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Capítulo 1: Apresentação

1.4 Apresentação e organização do corpus

Como mencionei no início deste capítulo, fui recolhendo vários textos escolares e não escolares ao longo de meu trabalho como professora dos Wajãpi porque tinha a intenção de utilizá-los em pesquisas futuras que pudessem contribuir, de alguma forma, com o ensino de português como segunda língua para esse povo. Ao definir o tema de minha pesquisa, o primeiro recorte foi em relação ao contexto de produção: selecionei apenas textos produzidos na escola; exclui dessa relação correspondência pessoal e ofícios enviados a órgãos governamentais ou não- governamentais e outros textos que os Wajãpi me davam contendo desenhos e narrativas. A seleção dos textos foi uma das tarefas mais difíceis não somente pela quantidade, mas porque a quantidade e a diversidade possibilitavam uma combinação muito grande de variáveis que poderiam ser utilizadas como critérios de seleção. Selecionei, então, aproximadamente 150 textos escritos entre os anos de 1998 e 2009 nas disciplinas de Língua Portuguesa como segunda língua (LP2), História, Antropologia e Oficina de Dicionário de Saúde (subdisciplina da disciplina Língua Materna), ministradas nos cursos de Magistério I e II, Formação Básica para Agentes de Saúde e Formação de Pesquisadores27. Os textos que não foram

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No Capítulo 3, apresento com detalhes o Programa de Educação Wajãpi, dentro do qual essas formações são desenvolvidas.

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produzidos nas disciplinas que estavam sob minha responsabilidade, foram-me cedidos por seus respectivos docentes28.

A característica comum à totalidade dos textos é que nenhum deles foi feito em atividades didáticas direcionadas ao ensino de um gênero específico. Quero dizer com isso que a concepção de ensino de texto que regeu a produção dos textos em questão era a do texto como objeto de uso (ROJO e CORDEIRO, 2004), predominando a perspectiva de que o texto é um “suporte para o desenvolvimento de estratégias e habilidades de leitura e redação” (ibid., p.8). O desenvolvimento das habilidades escritas nas aulas de LP2 foi trabalhado de forma assistemática devido às características mencionadas, no Capítulo 3, sobre os diferentes níveis de alfabetismo e graus de letramento dos alunos. Muitas vezes, as aulas de LP2 eram destinadas à alfabetização29 simultaneamente ao ensino das habilidades orais na segunda língua.

Como meu objetivo foi verificar quais marcas constitutivas de um modo oral de transmissão estavam presentes nos textos e os significados dessas marcas, foi necessário reunir a maior diversidade possível de textos escolares. O texto escolar terá, necessariamente, uma relação dialógica com sua instrução (GOMES SANTOS, 1999). Esta, por sua vez, refletirá a intenção do professor quanto ao gênero que ele espera ser materializado pelo aluno. Dessa forma, os textos aqui analisados são tomados como “respostas” às instruções recebidas pelos alunos à época em que foram produzidos.

O estudo dos gêneros não foi objeto de análise da pesquisa que deu origem a esta tese, no entanto, como faço, ao longo da análise, alguma referência à relação entre gênero e enunciado da atividade para a qual os textos analisados foram escritos, recorro à definição expressa em Bakhtin (1997, p.280), de que gêneros

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Os textos que não foram produzidos em minhas aulas foram cedidos por Silvia Cunha, Eva Gutjahr, Igor Scaramuzzi, Dominique Gallois e Joana Cabral de Oliveira.

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Devo lembrar que a maioria dos alunos que ingressaram nos cursos de formação até 2002 foi alfabetizada em português e não em wajãpi, por isso às aulas de português como segunda língua ministradas nos cursos de formação somavam-se o ensino das primeiras técnicas da escrita.

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do discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados.” Para esse autor o enunciado é a manifestação linguística por excelência: “A língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (p.282). Se gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados, a multiplicidade de gêneros será tão vasta quanto é amplo o espectro da atividade humana. A amplitude de possibilidades de existências de gêneros não inviabiliza a estabilidade de enunciados interna a cada gênero.

Outra noção importante é a de “tipo textual.” Para Marcuschi (2005, p.22-23) tipo textual é definido por sua natureza linguística intrínseca e por sua dominância na maioria dos enunciados de um determinado texto; sua nomeação como “narração, argumentação, descrição, injunção e exposição” é feita a partir de um “conjunto limitado de categorias teóricas determinadas por aspectos lexicais, sintáticos, relações lógicas, tempo verbal.” O corpus da pesquisa em questão contem textos em que predomina o tipo narrativo.

Nos cursos do Programa de Educação Wajãpi (PEW), que, como mencionado no Capítulo 3, têm a língua portuguesa como língua de instrução, o trabalho de leitura prioritário, inicialmente, foi a apresentação de gêneros escritos em língua portuguesa, pertinentes a esferas sociais de atividades às quais os Wajãpi estivessem envolvidos em suas atividades profissionais relacionadas ao magistério, à atuação no posto de saúde e nas associações, como por exemplo: atas, relatórios de aulas ou de atuação no posto de saúde, cartazes, cartas pessoais e oficiais, manuais, projetos, notícias etc. A produção escrita contemplou uma diversidade menor de tipos de textos. Aponto, novamente, que o gênero não foi tomado, nos cursos, como objeto de ensino no sentido de “enfocar, em sala de aula, o texto em seu funcionamento e em seu contexto de produção/leitura, evidenciando as significações geradas mais do que as propriedades formais que dão suporte a funcionamentos cognitivos.” (ROJO e CORDEIRO, 2004, p.11). O trabalho com o texto foi direcionado muito mais para o ensino de suas

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propriedades globais e as atividades de escrita guiaram-se “mais pelas formas e pelos conteúdos que pelo contexto e pelas finalidades dos textos.” (ibid., p.10). Para a pesquisa, foram selecionados relatos de experiência pessoal, receitas culinárias, resumos de pesquisa, relatos de eventos recentes e fragmentos míticos. Todas essas classificações foram criadas por mim com propósitos analíticos e não correspondem a categorias nativas dos alunos. Baseei-me unicamente no contexto de produção de cada texto. É importante salientar que os relatos de experiência pessoal e as narrativas que retomam a memória coletiva do grupo foram produzidos com a finalidade de desenvolver estratégias e habilidades de escrita, sem usos extraclasse. Os resumos de pesquisa tiveram como objetivo o acompanhamento das pesquisas dos Wajãpi, que frequentam o curso de Pesquisadores. As receitas foram parte de uma atividade de elaboração de material de leitura feita pelos pesquisadores wajãpi.

Essa classificação foi baseada apenas na expectativa do professor ao elaborar a instrução para a atividade, ao qual o aluno replicou com seu texto, de acordo, novamente, com a concepção de Bakhtin (op.cit., p.290) de que todo discurso gera uma atitude responsiva de seu interlocutor.

Os textos vão apresentados digitados. No relatório de qualificação eu os apresentei fac-similados, mas os participantes da banca comentaram as dificuldades que tiveram em ler o material. Ao digitá-los, procurei fazer o mínimo de alterações. Corrigi apenas as palavras que não estavam grafadas corretamente e efetuei algumas concordâncias nominais e verbais de gênero e número; mantive a ordem original das palavras da sentença. Quando julguei que a construção de sintagmas poderia causar prejuízo na leitura, apresentei uma alternativa entre colchetes. A tradução das palavras em Wajãpi é apresentada, ao lado delas, também entre colchetes. Todos os textos estão dentro de um box e estão numerados.

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