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A criatividade como expressão da subjetividade das crianças diante da

cultura da mídia e do consumo

Toda criação, e a própria criatividade, é fruto das condi- ções de possibilidades históricas e culturais nas quais o sujeito está inserido. Essa afirmação pode ser sustentada nos estudos de Mitjáns Martínez (2004) e também nas ideias de Vigotsky (2009). Mitjáns Martínez (2004) argumenta que a criatividade não pode ser entendida como uma potencialidade psicológica inata do sujeito, mas deve ser vista como um processo humano constituído nas condições concretas das sociedades e de seus contextos sociorrelacionais específicos.

Se considerarmos as condições concretas de vida das crianças pequenas que frequentam turmas da Educação Infantil nos grandes centros urbanos, como é o caso de muitas crian- ças das escolas investigadas no Distrito Federal, perceberemos que grande parte de suas experiências está vinculada à cultu- ra midiática marcadamente televisiva e à cultura do consumo vinculada aos produtos culturais postos em circulação pela mídia. Vigotsky (2009) desenvolve o argumento de que a imagi- nação é a base de toda a atividade criadora. A imaginação não acontece a partir do nada. Ela é produzida pelo indivíduo na relação com as experiências anteriores por meio de determi- nadas combinações e reelaborações dessas experiências. Desse modo, se desde bebês as crianças acumulam uma infinidade de experiências da cultura da mídia e do consumo (muito viven- ciaram, viram e ouviram da televisão, por exemplo), processos criativos podem, muito provavelmente, acontecer na relação com essas experiências.

Foram inúmeros os processos imaginativos e criativos produzidos pelas crianças no interior das escolas investigadas, dos quais participaram elementos relacionados à cultura da mídia e do consumo. Foi, por exemplo, o caso de uma situação em que a professora, em uma escola do DF, estava trabalhando com o nome das crianças por meio de um jogo conhecido como o bingo do nome. Cada criança recebeu um papel com o seu nome escrito e formas geométricas recortadas de um material emborrachado, com a finalidade de que marcassem as letras que fossem sendo nomeadas pela professora durante o jogo. Assim que recebeu o seu material, um dos meninos colocou um triângulo na boca, entre os dentes e o lábio superior, e começou a dizer que era o Pica-Pau e a imitar os sons do personagem do desenho animado televisivo. Em seguida, outro menino retirou o triângulo da boca daquele menino, colocou em sua própria boca e também começou a imitar o Pica-Pau. Então, para dar continuidade ao “faz de conta que sou o Pica-Pau”, o menino que havia se imaginado como tal colocou em sua boca dois pequenos retângulos e deu continuidade à brincadeira. Em seguida, os outros dois meninos do mesmo grupo também colocaram outras formas geométricas em suas bocas para imitar os sons do perso- nagem que logo se transformou em outro personagem televisivo o Bob Esponja, até que a professora pediu que eles parassem e prestassem atenção no jogo que ela estava conduzindo. Para Mitjáns Martínez (2014a), a imaginação tem sido considerada como um dos elementos fundamentais dos processos criativos e está intimamente relacionada à emoção. Vigotsky (2009, p. 19) também considerava que “o sentimento, assim como as ideias, move a criação do homem”. Na cena descrita, parece-nos que a emoção esteve envolvida com a criação da brincadeira e a

“vivência” do personagem televisivo e também participou da interação acontecida entre os meninos.

É muito comum que, durante as atividades promovidas pelas professoras nas escolas investigadas no DF, as crianças se utilizem de elementos da cultura da mídia e do consumo em processos imaginativos e criativos e “escapem” ao que foi inicialmente proposto pelas professoras. É o caso de dese- nhos, esculturas construídas com massinha de modelar, cola- gens realizadas com materiais diversos sobre folha de papel, composições com tintas de cores variadas sobre cartolina em atividade em grupo, entre outras atividades que são produzidas por muitas crianças com criações que remetem ao universo da mídia e do consumo. Nessas atividades, surgem construções que representam pistas de skate e da Hot Wills, Frozen, Ben10, prin- cesas da Disney, Batman, Monster High, Peppa Pig, Dinossauros, Homem de Ferro, robôs, entre tantos outros personagens, situa- ções e narrativas que remetem ao universo da mídia e do consu- mo. Vinculado a essas materialidades criadas pelas crianças, em muitas circunstâncias, está um conjunto de falas compostas por expressões televisivas, músicas em voga na mídia do momen- to e posturas corporais que remetem ao universo intertextual midiático. Em muitas situações, outras crianças, e até mesmo as professoras, julgam essas produções como bonitas, interessan- tes, legais e criativas e expressam verbalmente seu julgamento. Isso remete ao fato de que a significação de valor que as pessoas conferem ao que é produzido colabora para considerar, ou não, algo como criativo (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2009). Porém, conside- rando a dimensão funcional da criatividade, mais importante do que o julgamento dos outros para avaliar algo como criativo é o impacto do produzido na satisfação do indivíduo e no seu desenvolvimento (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2009), e a satisfação

das crianças ficou evidente no brilho dos seus olhos, nas suas expressões verbais e na exposição orgulhosa de suas criações.

Figura 1 – Com um traço eu criei... uma cabeça de robô.4

Fonte: Autoria própria.

Ainda mais comum é que expressões imaginativas e criati- vas vinculadas ao universo da mídia e do consumo aconteçam em momentos em que as crianças estão mais livres, sem a condução das professoras, como é o caso das brincadeiras no parque, na sala de aula ou mesmo nos momentos de higiene. Meninos imagi- nam-se oHomem Aranha e coletivamente escalam uma cerca, imitando o personagem e disputando quem vai chegar antes ao topo. O Homem Aranha também se faz presente no momento do parque, em outra das escolas investigadas no DF, e durante uma hora escala bancos, brinquedos do parque e mesa de concreto com sua “máscara” de Homem Aranha. A partir das personagens do filme Frozen, em formato de bonecas, meninas constroem uma 4 Todas as imagens utilizadas neste artigo foram produzidas no contexto das pesquisas citadas e possuem a devida autorização dos responsáveis pelas crianças para a sua publicação. Além disso, são imagens que têm a intenção de armar uma perspectiva para ver a interpretação cons- truída pelas autoras ao longo do artigo.

Figura 2 – Pista de Skate e Hot Wills.

narrativa coletiva no entrelaçamento de elementos que remetem ao filme, aos brinquedos produzidos por indústrias a partir do filme e a possíveis vivências do universo escolar e familiar.

Figura 3 – A escalada dos Homens Aranha.

Fonte: Autoria própria.

Figura 5 – Frozen, uma história inventada por meninas na hora do parque.

Fonte: Autoria própria.

Figura 4 – Homem Aranha mascarado.

No momento da brincadeira com jogos de encaixe, um dos meninos – que com frequência fala dos filmes sobre dinossauros, dos bonecos dos dinossauros e os imita – cria uma forma e diz que é um Tiranossauro Rex. Logo outros meninos que com ele estão também criam seus próprios dinossauros. Mais do que isso, esse menino inicia uma brincadeira com expressões verbais que lembram a língua inglesa e que a própria pesquisadora e também a professora têm dificuldade de compreender. Em outra situa- ção, durante a brincadeira na sala, meninos amarram bandanas na cabeça e brincam de lutar taekwondo, mas é no momento da escovação dos dentes, em frente ao espelho, que eles começam a imaginar-se lutadores do UFC – Ultimate Fighting Championship (programa televisivo de luta transmitido também em canais aber- tos da televisão brasileira). Não só se imaginam lutadores como aindainiciam uma “luta” para disputar o creme dental que estava na mão de um deles. Essas são apenas algumas das produções nas escolas pesquisadas no DF que remetem ao universo da mídia e do consumo; muitas outras poderiam estar aqui visibilizadas.

Figura 6 – Tiranossauro Rex.

Fonte: Autoria própria.

Figura 7 – Lutadores do UFC.

Podemos dizer que os produtos culturais – como filmes infantis, programas televisivos, brinquedos – são frutos, na maio- ria das vezes, de processos criativos complexos de determinados grupos sociais, como as grandes corporações empresariais. Esses produtos, que estão no mundo, acabam sendo “matéria-prima” para as “pequenas” criações infantis de muitas crianças. Em outras palavras, a cultura midiática e de consumo só existe para as crianças em suas configurações subjetivas,

[...] pois as coisas na experiência humana só existem através do sentido que elas cumprem na própria experiência, e não por aquilo que possam representar fora dessa experiência” (GONZÁLEZ REY, 2014a, p. 41).

Assim, as situações relatadas acabam por nos dar indi- cativos sobre as configurações subjetivas das crianças. Embora tenhamos a compreensão de que as configurações subjetivas de cada sujeito são singulares, há indícios de que o universo da mídia e do consumo contribui para a produção de sentidos subjetivos que integram as configurações subjetivas de muitas crianças.

Entendemos configuração subjetiva, na concepção de González Rey (2011b), como uma unidade que integra sentidos subjetivos dominantes para o sujeito em meio a uma diversidade de possibilidades. Nessa diversidade de possibilidades, pare- ce-nos que o universo da mídia e do consumo é um dos que se expressa em sentidos subjetivos dominantes para muitas crian- ças. Provavelmente, há também crianças para quem o universo da mídia e do consumo não participa de suas configurações subjetivas dominantes já que crianças expostas a condições culturais semelhantes podem expressar distintas configurações e sentidos subjetivos em suas experiências vividas.

Embora o objetivo deste artigo não tenha sido abordar as configurações e ossentidos subjetivos das crianças, se reto- marmos as experiências vividas por elas no contexto escolar e relatadas neste texto, poderemos dizer que o que estimulou a sua imaginação e a sua emocionalidade foram elementos vincu- lados à mídia e ao consumo. Elas criaram situações envolventes e vivazes, capazes de atingir os entendimentos e sentimentos de outras crianças que com elas estavam. Mais do que isso, realizaram pequenas criações que expressaram a sua própria emoção em um movimento de distanciar-se, em muitas situa- ções, do que era proposto pelas professoras e se aproximar, por meio de suas criações, de outro universo, do qual participou a cultura da mídia e do consumo. A criatividade, então, ascende como expressão da subjetividade das crianças. Nesse sentido, sublinhamos que, para que a subjetividade de cada criança se tornasse, em alguma medida, inteligível, seria necessária a realização de investigações que buscassem a compreensão dos sentidos subjetivos e das configurações subjetivas das crianças. Como o foco deste artigo se refere à criatividade como expressão da subjetividade das crianças, de algum modo, ele também colabora para promover algum nível de inteligibilida- de dos processos subjetivos vividos pelas crianças em questão. Mas o que, efetivamente, estamos entendendo por criativida- de? Mitjáns Martínez (2009) reconhece que a criatividade, a partir de uma perspectiva histórico-cultural, pode expressar- -se no mínimo de três formas, quais sejam: como produção de novidade; como capacidade especificamente humana de gerar produtos culturais significativos; e como capacidade de produ- ção de novidade e valor na vida cotidiana. Ao tomarmos esse entendimento de criatividade, podemos, novamente, retomar as situações vividas pelas crianças, as quais nomeamos como

“pequenas criações”, e as interpretar como criativas. Esse modo de nomear não é porque as consideramos inferiores, mas porque entendemos que são criações bastante efêmeras, que surgem e se “desfazem” de modo muito rápido, de acordo com as próprias possibilidades e impossibilidades das crianças que as inventam no contexto escolar e conforme a própria lógica das sociedades contemporâneas, onde impera a fluidez.

Essas pequenas criações podem ser compreendidas como produções de novidade por meio de diferentes prismas. Um deles é que as crianças criam algo novo, distinto e diferente do que é proporcionado ou solicitado pela professora ou pela esco- la. Criam algo que não se espera que aconteça naquele contexto ou naquela situação específica. Há também a transformação de materiais eminentemente escolares – como papéis, tintas e colas – para a criação de elementos usualmente interpretados como não escolares, como é o caso da criação de bonecos do Batman quando se espera que as crianças desenhem a figura humana. No entanto, ao mesmo tempo que é algo novo, é também algo que pode ser rapidamente reconhecido, interpretado e vivido pelas outras crianças. Portanto, algo culturalmente significa- tivo e, não necessariamente, material.

É o que ocorre nas brincadeiras de Homem Aranha e de lutadores do UFC ou na narrativa coletiva com elementos do filme Frozen. Nesse sentido, evidencia-se a criatividade como processo, e não apenas como um produto (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2014a). Ao mesmo tempo, percebe-se algo que tem valor na vida cotidiana do contexto escolar, um valor que está bastante atrelado à possibilidade de atrair a atenção de outras crianças para o seu foco de interesse e com elas brincar, ou mesmo de conseguir algo que é de valor, como os próprios brinquedos disponíveis na escola ou até o creme dental, no caso de uma das

vivências relatadas sobre a luta de UFC no banheiro. O menino vencedor da “luta” foi o primeiro a utilizar o creme dental e dele se apossou, impedindo que outros dois meninos o utilizassem. Ainda sobre a possibilidade de criar algo novo e de valor na vida cotidiana escolar, destacamos situações em que crianças e jovens que não têm dinheiro para satisfazer seus desejos de consumo encontram, em processos criativos, a possibilidade de produzir materialidades que permitam essa satisfação.

Nos registros realizados em escolas públicas de Educação Infantil e de Ensino Fundamental da periferia de Porto Alegre/ RS, de 2004 a 2008, há um conjunto de experiências das crian- ças e jovens em que, mesmo as muito pequenas, procuravam produzir seus corpos de forma espetacular para estarem em harmonia com o mundo das visibilidades e serem apreciadas no contexto escolar. Dito de outro modo, elas acabavam por reali- zar a produção de seus corpos para expor no contexto escolar (cortes de cabelo imitando ícones midiáticos, camisetas cor-de- -rosa da Barbie coladas ao corpo e calçados do Homem-Aranha davam visibilidade e prestígio para as crianças), muitas vezes utilizando esse contexto para criar suas produções corporais. Por exemplo, crianças muito pequenas pediam que crianças maiores, no ambiente escolar, desenhassem tatuagens em seus corpos com caneta esferográfica; imprimiam em seus corpos tatuagens adesivas que eram negociadas na escola (geralmente compradas junto com chicletes por alguns centavos); e jovens planejavam, em conversas durante as aulas expositivas dos professores, como fariam para tatuar em seus corpos a marca desejada. Eles não tinham dinheiro para fazer uma tatuagem e usavam o procedimento de aquecer uma agulha de costura, imergi-la em tinta de caneta esferográfica e introduzi-la sob a pele para marcar a letra inicial do nome do ser amado no

próprio corpo. Muitas dessas práticas foram registradas em imagens, três das quais disponibilizamos a seguir.

Figura 8 – Tatuagem de caneta esferográfica.

Fonte: Autoria própria.

Figura 10 – Tatuagem ferimento: agulha de costura e tinta sob a pele.

Fonte: Autoria própria.

A necessidade que as crianças tinham de participar de uma cultura amplamente aceita e compartilhada na mídia e nos grupos sociais a que pertenciam fazia com que encontras- sem formas criativas de satisfazê-la no contexto escolar, apesar das limitações financeiras. Destaca-se, então, novamente, a Figura 9 – Tatuagens adesivas de chicletes.

participação do emocional na produção dos processos cria- tivos (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2009) – uma emocionalidade tão forte ao ponto de suportar dores físicas para realizar uma tatuagem-ferimento.

Esse também foi o caso, em 2012, em uma escola de Educação Básica em Natal, de um menino de 11 anos de idade que disse para a professora que ele poderia fixar para ela os trabalhos no mural da sala de aula com os alfinetes que possuíam bolinhas plásticas em uma das pontas. Quando a professora e o restante dos colegas perceberam, o menino já havia introduzido na pele do seu queixo um alfinete, tornando- -o uma espécie de piercing, e a pele sangrava, mas ele expunha com orgulho para todos o seu novo piercing. A professora levou o menino até a sala da direção, perguntando, angustiada: “o que devo fazer?”.

Já em 2013, em uma escola de Educação Infantil no muni- cípio de Natal (RN), a professora, de modo prático, ensinou as crianças a obterem tinta a partir de papel crepom. A finalidade da atividade prevista pela professora era a de que as crian- ças utilizassem a tinta para desenhar em um papel ofício, mas muitas meninas acabaram por utilizar a tinta para pintar seus cabelos em vez de pintar o papel. Uma menina pintava o cabelo da outra, na tentativa de obter mexas coloridas, como se esti- vessem em um salão de beleza.

Nessas situações, também podemos compreender a criatividade “[...] definida não apenas com base no critério da novidade, mas também pelo valor, pela significação do produ- zido [...]” (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2009, p. 19). Quem valoriza, quem atribui valor ao que foi produzido são as próprias crian- ças que compartilham dessa cultura e, portanto, legítimas para validar o que foi produzido. Em outras palavras, vê-se “a ideia

da criatividade associada a um produto significativo, social e historicamente determinado [...]” (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2009, p. 15) – nesses casos, produtos sociais relativos à produção espeta- cular do próprio corpo, um produto fruto de seu tempo, social e historicamente determinado.

Pode parecer incômodo o fato de considerarmos como criatividade determinadas expressões das crianças eviden- ciadas ao longo deste texto. Porém, pensamos que elas efetivamente nos fornecem indícios da subjetividade de muitas crianças, ou pelo menos de seus recursos subjetivos; mais do que isso, levam-nos a pensar o tipo de sujeito que estamos formando. Não seria difícil, embora não seja o propó- sito deste texto, fazer um apanhado de processos criativos criados por jovens contemporâneos relacionados ao mundo do crime para satisfazer seus desejos e anseios de consumo. A criatividade, portanto, não é tomada como algo necessa- riamente atrelado ao bem, ao belo, à ética, mas intimamente vinculada ao contexto cultural e histórico no qual os sujeitos estão inseridos.

Implicações para o âmbito da