles cuidado vocês não pode deixar cair no chão se vocês deixar cair no chão meu flauta vai quebra. Outro não acreditava na palavra do janejarã, tocou outro pegou e de repente eles deixou cair flauta dos janejarã quebrava aí ele ficou bravo com nosso avó. O janejarã falava para eles, agora eu vou fazer montanha da floresta o

janejarã foi embora não sei para onde ele foi. Deixou a mulher dele, ela

estava dormido depois ela acordou de tarde ela ficou gravidez. Ela foi atrás

60

A palavra em questão aparece conjugada: morfema de 3ª. Pessoa (o-) + radical (-jerejere). Ela é usada para referir um movimento de desequilíbrio, de coisas balançando de um lado para o outro, semelhante ao vôo de urubu quando não está plainando.

139

do janejarã. Ela conversou filho na barriga o seu pai passou por aqui sim meu passou por aqui. Depois ela conversou de novo o filho dela pediu para mãe eu quero folha novo.

O texto abaixo é a narrativa de um fragmento mítico sobre o dilúvio (yyporu). Texto 2

Muito tempo atrás taivigwerã não acreditava a fala de Deus sobre o

yyporu que vai passar, mas taivigwerã falam que Deus é metira yyporu

não vai passar, e alguns taivigwerã acreditam fala de deus. Depois deus fez uma canoa bem grande igual como navio para taivigwerã que acreditam a fala de deus para ficar dentro dessa canoa grande para não morrer em yyporu, não somente taivigwerã que vai ficar dentro dessa canoa também animais, aves, pássaros, cobras que vai ficar dentro dessa canoa grande, o deus também vai ficar.

Depois yyporu okwa (passaram) taivigwerã, animais, aves, pássaros, cobras e deus ficaram tranquilo dentro desse navio, e outros taivigwerã que não acreditava a falar deus morreram todos na água do yyporu, porque eles antes não acreditava a fala de deus sobre o yyporu

por isso.

Depois yyporu secaram bem lenta, quando terminaram de secar o deus perdiu para urubu ir procurar os mortos de taivigwerã se eles ainda estão vivendo, depois urubu foi e comeram os mortos de taivigwerã.

Eu escrevi na língua Wajãpi yyporu, os não-índios falam dilúvio. Agora você vai enteder melhor yyporu.

O sentido dos dois textos estará mais próximo da provávelintenção do autor se as palavras em wajãpi foram compreendidas. O autor do texto 1 usa uma palavra (ojerejere) que ele sabe que será compreendida por seu leitor; o autor do texto 2

140

opta por usar a palavra yyporu em sua língua materna e, ao final do texto, retoma o momento da enunciação explicando essa opção: “Agora você vai entender melhor yyporu.” As palavras tamokõ e taivigwerã designam, ambas, antepassados. O que diferencia os termos é a localização temporal desses antepassados. Gallois (1994) argumenta que como os critérios de temporalidade – tempo histórico e mítico – não são distintivos para a classificação dos gêneros discursivos em Wajãpi, a distinção entre as categorias tamokõ e taivigwerã também não será precisa. Para fins didáticos, os Wajãpi muitas vezes explicam que tamokõ é uma categoria que abarca antepassados que podem ser nomeados, a partir de informações precisas sobre pessoa e lugares, expressas nas narrativas; taivigwerã é uma categoria que abarca antepassados que não podem ser mais nomeados e cuja genealogia não pode ser mais recuperada. Levando-se que em conta que a narrativa é o “lugar” onde essas categorias aparecem, em uma linha temporal, os tamokõ são os personagens das narrativas sobre eventos que ocorreram em um passado recente, e os taivigwerã são personagens de narrativas sobre eventos que ocorreram em um passado ancestral. Como atestado por Gallois (1994), os textos 1 e 2 mostram que o uso dessas categorias é mais complexo do que sua associação às duas temporalidades: histórica e mítica. O texto 1 é um fragmento mítico e seu autor utiliza a palavra tamokõ. O texto 2 também é um fragmento mítico e seu autor optou por usar taivigwerã.

A mudança de código é vista pelos estudos sobre o bilinguismo como uma estratégia discursiva do falante/escritor e não como um desvio, uma deficiência de conhecimento da segunda língua (ROMAINE, 1995). O uso dos empréstimos lingüísticos (entendido aqui como o léxico da língua materna na segunda língua) é interpretado, portanto, não como uma falta de competência do autor. Ao contrário, parece-me que o autor tem competência suficiente para saber que a tradução desses termos, em língua portuguesa, é complexa. Além disso, o uso de palavras em língua wajãpi também atesta a confiança que os autores tiveram na competência de seu leitor para interpretar adequadamente essas palavras.

141