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Capítulo 1: Apresentação

1.3 Perfil sociolinguístico dos autores do texto

Os sujeitos da pesquisa foram aproximadamente 75 alunos distribuídos nos seguintes cursos de formação ministrados pelo Iepé: Formação Básica para

Agentes de Saúde Wajãpi, Magistério Wajãpi e Formação de Pesquisadores Wajãpi22.

Os autores dos textos aqui analisados são adultos e a maioria é do sexo masculino. Todos são falantes de wajãpi como língua materna, tendo aprendido o português depois da primeira infância. Não é possível saber com segurança como foi o processo de escolarização dos alunos antes do ingresso nos cursos de

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No Capítulo 3, será apresentado com detalhes o Programa de Educação Wajãpi, setor da ONG Iepé responsável pelo desenvolvimento dos cursos de formação.

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formação do Iepé. Especula-se que a maioria dos agentes de saúde e a primeira turma de professores foi alfabetizada em língua portuguesa, em uma escola não- diferenciada. Já os alunos mais jovens teriam começado a frequentar a escola no final de 1990, período em que as aldeias já tinham suas próprias escolas e professores wajãpi. Essas escolas já possuíam alguns materiais didáticos específicos e seu currículo estava começando a ser desenhado. Também não há nenhum registro do tempo que cada um deles frequentou a escola, mas sabe-se que os alunos da segunda turma de Magistério e parte dos pesquisadores foram alunos de professores wajãpi.

Os Wajãpi de minha pesquisa são um grupo de estudantes que se destaca dos demais Wajãpi por vários motivos, todos eles decorrentes do processo de escolarização do qual fazem parte. Sem passar a régua nas diferenças individuais, os autores dos textos aqui analisados são adultos que eram crianças na época do contato oficial ou nasceram logo depois dele, portanto, cresceram convivendo com o contato linguístico e cultural, com a presença da escola e da escrita23. Esse grupo constitui um segmento específico dentro do coletivo wajãpi cujos traços distintivos principais são, grosso modo, o fato de seus integrantes serem jovens, bilíngues, letrados, assalariados e detentores de algum saber especializado (na área de magistério, saúde ou ambiente, por exemplo). Todas essas características são justamente aquelas exigidas, de forma ostensiva ou sutil, pela sociedade envolvente ou pelos próprios Wajãpi, para a negociação pela autonomia, o que automaticamente confere a esses jovens alguma forma de poder.

É importante ser notado que os resultados apresentados nesta tese não podem ser tomados como conclusivos porque foram analisados textos produzidos em um período de tempo determinado (de 1998 a 2009), por grupos de estudantes específicos, que, por sua vez, apresentam graus de letramento determinados por

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Para mais detalhes, conferir a dissertação de TINOCO (2000), na qual a autora analisa justamente a formação de uma nova forma de liderança determinada pela introdução dos cursos de formação. Nessa dissertação, os sujeitos da pesquisa são os professores Wajãpi formados na primeira turma, cuja formatura ocorreu em 2005.

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fatores individuais e históricos. Se os dados analisados tivessem sido coletados no início da década de 1990, com a primeira turma de professores, ou venham a ser coletados em outro momento do processo de letramento desse povo, possivelmente os resultados seriam igualmente diferentes porque o letramento entre os Wajãpi é um processo razoavelmente recente e o momento do processo vislumbrado nesta pesquisa é o começo.

Os Wajãpi que frequentam os cursos de formação do Iepé têm perfil escolar semelhante àquele descrito para outros povos indígenas, como se pode ler na observação feita por Maher em relação aos cursos de formação de professores:

[...] um aspirante não índio ao cargo de professor chega ao seu Curso de Formação para o Magistério tendo passado por anos de escolarização formal: em tese, ele já domina a maior parte do conteúdo que irá ensinar. Por outro lado, os programas para o Magistério Indígena destinam-se a formar um tipo de professor que, na maior parte dos casos, já atua na escola de sua comunidade e tem pouca experiência de escolarização formal: ele sempre traz em sua bagagem um amplo domínio dos conhecimentos acumulados por seu povo, mas seu conhecimento sobre os nossos saberes acadêmicos é restrito. (MAHER, 2006, p.25).

Por se tratar de indivíduos que pertencem a uma sociedade de tradição oral, muitos deles estiveram pouquíssimas vezes em salas de aula antes de iniciarem a formação específica e outros nem sequer chegaram a frequentá-la. A forma escolar de transmissão do conhecimento foi se tornando conhecida do grupo ao mesmo tempo em que seus primeiros indivíduos passaram a frequentar as escolas das aldeias, excetuando-se os casos de alguns poucos indivíduos que foram criados nas cidades e que, logo após o contato oficial, regressaram às suas comunidades24.

Como é comum na Educação Escolar Indígena, a maioria dos alunos desses cursos de formação desempenha outras funções burocráticas junto a uma das

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Possivelmente, em análises futuras sobre escolarização e letramento wajãpi, essa será uma característica historicamente datada. Com a escolarização pública, poucos índios chegarão à idade adulta sem terem frequentado a escola, mesmo que por pouco tempo.

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associações wajãpi25 e atua como intermediador do contato. A língua portuguesa é um dos “bens” desejáveis para a compreensão dos diferentes sistemas de conhecimento dos não-índios e para que seja alcançada a autonomia que justifica o discurso pela escolarização diferenciada. Todos os alunos dos cursos são bilíngues, ainda que o bilinguismo wajãpi não seja de fácil descrição. Isso ocorre em parte pela própria dificuldade de definição do que vem a ser um indivíduo bilíngue, na medida em que já foi concebido largamente como a soma de dois falantes monolíngues nativos, na qual não há interferência de uma língua em outra. Por esse motivo, nessa concepção, não se levava em consideração que o uso das línguas não é compartimentado e que a capacidade do indivíduo bilíngue em usar uma ou outra língua pode variar de acordo com fatores extralinguísticos. A concepção de bilinguismo adotada nesta tese, entretanto, é aquela expressa por Maher:

O bilíngue - não o idealizado, mas o de verdade - não exibe comportamentos idênticos na língua X e na língua Y. A depender do tópico, da modalidade, do gênero discursivo em questão, a depender das necessidades impostas por sua história pessoal e pelas exigências de sua comunidade de fala, ele é capaz de se desempenhar melhor em uma língua do que na outra - e até mesmo de se desempenhar em apenas uma delas em certas práticas comunicativas. (MAHER, 2007, p. 73).

As diferenças individuais quanto à natureza do bilinguismo entre os Wajãpi estão diretamente relacionadas a algumas características do modo de vida desse povo, dentre elas podemos citar: local de moradia e parentela26; participações em atividades de gestão política e territorial; desempenho de atividades profissionais e frequência nos cursos de formação.

A Terra Indígena Wajãpi tem hoje 607 mil hectares e, a partir de sua homologação, os Wajãpi retomaram seu padrão de ocupação extensiva. Esse

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Apina - Conselho das Aldeias Wajãpi e Apiwata - Associação dos Povos Indígenas Wajãpi do Triângulo do Amapari. Durante a revisão desta tese, soube que uma nova associação está sendo fundada.

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fato, somado ao cuidado com a manutenção dos limites da terra, faz com que existam aldeias espalhadas por todo o território. A maioria dessas aldeias não está perto das vias terrestres de acesso à Terra Indígena, tornando bastante escassa e pontual a presença de falantes nativos do português nessas regiões. Até o início dos anos 2000, era comum que alguns alunos tivessem saído da Terra Indígena algumas poucas vezes. Há professores wajãpi em quase todas as aldeias; alguns ensinam português como segunda língua, outros apenas alfabetizam em língua wajãpi. Mesmo quando há o ensino de português, este é destinado às crianças. Os jovens e adultos aprendem formalmente essa língua apenas nos cursos do Iepé ou, informalmente, conversando com não-índios. Portanto, jovens e adultos que moram nessas aldeias estão menos expostos aos inputs em língua portuguesa.

Outro fator determinante para o bilinguismo individual é a atuação de adultos wajãpi em atividades ligadas à gestão política e territorial de seu território. Essas atividades necessariamente envolvem proficiência nas modalidades oral e escrita da língua portuguesa e a permanência por longos períodos de tempo na cidade de Macapá. Normalmente, os Wajãpi responsáveis pela atividade levam toda a família (esposas e filhos) para acompanhá-los. A estada na cidade pode ser entendida como um verdadeiro curso de imersão na segunda língua. Além disso, há o fator familiar. Estudantes dos cursos de formação e outros falantes do português (algumas lideranças, por exemplo) provavelmente ensinarão a língua portuguesa a seus parentes que têm menos contato com falantes nativos.

No que se refere à população infantil, nota-se que, atualmente, crianças com idades inferiores à escolar estão demonstrando maior familiaridade com a língua portuguesa, adquirida também no contexto informal, a partir da observação de conversas dos próprios parentes com outros interlocutores. Já as crianças em idade escolar começam a também aprender o português formalmente, em aulas ministradas por professores wajãpi. Novamente, o local de moradia é outra variável para o bilinguismo nessa faixa etária.

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Apenas a minoria dos bilíngues sabe ler e escrever com proficiência em língua portuguesa, ainda que o número de indivíduos escolarizados esteja aumentando:

A transformação mais significativa para o mesmo período [a partir de 1990] foi o aumento de pessoas que lêem e escrevem – em ambas as línguas [...]. De cerca de 30 jovens adultos, no início de 1990, chegamos atualmente a um total de 120 pessoas lendo e escrevendo com relativa fluência em sua língua, além de cerca de 150 crianças frequentando as escolas das aldeias. (GALLOIS, 2005, p. 2).