• Nenhum resultado encontrado

O ensinar e o aprender: reflexão sobre os objetivos, os conteúdos e as estratégias da aula

No decorrer do diálogo, percebemos ainda que os objeti- vos nem sempre são claramente explicitados, de outro modo, os objetivos declarados nem sempre correspondem às estratégias de ensino-aprendizagem privilegiadas na aula. Vejamos um dos trechos da sessão reflexiva em que esse confronto se realiza:

Excerto 02:

Débora: tudo bem. Eu fiz outra pergunta também

sobre o Hino Nacional. E você já me respondeu que a oração você não faz todos os dias. E o Hino Nacional, por que você desenvolveu essa atividade? Você costuma desenvolvê-la? Quando?

Rita: costumo. E acho que é importante. E até

mesmo para usar recursos que a gente tem e que ficam esquecidos. Eles recebem o livro didático, e a maioria dos livros vem com o hino, e a gente nem usa. É um recurso importante. E ali eu mostrando [demonstra com gestos que o aluno vai acompanhando a escrita quando canta], já vai se adaptando a leitura e a arte. Devemos trabalhar. Deve estar sendo trabalhada. Quando trabalhamos a música, é arte.

Alice: a questão dos valores.

Rita: é. O resgate dos valores que nós temos.

No diálogo com a professora Rita, em vários momen- tos, ela justifica o seu agir mediante a necessidade de

ensinar normas, valores, de relembrar e incentivar os alunos no processo de aprender. Entendemos, assim, que esses aspectos constituem alguns dos princípios que fundamentam o sentido que ela construiu sobre o ensinar e o aprender. Nas justificativas da professora, o argumento da valorização constitui os senti- dos atribuídos ao ensinar-aprender: em um primeiro momento, o argumento da valorização é sobre o recurso existente; no outro, incide sobre a valorização da música como arte na sala de aula. Para a professora: “Quando trabalhamos a música é arte”. Nessa perspectiva, foi trazida a música, trabalhou-se arte, independentemente do que tenha sido desenvolvido, justificado também como um saber necessário e importante a ser ensinado e aprendido, portanto, um saber a ser valorizado. O argumento da valorização respalda os princípios do ensinar e do aprender da professora Rita, valores que são atribuídos por ela ao sele- cionar o que vai ser ensinado e aprendido.

Embora a professora tenha dito na sua autorreflexão que ao propor cantar o Hino Nacional seu objetivo era trazer a músi- ca como arte, as ações desenvolvidas não privilegiaram esse objetivo. Sobre esse tema, os textos de didática nos ensinam que a relação objetivo-conteúdo-método tem como característica a mútua interdependência (LIBÂNEO, 1994). De acordo com esse princípio, ao planejar suas aulas, o professor deve relacionar objetivos de ensino, conteúdos e estratégias pedagógicas que possibilitem o envolvimento dos alunos e os levem a aprender. Algumas reflexões desenvolvidas por Tacca (2006) acerca da relação entre os objetivos e as estratégias pedagógicas apon- tam que, muitas vezes, os objetivos estão tecnicamente bem elaborados, entretanto, ficam comprometidos no desenrolar das situações pedagógicas se concentrados apenas em torno dos

conteúdos e se não levar também em consideração os sujeitos envolvidos no processo.

Segundo Tacca (2006), é necessário considerar as rela- ções sociais envolvidas, as quais incluem concepções, crenças, histórias de vida e outros aspectos que emergem desse proces- so relacional, que influenciam nas opções feitas. Mediante esse enfoque, as relações dos docentes com esses aspectos da organização do processo de ensino-aprendizagem necessitam ser analisadas para que possamos perceber e explicitar suas implicações no processo.

Na continuidade, no diálogo a seguir, encontramos algu- mas marcas desses entrelaçamentos, pois, ao expor as razões do trabalho com o Hino Nacional e com a oração, a professora Rita sustenta sua explicação no argumento do gostar. Portanto, ogosto e o valor no curso dessas interações verbais constituem as formações ideológicas para a compreensão dos sentidos do ensinar e do aprender. Nessa perspectiva, os diálogos selecio- nados visam confrontar a relação entre esses saberes.

Excerto 03:

Débora: porque eu acho que você faz, não sei se

o objetivo era esse, que a pergunta seria qual o objetivo que está subjacente nessa prática. E aí poderíamos fazer uma relação, é com os saberes, que relações você faz com essa prática e práticas anteriores que você vivenciou? Não sei também se esta prática está relacionada ao gosto de cantar, porque poderia cantar outras músicas, não poderia ser só o Hino Nacional, poderia trazer outras músicas, como as infantis. Então me parece que há outro objetivo além do gosto [a professora sorri quando eu faço essa insinuação].

Rita: também vem de coisas também de como eu

fui ensinada.

Débora: ah!

Rita: é, mas também não é tanto nem isso aí, é

por utilizar o recurso que tem na escola, tem a música gravada, por que não usar? Por que ficar lá guardada?

Ao explicar as razões do trabalho com o Hino Nacional e ao dizer que “também vem de coisas de como eu fui ensina- da”, Rita demonstra que sua prática toma como referência, de alguma forma, os saberes de sua trajetória familiar e escolar, os quais se configuram em saberes axiológicos, como os gostos, os valores e as crenças; bem como os saberes construídos ao longo de sua experiência como estudante, que ela carrega consi- go, expressando-se nas suas opções pedagógicas. No entanto, evidentemente, atribui outras razões, tais como aproveitar e valorizar o material existente.

No diálogo a seguir continuamos a confrontar esses saberes.

Excerto 04:

Débora: pronto, com relação ao Hino. Com

relação à oração, essa atividade faz parte do dia a dia? Você já me respondeu que nem todo dia você a faz. Então, por que você desenvolveu essa atividade? Você considera que trabalhou respeitando a religião de cada um? Por quê?

Rita: a oração é assim. Porque, respeitando o

gosto. Tem alunos que dizem “tia, vamos rezar”. Tem alunos que gostam. E, às vezes, eu nem trago

no meu roteiro, e eles pedem para rezar. Então, isso aí vem da família, não é? O gosto pela oração. E... [tentando relembrar a outra questão], o que foi que você falou aí?

Débora: você considera que trabalhou respeitando

a religião de cada um? Por quê? Nesse momento que você fez a oração...

Alice: Pai Nosso e Ave Maria. Só tem uma religião?

Só tem a católica?

Rita: Acho que sim [Após a colocação de Alice].

Não. Tem evangélica. Mas eu conversei com ela [referindo-se a uma aluna que é evangélica] e ela falou que na igreja dela reza o Pai Nosso também. Nesse sentido, quando a professora diz: “Tem alunos que gostam. E, às vezes, eu nem trago no meu roteiro, e eles pedem para rezar. Então, isso aí vem da família, não é? O gosto pela oração”, ela expressa sua relação com um saber da cultura do povo, mais precisamente da tradição familiar, que na sala de aula ganha expressão como um momento em que os alunos também apreciam. A nossa intervenção nesse processo reflexivo foi no sentido de alertar as professoras quanto à necessidade de confrontar nossos valores. Vejamos o diálogo:

Excerto 05:

Débora: porque... É um cuidado que a gente

precisa ter com essas questões. Principalmente hoje, taí toda a questão dos cursos de formação mesmo que vocês têm participado, e já tem tocado na questão do trabalho com a diversidade e da igualdade em sala de aula. [...] De nós estarmos

atentos a essas questões, e que a nossa prática ela procure, ela poderá se pautar nesses aspectos, que procure a desmistificação desses valores. Então, voltando à questão da oração, e da religião, e aqui a gente não vai nem tocar na questão da religião, mas que a oração dentro desse contexto leva para essa discussão, para esse debate. É tanto que nós temos, há toda uma legislação, que discute essa questão que a escola ela precisa ser laica, ela não pode privilegiar nenhum culto, e aí nós temos toda uma discussão.

Os saberes confrontados no diálogo acima nos remetem à reflexão sobre o sentido da cultura e do trabalho com as diferenças em sala de aula. Ao trabalhar o sentido de cultura desde uma perspectiva antropológica clássica até perspecti- vas de cultura numa dimensão popular, Gómez (2000, 2001) compreende a escola como cruzamento de culturas. Para esse autor, a escola e o sistema educativo em seu conjunto podem ser entendidos como uma instância de mediação entre os signi- ficados, os sentimentos e as condutas da comunidade social e o desenvolvimento particular das novas gerações. De acordo com o referido autor, cada vez mais, a herança social que cada indivíduo recebe, desde seus primeiros momentos de desenvol- vimento, já não se encontra primordial nem prioritariamente constituída por sua cultura local. Como consequência, a função da escola é oferecer ao indivíduo a possibilidade de detectar e entender o valor e o sentido explícitos ou latentes da cultura em que estão imersos desde o seu nascimento, tendo em vista que o processo de transformação e recriação dessa cultura se

dá na participação desses sujeitos na complexa vida cultural de sua comunidade.

Nessa perspectiva, Gómez (2000) defende que a primei- ra responsabilidade do docente é submeter sua prática e seu contexto escolar à reflexão crítica, para compreender a trama oculta de intercâmbio de significados que constituem a rede simbólica em que se formam os estudantes. Dessa forma, o autor ressalta: “a aula deve tornar-se um fórum de debates e negociação de concepções e representações da realidade. Não pode ser nunca um espaço de imposição da cultura [...]” (GÓMEZ, 2000, p. 61).

A perspectiva antropológica de cultura desenvolvida por Freire (1982) também aponta a sala de aula como espaço de debate e de diálogo, o que faz do aluno um participante do grupo e, do professor, o coordenador do debate. Para tanto, é importante que o professor reflita sobre “a razão de ser desta prática – as finalidades, os objetivos, os métodos, os interesses dos que a comandam, a quem serve, a quem desserve” (FREIRE, 1981, p. 117), pois ensinar exige criticidade, reconhecimento da identidade cultural e respeito aos saberes dos educandos (FREIRE, 1998). Assim, por mais bem-intencionadas que sejam nossas práticas, é necessário que fiquemos atentos para que não privilegiemos um discurso monológico de cultura em sala de aula (BAKHTIN, 2002).

Na defesa por práticas pedagógicas comprometidas com uma sociedade mais justa e mais democrática, Santomé (2005) explica que professores e professoras, como intelectuais comprometidos, geram um clima de reflexão e de debate since- ro e sem temores acerca das razões da escolha dos conteúdos culturais com os quais trabalham, das fontes e das metodolo- gias que facilitam a reflexão dos nossos alunos e nossas alunas,

permitindo-lhes compreender a realidade e os capacitando para seguir, analisando e intervindo solidária, democrática e eficazmente em sua comunidade. A ausência dessa reflexão, segundo ainda esse autor, contribui para que o trabalho coti- diano, da escola e da sala de aula, transforme-se em práticas pautadas no costume, na tradição e na rotina. Deixamos eviden- te que não estamos interessados em culpar o professor pelas práticas que desenvolvem, demonizando a sua atuação. Nesse sentido, concordamos novamente com Santomé (2005, p. 11) quando aponta que seria “caer en un análisis excesivamente superficial” ao simplificarmos as razões das suas escolhas peda- gógicas. O que estamos a suscitar, isso sim, é a necessidade de desenvolvermos processos reflexivos, como o que intentamos neste trabalho, para que os professores adquiram mais poder (SMYTH, 1991a) e se apropriem dos fundamentos e dos proces- sos históricos e socioculturais implicados na construção de saberes e práticas cada vez mais autônomos e emancipatórios, desvelando as contradições características da produção social dos seus saberes profissionais.

Ao argumento do valor vão sendo acrescidos outros senti- dos sobre o ensinar e o aprender, os quais foram evidenciados quando questionamos acerca da importância da estratégia de dar vistos nos cadernos dos alunos.

Excerto 06:

Débora: não, mas a minha pergunta é: o visto nos

cadernos, eles são importantes para quê?

Rita: [a professora sorri e diz que precisa explicar,

não é?]. É importante. Assim, para valorizar o caderno também, não é? Porque a gente convive

com as crianças, não é, Alice, quase todos os dias é um caderno diferente. E também não zelam o caderno, e aquilo ali já é para eles... E até eu exijo e digo para eles que o caderno é importante, que aquilo que está anotado eu posso amanhã pedir, para ele ver no caderno, procurar lá no caderno. Aí eu coloco o visto, é uma forma de incentivo também, não é?

Alice: e o que você coloca como incentivo?

Rita: às vezes coloco parabéns, ótimo, que bom

que você fez, esses incentivos. Gostei.

Alice: e aqueles que não fazem?

Rita: não fez? Eu coloco assim tipo uma pergunta.

Até uma mãe naquele dia abriu o caderno e disse que o filho só tinha não fez, não fez e não fez. Não é assim. É perguntando, não fez? Eu interrogo.

Débora: mas você pergunta e pergunta para ele?

Antes de analisarmos o sentido que a estratégia de dar vistos nos cadernos assume na relação pedagógica da profes- sora com os alunos, é importante compreender que abrir a própria prática para um diálogo crítico nem sempre é fácil, o que pode gerar desconforto ou mesmo constrangimento para quem está sendo questionado. Com base nessa refle- xão, entendemos que ao dizer “precisa explicar, não é?” a professora começa a sentir-se incomodada com tantos questio- namentos. Esse foi um dos vários momentos em que até mesmo para nós não foi fácil assumir a posição de investigadora e formadora, porque nos sentíamos como invasora. Também compreendemos que, embora não quiséssemos adotar uma

postura instrumentalizadora da prática, mostrando o como fazer, os questionamentos feitos caminharam mais nessa dire- ção. Naquela ocasião, não conseguimos perceber essa postura, a qual talvez fosse a causa de tamanho incômodo para todas nós. Ao direcionarmos um olhar “extraposto”, percebemos que adotamos naquele contexto uma posição tradicional de investigadora, embora quiséssemos ser colaboradora.

Retomando o diálogo sobre a importância da estratégia de dar visto nos cadernos, o que foi dito pela professora a respei- to da necessidade desse tipo de atividade nos fez lembrar que há saberes que se ensinam e que se aprendem, os quais, neces- sariamente, não constam das propostas de ensino, tampouco os professores aprendem a ensiná-los nos cursos de forma- ção inicial ou continuada. Quando a professora diz: “a gente convive com as crianças, não é, Alice, quase todos os dias é um caderno diferente. E também não zelam o caderno”, embora se utilize de estímulos e reforçadores, como sugere a abordagem comportamentalista da aprendizagem, a professora, baseando- -se nos saberes do trabalho vivido, compreende a necessidade e a importância de ensinar os alunos a cuidarem do material, a organizarem o que se escreve no dia a dia e a aprenderem sobre a importância de ter os escritos como memória do que foi traba- lhado. Assim, quando ela declara: “E até eu exijo e digo para eles que o caderno é importante, que aquilo que está anotado eu posso amanhã pedir, para ele ver no caderno, procurar lá no caderno”, essas estratégias utilizadas pela professora indicam objetivos de ensino e de aprendizagem enraizados nas neces- sidades dos alunos e nos saberes do professor, construídos em suas práticas cotidianas.

Ao relacionarmos os saberes docentes com o desenvol- vimento dos processos mentais superiores, podemos entender

que, da mesma forma que estes, os saberes docentes são cons- truídos e mobilizados em situações interacionais e expressam as marcas do processo sócio-histórico de sua construção. Desse modo, o que a professora Rita mobiliza nesse diálogo reflexivo em termos de seus saberes sobre o ensinar e aprender constitui, em alguma medida, a sua compreensão a respeito da organi- zação desse processo. Assim, ensinar e aprender, para ela, é um processo em que é necessário estar sempre relembrando os conteúdos. Sua história pessoal e a sua vivência profissional a levam a valorizar o ensino de normas, de valores e dos conteú- dos necessários para a aprendizagem da leitura e da escrita como saberes imprescindíveis aos alunos para se tornarem alfa- betizados. Os saberes advindos de suas formações continuadas se configuram discursos que não reposicionam esses saberes, acrescentando à sua prática modos de fazer que se justapõem aos saberes e às práticas internalizados ao longo da sua forma- ção pessoal e profissional.