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Capítulo 4: Modos de escrever: a escrita escolar na segunda língua

4.2 Marcas composicionais da tradição oral

4.2.1 Para quem os Wajãpi escrevem?

4.2.1.2 Termos de parentesco

O uso dos termos de parentesco, em língua portuguesa, apareceu em vários textos.

O texto abaixo é um bom exemplo para compreender o uso desses termos: Texto 3

História da viagem pelo rio Aruwa´ity.

Uma vez, em 1999 nós fomos fazer vigilância junto com Garcia, Ex,

meu cunhado que faleceu no ano de 2000, Ex, presidente, Seki.

Saímos bem fim da tarde daqui da aldeia Aramirã, pelo barco até onde é o divisão do rio Aruwa´ity com o rio feliz. Chegamos lá mais ou menos 17:horas, paramos para fazer acampamento e fazer o nosso jantar para dormi satisfeito.

No outro dia, partimos bem cedo para chegar até o garimpo do garimpeiro que é chamado de Josias. Chegamos lá às 16:horas, paramos para fazer o nosso acampamento e a minha tia Kasawa e o meu tio Tãtare cortarão lenha para fazer fogo.

Depois que nós fazer tudo esse serviço, atamos nossas redes para descansar.

A minha tia Kasawa fez 50 litros de bacaba para o nosso janta e cozinhou moqueado de trairão.

De repente 3 horas de madrugada o Sr Garcia ia descer da rede para fazer xixi e ele acabou metendo o pé dele na cinzeira do fogo, queimou tudo o pé dele, até pelo calcanhar.

Quando amanheceu, ele nem falou para gente. Já passou às 9 horas e ele ainda embrulhado no cobertor. O meu tio Seki balançou a rede dele e a cinza acordou, e ai que ele falou: - Eu queimei o meu no fogo.

No outro dia nós trouxemos ele de volta, por isso a vigilância não foi tão legal.

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O evento narrado é uma parte de uma viagem para fazer a vigilância dos limites da Terra Indígena Wajãpi. Os personagens são o narrador-enunciador do texto, seu cunhado (que no momento da enunciação da narrativa já havia falecido), seu tio Seki e o Sr. Garcia. Ao longo da narrativa aparecem outros dois personagens, a tia Kasawa e o tio Tãtare. Todos os personagens são referidos pelos termos de parentesco antes dos nomes próprios, exceto o Sr. Garcia, que recebe um pronome de tratamento em um dos trechos da narrativa. O personagem Seki é primeiramente referido como “ex presidente” e em seguida como “meu tio”. O uso do nome próprio entre os Wajãpi não é considerado uma atitude respeitosa porque o nome é algo pessoal e privado (IEPÉ, 2006). O nome próprio é usado na interação com o não-índio porque os Wajãpi entendem que essa é uma prática dos não-índios. Os Wajãpi nunca se referem, entre eles, aos seus parentes ou não-parentes pelos nomes, mas sim pelos termos de parentesco cuja relação é definida sempre pelo enunciador:

Entre eles, os Wajãpi [...] utilizam termos de parentesco, ou seja palavras que identificam categorias de parentes, classificadas como “pais”, “mães”, “filhos”, “filhas”, “irmãs”, “irmãos”, ou como não- parentes, como são, em sua concepção, as “irmãs do pai”, os “irmãos da mãe”, etc. O uso dessa terminologia permite que qualquer indivíduo saiba, desde sua infância, quais são seus parentes, não só em sua própria aldeia, mas em qualquer outra. Assim, ele saberá desde cedo com quem ele pode, ou não pode casar. Saberá também a quem recorrer quando está visitando uma comunidade distante. (IEPÉ, 2006, p.37).

No texto 3, há duas interpretações possíveis para justificar a presença dos nomes próprios ao lado dos termos de parentesco: ou porque a narrativa foi enunciada em português ou porque a narrativa foi enunciada por escrito. Não é possível saber o que determinou essa opção do autor e elas não são, necessariamente, excludentes. Pelo que é razoável supor seria a lógica do autor do texto, os Wajãpi são sempre referidos pelo termo de parentesco e pelo nome próprio; a ausência do termo de parentesco junto ao nome “Garcia” e a presença do pronome de tratamento sugerem a interpretação de que esse personagem é um não-índio.

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Outro dado curioso, é que o parente falecido é o único não nomeado em toda a narrativa.

O próximo texto traz outro exemplo do modo como os termos de parentesco são usados pelos autores:

Texto 4

Passado eu fui caçar no mato e matei um caititu e cutia e depois eu voltei para casa a minha mulher preparou depois quando ficou pronto ela dividiu para minha sogra.

No outro dia eu fui de novo pescar na lagoa eu peguei 20 peixes. Quando eu vim andando eu encontrei um jabuti no caminho, aí eu encontrei meu

sogro ele perguntou para mim meu genro pegou peixe aí eu responde

peguei 20 peixes um jabuti que eu encontrei no caminho.

O autor menciona que a esposa, depois de cozinhar a carne que o marido trouxe, ofereceu um pedaço para sua mãe: “depois quando ficou pronto ela dividiu para

minha sogra.” Logo no final do texto, ocorreu um diálogo entre o narrador e seu

sogro e, novamente, aparecem termos de parentesco: “aí eu encontrei meu sogro ele perguntou para mim meu genro pegou peixe.” Esse segundo exemplo de uso do termo de parentesco mostra a forma como os Wajãpi se remetem a outros Wajãpi na conversação cotidiana; eles nunca usam os nomes próprios, a referência é sempre feita pelos termos de parentesco. Os termos de parentesco são usados entre a primeira e segunda pessoa, como ocorre no diálogo reproduzido no texto; e para fazer referência à uma terceira pessoa, fora da enunciação. O termo de parentesco é escolhido tomando como ponto de referência o enunciador, o que justifica o primeiro exemplo “minha sogra” em vez de “mãe dela”. A compreensão da genealogia é que afasta possíveis mal

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entendidos na comunicação, o que não é raro de acontecer quando o interlocutor é um não-índio61.