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A crise de governança e governabilidade no Brasil e sua relação com o

4- FINANCIAMENTO DE CAMPANHA ELEITORAL

4.2 Financiamento de campanha eleitoral no Brasil

4.2.1 A crise de governança e governabilidade no Brasil e sua relação com o

O tema governabilidade, como questão teórica, ganhou relevo na literatura política a partir de uma linha de reflexão aprofundada pelo cientista político Huntington (1968), entre as décadas de 60 e 70. Para referido autor, existiriam ótimas condições de governabilidade quando houvesse um equilíbrio entre as demandas sobre o governo e sua capacidade de administrá-las e atendê-las.

Governabilidade, aqui, deve ser entendida como o equilíbrio entre as demandas sobre o governo e sua capacidade de administrá-las e de atendê-las. Em outras palavras, no campo político, entendida como a capacidade do Estado em agregar interesses. Diz respeito às condições para o exercício da autoridade política, dentre as quais se inserem as relações entre os poderes. Para que haja governabilidade, a autoridade deve ter legitimidade e sustentação política para que exerça o poder.

Consoante Ferreira Filho (1995), a governabilidade exprime a possibilidade de ação governativa eficaz; traduz a aptidão de um Estado determinado realizar os objetivos que se propõe, em face de um quadro concreto. Governar é poder, isto é, é ter capacidade para alterar o mundo exterior, a conduta dos indivíduos e os grupos sociais.

De se ressaltar que a expressão governabilidade sofreu uma multiplicidade de interpretações, incentivada pela politização das discussões.

O conceito de governabilidade não é incompatível com o funcionamento de formas mais participativas do governo democrático. Ao contrário, o que se almeja é o aprofundamento da democracia pela difusão de instrumentos de poder capazes de expressar o dinamismo da sociedade civil (DINIZ, 1997).

Alguns autores evidenciam três dimensões no conceito de governabilidade: identificação dos problemas críticos e formulação de políticas apropriadas ao seu enfrentamento; capacidade de mobilização de recursos necessários à execução de tais políticas; capacidade de liderança do Estado.

Para Diniz (1996), governabilidade refere-se às condições sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício do poder em uma dada sociedade, tais como as características do sistema político, a forma de governo, as relações entre os poderes, os sistemas partidários, o sistema de intermediação de interesses.

Governança, por seu turno, é a capacidade de desenhar, formular e implementar as políticas públicas; é o conjunto de princípios e práticas que visam à melhoria da eficiência da

administração pública no plano administrativo. Refere-se a uma série de mudanças que têm ocorrido desde o final do século XX e que dizem respeito a relações entre governo e sociedade em muitos Estados, para poder reconstruir o sentido e a capacidade de direção da sociedade. Alude a uma maior capacidade de decisão e influência que empresas, organizações da sociedade civil e outros atores não governamentais têm adquirido no processamento dos assuntos públicos, na definição da orientação e instrumentalização das políticas públicas e dos serviços públicos (LA GARZA, 2010). Governança pressupõe, portanto, uma interação saudável, transparente, entre governo e atores não estatais, que passam a ser, inclusive, corresponsáveis na tomada de decisões que definirão os rumos da sociedade.

Consoante os ensinamentos de Diniz (1996, p. 12-13), governança diz respeito à capacidade governativa em sentido amplo, envolvendo a capacidade de ação estatal na implementação das políticas e na consecução das metas coletivas. “Refere-se ao conjunto dos mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural da sociedade, o que implica expandir e aperfeiçoar os meios de interlocução e de administração do jogo de interesses.” Prossegue a autora afirmando que o conceito de governança requer que se recupere a noção de interesse público, “crescentemente banida do vocabulário político”.

A ingovernabilidade brasileira, para Ferreira Filho (1995), resulta de três crises interligadas: a de sobrecarga de problemas aos quais o Estado responde com expansão de serviços e intervenção, gerando uma crise fiscal; a do agenciamento dos Poderes, vale dizer, crise política, ligada à legitimidade das instituições; e a do modelo democrático- representativo, que é resultante da combinação de uma crise de gestão administrativa com uma crise de apoio político dos cidadãos aos governantes e autoridades.

As crises de governabilidade e do Estado são indissociáveis e devem ser abordadas em suas múltiplas dimensões. É preciso compatibilizar a eficiência do Estado e o aprimoramento da democracia (DINIZ, 1996). Para tanto, o enfrentamento da crise exige um Estado eficiente. Aumentar o grau de governabilidade de uma ordem democrática exige um reforço da responsabilidade do Estado em face das metas coletivas e das demandas básicas dos diferentes segmentos da população. O problema da governabilidade, portanto, deve ser examinado em seu teor pluridimensional, segundo Diniz (1996).

Canotilho (2008) define a boa governança, numa compreensão normativa, como a condução responsável dos assuntos do Estado. Afirma que ela acentua a interdependência internacional dos Estados e recupera algumas dimensões do “New Public Management” como mecanismo de articulação de parcerias público-privadas e insiste em questões

politicamente fortes como as de governabilidade, accountability46 e legitimação. Uma boa governança aumenta a legitimidade do governo e, consequentemente, a governabilidade.

A Lei anticorrupção 12846/13 - que dispõe sobre a responsabilização objetiva, administrativa e civil, de pessoas jurídicas, pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira - regulamentada pelo Decreto 8420/15, é considerada um marco legal da compliance47, a qual, ao lado da accountability, são fundamentais para o combate à corrupção.

Os conceitos de governabilidade e governança, portanto, não se confundem, ao contrário, complementam-se e, com base neles, é inevitável que surjam questionamentos, novas teorias, necessidade de se repensar e rever vários outros conceitos, principalmente no tocante ao Direito Constitucional, ao qual o Direito Eleitoral está intimamente atrelado, conforme já exposto no tópico anterior, na medida em que se trata de um direito fundamental expressamente consagrado na Constituição Federal de 1988.

Ao se analisarem os conceitos de governança e governabilidade, é forçoso concluir-se que o poder político está passando por transformações.

Com efeito, a sociedade contemporânea está mais dinâmica, relacionando-se de forma muito mais complexa, intensa e rápida, vale dizer, as relações estão cada vez mais voláteis, o que dificulta a estabilidade dos planejamentos estatais e das gestões socioeconômicas, gerando insegurança e um permanente ambiente de incerteza e provisoriedade. Superar tudo isso é um desafio para os Estados (FRANCISCO, 2013).

Constata-se, portanto, um momento de transições, de reformas necessárias, que sejam capazes de redefinir o papel do Estado, o qual deverá assumir uma postura que permita uma maior interação com a sociedade, com os atores não estatais, de forma consensual, transparente e sempre tendo em mente a realização do bem comum. No exercício de seu poder, deve o Estado ser capaz de identificar os problemas e formular políticas apropriadas para enfrentá-los.

O que não pode é o Estado divorciar-se da sociedade, gerando uma verdadeira crise de legitimidade, como vem ocorrendo no Brasil, agindo sem que haja um interesse legítimo a orientar o governo na implementação de políticas públicas.

Não se pode olvidar que a crise do Estado brasileiro decorre também de fatores externos, a exemplo dos choques do petróleo na década de 70 e do crescimento da dívida

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Diz respeito ao funcionamento de todos os mecanismos desenvolvidos para garantir a prestação de contas pelos governantes de seus atos, com a consequente responsabilidade.

47 Diz respeito ao cumprimento de normas, políticas e diretrizes na realização condução de uma empresa, na realização de um negócio.

externa, de modo que, a partir dos anos 80, os governantes passaram a enfrentar um crescente desequilíbrio fiscal, inflação fora de controle e desordem nas contas públicas.

Inegável que, hoje, no Brasil, verifica-se uma situação de vulnerabilidade, nos mais variados aspectos, inclusive institucional, entre os três poderes, exigindo-se do Estado uma postura eficiente, que permita superá-la.

Outrossim, não se pode desconsiderar que se vive em um mundo globalizado, fazendo- se necessário compatibilizar os interesses internos do país com os supranacionais (internacionais e comunitários), o que torna ainda mais difícil para o Estado planejar suas ações e implementar políticas públicas.

A Política é, essencialmente, um meio de intermediação de interesses, tendo as instituições democráticas a finalidade de exercer um maior filtro do ingresso de interesses privados no jogo político.

A partir do momento em que doações ilícitas são feitas às claras, e os financiamentos estão longe de garantir paridade de armas entre os candidatos48, pois os maiores doadores visam à satisfação de seus interesses privados - idealmente orientados pela busca da mais- valia, o que é incompatível com o trato da coisa pública -, verifica-se uma espécie de patrimonialização do financiamento das campanhas. Como consequência, gera-se uma patrimonialização do voto e, em última análise, uma patrimonialização do Estado.

Em outras palavras, a partir do momento em que uma pessoa física ou jurídica faz uma doação ilegal para financiar um partido político ou um candidato, pretende, com isso, a satisfação de seus interesses e a retribuição por parte do candidato beneficiado com a doação, se eleito for. Dessa forma, o governo, para satisfação dos interesses de seus financiadores, deixará de se nortear por interesses legítimos na implementação de políticas públicas, o que denota o reflexo na governabilidade, comprometendo-a.

Além disso, os princípios democráticos, bem como aqueles que regem a administração pública, insculpidos no art. 37 da Constituição Federal, – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência -, são postos de lado, em função do comprometimento político do governo com seus financiadores.

Esses doadores (financiadores), por seu turno, também são eleitores, de sorte que, ao votarem em determinado candidato ou partido político, já patrimonializaram seu voto,

48A este respeito, insta observar que muito se tem discutido a questão do “Caixa 1” (doações, muito embora registradas e com a devida prestação de contas, com recursos provenientes de propinas), “Caixa 2” (doações não declaradas à Justiça Eleitoral) e até mesmo “Caixa 3” (doações também não declaradas, em esquema que envolve empresas offshore mantidas no exterior). Todas essas modalidades não deixam de ser doações irregulares.

buscando apenas a satisfação de seus interesses e se descomprometendo, enquanto cidadãos que vivem num país democrático.

Atente-se que esse processo de “retribuição” também faz com que os eleitores percam sua igualdade, na medida em que o eleitor que doa tem um peso maior sobre o que não fez qualquer espécie de doação, colocando por terra toda uma conquista das democracias modernas de igualdade dos eleitores.

Aliás, a esse propósito, cabe lembrar Ruy Barbosa (Brasil, 1956) que, em conferência datada de 191949, comparou o povo brasileiro ao personagem Jeca Tatu, da obra Urupês, de Monteiro Lobato, para quem o ato mais importante de sua vida era votar no governo, ainda que não soubesse em quem votava. Ainda no mesmo discurso, menciona a prática de compra de votos com “um rolete de fumo, uma andaina de sarjão e uma vez de aguardente” (p. 68), questionando se o povo realmente não valia mais do que isso.

É triste constatar que a prática de compra de votos, já existente naquela época, persiste até os dias de hoje.

A ingovernabilidade pode ser traduzida pela síndrome do clientelismo, corrupção e desperdício. As práticas clientelistas, que têm sua origem no processo eleitoral, acabam por patrimonializar o Estado.

O clientelismo50 faz-se presente na Ciência Política, na medida em que o modo capitalista de produção e a organização política moderna, apoiada num aparelho político- administrativo centralizado, imbricam-se.

A análise dessa questão busca demonstrar que a implementação de políticas públicas (governabilidade) dá-se em função do comprometimento político dos governantes com seus financiadores, sem levar em conta um interesse legítimo que os oriente.

Além disso, verifica-se, no Brasil, uma má alocação dos recursos públicos no tocante a verbas com publicidade, e os escândalos atuais mostram que, no mais das vezes, era através de agências de publicidade que empresas estatais desviavam recursos a serem, posteriormente, repassados a políticos e suas campanhas eleitorais.

49 Conferência sobre “A questão social e política no Brasil” pronunciada no Teatro Lírico, em 20 de março de 1919.

50 A expressão clientelismo tem sua origem nas clientelas de Roma, entendidas como uma relação entre sujeitos de status diverso que se urdia à margem, mas na órbita da comunidade familiar: relação de dependência tanto econômica como política, sancionada pelo próprio foro religioso, entre um indivíduo de posição mais elevada (patronus) que protege seus clientes, os quais retribuem de variadas formas. Em uma sociedade assim, a organização política atende, em primeiro lugar, à comunidade doméstica que, além de ser a estrutura econômica fundamental com o trabalho da terra, é também um microcosmo político, governado e protegido pelo pater famílias. A comunidade política estatal vem em segundo lugar e é praticamente constituída pela associação de um grande número de comunidades familiares (res publica) (BOBBIO et al., 1992).

Sociedades de economia mista e empresas públicas, que exercem atividades em que não há relação de concorrência com o mercado, à exceção da publicidade legal, não devem gastar com publicidade, em razão da finalidade que possuem, entretanto, pegando-se a empresa Petrobrás como exemplo, conforme dados extraídos do seu próprio site, ela conta com a verba anual de R$ 330 milhões para gastos com publicidade51.

Ainda, segundo informações obtidas no site “Contas Abertas”52, em 2017, o Governo Federal gastou R$ 795,8 milhões em publicidade53. Desse montante, R$ 379,4 milhões foram destinados a informações e orientações consideradas de utilidade pública. Com publicidade institucional, que tem por objetivo divulgar informações sobre atos, obras e programas governamentais, o gasto foi de R$ 306,8 milhões. Por fim, R$ 66,3 milhões foram destinados à publicidade legal, que visa à publicação de avisos, balanços, relatórios e outros comunicados que a administração pública é obrigada a divulgar, por força legal.

Ainda segundo referido site, na conta de gastos do governo federal com publicidade, é possível encontrarem-se os serviços “mercadológicos”, para os quais foram aplicados R$ 10 milhões. Esse tipo de propaganda serve para promover produtos e serviços oferecidos por entidades e sociedades controladas pela União que atuam numa relação de concorrência no mercado.

Como se vê, do total gasto com publicidade, apenas 8,33% foram gastos com publicidade legal e, por outro lado, um exagero nos gastos com publicidade institucional, a indicar a desproporção nos gastos.

De se concluir, portanto, que o país passa por uma crise de governança e governabilidade e que está intrinsicamente ligada ao modelo de financiamento de campanha eleitoral adotado, sendo medida de rigor a sua alteração.