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Capítulo 1: Apresentação

1.2 Educação Escolar Indígena no Brasil

1.2.1 Bilinguismo e Interculturalidade na EEI

Nas reformulações pelas quais passou a educação escolar indígena ao longo dos anos, a posição que as línguas, indígena e portuguesa, desempenhou na escola

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sempre foi central. Maher (2005; 2006) apresenta três modelos de escolarização, todos definidos pelo modo em que as línguas, especialmente a indígena, eram ensinadas e aprendidas. O primeiro deles foi denominado modelo assimilacionista de submersão. Nesse modelo, como o próprio nome sugere, não havia qualquer tentativa de se promover educação linguística e culturalmente específica, ao contrário, o objetivo era que o aluno fosse assimilado à sociedade nacional e, portanto, deveria, na medida em que fosse aprendendo o português, ir esquecendo sua língua indígena. Modelo bastante eficiente para seus propósitos se levarmos em conta a noção de língua como portadora de um arcabouço de saberes; no entanto, pedagogicamente ineficiente, se levarmos em conta a importância do contexto para o processo da aprendizagem. O segundo modelo, largamente encontrado até hoje, é chamado modelo assimilacionista de transição (MAHER, 2005; 2006). Tal modelo é uma tentativa de resolver os problemas de aprendizagem trazidos pelo primeiro. O que ocorre nesse caso é a alfabetização em língua materna para posterior introdução da língua portuguesa (como segunda língua). Mas, para alfabetizar em língua indígena é preciso haver uma grafia e línguas de tradição oral, como são as línguas indígenas, não possuem, antes do advento da escola, grafia; logo, para se alcançar o objetivo da assimilação via o modelo de transição foi preciso criar grafias para essas línguas o que demanda pesquisa realizada por pesquisadores não-índios. O modelo de enriquecimento cultural e linguístico (MAHER, 2006), fomentado dentro de um novo contexto histórico, é o modelo que está por trás da atual concepção de educação escolar indígena atualmente vigente. De acordo com esse modelo, recomenda-se que a língua indígena seja a língua de instrução da escola e não somente a língua da alfabetização, e que a língua portuguesa seja ensinada como segunda língua, nos casos em que há bi ou multilinguismo (BRASIL, 1998). Esse último modelo deve ser compreendido tendo como sua origem a crença na instituição escolar como uma agência com vigor e força suficientes para estimular ou coibir o uso de uma língua. Essa perspectiva de escola conjugada a inúmeros relatos de índios que passaram por uma escolarização desrespeitosa em relação aos conhecimentos e

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línguas de seu povo, sobretudo em relação aos modelos praticados nos internatos, deram sustentação às orientações expressas nos textos da política pública brasileira para essa modalidade de educação.

Especificamente ao uso das línguas no processo de escolarização, tem-se que:

o que se quer promover é um bilinguismo aditivo: pretende-se que o aluno indígena adicione a língua portuguesa ao seu repertório linguístico, mas pretende-se também que ele se torne cada vez mais proficiente na língua de seus ancestrais. Para tanto, insiste-se na importância de que a língua de instrução seja a língua indígena ao longo de todo o processo de escolarização e não apenas nas séries iniciais. (MAHER, op.cit., p.22).

O bilinguismo não é uma condição recente da educação para índios. Barros (1994) apresenta um panorama sobre a constituição da educação bilíngue para índios na América Latina. Segundo a autora, a educação bilíngue, levada a cabo a partir da concepção de um bilinguismo de subtração, foi uma das estratégias para a integração do índio à sociedade nacional. Barros (op.cit.) argumenta que o modelo de educação bilíngue para índios esteve atrelado, desde seu início, à atuação do linguista. A linguística americanista, praticada no início do século passado, rompeu o preconceito evolucionista que afirmava haver hierarquia entre línguas ágrafas e línguas literárias, justamente porque a existência ou ausência de práticas escritas não era determinante na análise dos dados proposta por essa corrente. Dessa forma, e como consequência desse pressuposto de igualdade entre as línguas, criou-se um outro equívoco teórico que postulou a correspondência exata entre oralidade e escrita. Esse postulado foi o responsável pela criação de grafias para as línguas indígenas baseadas em um recurso linguístico útil à análise fonológica – o alfabeto fonético (estipulando símbolos para determinados modos e pontos de articulação) – que resultou na equação para cada som, uma só letra ou “para cada fonema, um só símbolo” (BARROS, 1994, p. 18). O alfabeto fonético, resultante dessa equação, é a base da maioria das grafias das línguas indígenas brasileiras, é esse o caso da grafia da língua Wajãpi.

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Barros (op.cit.) localiza o México da década de 1930 como a origem da atuação do linguista na educação bilíngue. O linguista laico, e posteriormente o linguista- missionário, integrante do Summer Institute of Linguistics (SIL), tornou-se figura central para auxiliar a integração do índio na sociedade nacional, via instituição escolar (BARROS, op.cit., p.20), visto que o estudo das línguas indígenas era extremamente útil a um projeto educacional que considerava que as “línguas indígenas poderiam ser usadas como um método mais eficaz de ministrar conhecimentos científicos e informações sobre a nação, quando utilizadas na sala de aula pelo professor indígena”. Portanto, a presença do linguista como especialista capaz de efetuar o estudo fonológico da língua indígena e a criação de uma grafia foi central na implantação, e difusão por toda a América Latina, do modelo bilíngue de educação escolar indígena. Até recentemente, a pesquisa no campo da linguística indígena apresentou maior concentração de publicações na área da análise fonológica (FRANCHETTO, 2000).

Até meados do século passado, o Brasil não tinha a tradição da educação bilíngue para povos indígenas. A alfabetização em português, seguindo o padrão das escolas rurais, não demonstrava resultados satisfatórios. Segundo Collet (2006, p. 120) a parceria entre Serviço de Proteção ao Índio (SPI), o órgão tutelar à época, e SIL não veio a se efetivar porque a ideologia do órgão “pregava um indigenismo independente de qualquer organização missionária”. Os integrantes do SIL associaram-se, então, ao Museu Nacional do Rio de Janeiro justificando seu interesse em promover a descrição das línguas indígenas brasileiras. A atuação do SIL, no campo da descrição linguística está na origem da linguística indígena brasileira, ainda que tal atuação tenha sido, posteriormente, alvo de severas críticas.

Foi somente após a criação da Funai que

o SIL conseguiu em 69 seu primeiro convênio com o órgão indigenista, passando a controlar oficialmente a Educação Indígena através da formação de centros de treinamento de professores indígenas. O acesso da missão às atividades de Educação Indígena não se deu apenas através do convênio de 69, mas sobretudo por

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uma Portaria da FUNAI, de 1972, que torna obrigatória a educação bilíngue no país. Com isso, o principal instrumento de integração da população indígena passou a ser a alfabetização em língua indígena e não em português. O modelo de escrita indígena proposto é a sua definição linguística: "para cada fonema um único símbolo" (FUNAI, Portaria nº 75/72). (BARROS, 1994, p. 28-29).

A atuação pedagógica do SIL (e de sua parceira Missão Novas Tribos do Brasil) pode ser diretamente observada em inúmeras cartilhas de alfabetização em línguas indígenas que circularam nas escolas das aldeias, em todo o território nacional. Indiretamente, o modelo para o estabelecimento de grafia também pode ser observado em outras cartilhas produzidas por organizações não religiosas. O modelo introduzido pelo SIL para a elaboração de grafias e descrição das línguas indígenas brasileiras é, até hoje, encontrado na atuação de muitos linguistas brasileiros; segundo Franchetto (2000, p.167), na linguística indígena brasileira predomina, como herança do SIL, “uma figura de identidade dupla, o linguista-fazedor-de-escritas” que além da pesquisa da língua, torna-se assessor dos programas de educação para a elaboração de grafias e materiais didáticos. Outra característica dessa vertente de educação escolar indígena, diretamente associada ao ensino bilíngue, pode ser traduzida pelo princípio da interculturalidade. Esse conceito foi trazido para o debate da educação escolar indígena com a finalidade de promover algum contrapeso à predominância dos conhecimentos ocidentais veiculados pelo currículo escolar. De acordo com Maher (2005):

Como a escola nos moldes ocidentais entra nas aldeias em decorrência do contato com o outro, com os não-índios, a questão da interculturalidade, isto é, do conseguir fazer dialogar comportamentos e conhecimentos construídos sob bases distintas e frequentemente conflitantes, é atualmente entendida com o esteio, a razão de ser da escola indígena. O desafio posto pela interculturalidade não pode, nesse contexto, ser entendido como um ‘plus’, como um enriquecimento, como um bônus – como parece ser o caso na maior parte das escolas não-indígenas – porque o investimento no estabelecimento do diálogo na capacidade de resolução de conflito intercultural é o alicerce, é o que justifica

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mesmo a existência dessa escola, é o que dá a ela relevância política. (MAHER, 2005, p.93).

A razão da inclusão da interculturalidade como princípio definidor de uma nova modalidade de educação seria a contraposição dos regimes de conhecimento, indígena e científico, presentes na escola. O que se tem, na realidade, é o uso de um conceito de difícil definição cuja extensão é grande o suficiente para que práticas pedagógicas diversas possam ser classificadas como interculturais.

Collet (2006) demonstra que o princípio da interculturalidade desponta já na atuação do SIL que tinha como direcionamento pedagógico uma educação realizada nas aldeias, oposta ao modelo dos internatos, anteriormente predominante. A interculturalidade se manteve na educação laica, embora tenha sofrido algumas modificações conceituais. A autora pontua os Estados Unidos do início da década de 70 como o início do discurso da interculturalidade associado ao discurso pedagógico tendo como meta a valorização cultural das minorias étnicas. Collet (op. cit.) apresenta dois pontos de vista diferentes sobre o princípio da interculturalidade associado à educação escolar:

Um deles aposta na ‘educação intercultural’ como um avanço em relação às políticas assimilacionistas anteriores. O outro ponto de vista considera que a ‘educação intercultural’ é apenas uma adequação às mudanças que têm ocorrido no mundo nas últimas décadas, as quais seguiriam um modelo “neoliberal” de dominação, que, sob aparência de inclusão, excluiriam cada vez mais certas parcelas da população. (COLLET, 2006, p.116).

Desde a última década do século passado, a educação escolar indígena é oficialmente definida por essas características: específica, diferenciada, bilíngue e intercultural. Tais características se espalharam para além da educação básica e podem ser encontradas em cursos superiores voltados para esse mesmo público, tais como as licenciaturas interculturais indígenas oferecidas em diversas universidades públicas do país.

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