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4 ADVOCACIA DE GOVERNO E ADVOCACIA DE ESTADO

4.1 ADVOCACIA DE GOVERNO: O PARADIGMA EM CRISE

4.1.4 A cultura quanto a ausência de liberdade de atuação

Advogados Públicos podem se tornar refratários à celebração de acordos e ao reconhecimento de direitos por ser constantemente verbalizado que se deve prestar obediência a alguém que lhe está acima e que somente essa autoridade superior deteria o poder de autorizar a que o Estado reconheça o que todas as provas comprovam.

Superar essa cultura não será tarefa fácil, posto que está arraigada nas subestruturas institucionais. E não é para menos. Produções normativas internas não raro tornam manifesto e procuram disseminar o pensamento de dominação, exteriorizando em atos oficiais a submissão de Advogados Públicos a atos de comando. O problema maior está no fato de essa cultura atingir diretamente o recém ingresso nas carreiras que necessita de um grande esforço para não ser cooptado pelas superestruturas de dominação e submissão.

A Portaria PGFN nº 641/2011, por exemplo, estabelece em seu art. 22 que a elaboração de atos típicos da Advocacia Pública como pareceres, informações e manifestações processuais somente se aperfeiçoariam quando aprovados por autoridade superior

competente381.

É completamente questionável possa uma mera portaria estabelecer que cada parecer, cada opinião, cada informação, e o que é pior, cada manifestação processual só possuirá validade se aprovada por um “Chefe” que revisa o ato de um “subalterno”. Estabelece-se um dever de reverência à figura do “Chefe” quando todo Advogado Público deve manifestar reverência apenas à constituição, às leis e à interpretação já consolidada pelos tribunais.

Quando a Portaria diz que um parecer ou uma manifestação processual somente será considerada como manifestação da PGFN se chancelado por uma autoridade superior competente está transmitindo a mensagem subliminar de que um Procurador da Fazenda Nacional não detém, por si, a aptidão de produzir manifestações vinculantes ao órgão, o que

381 “Art. 2º Para os efeitos desta Portaria, consideram-se atos da PGFN: [...] VII – Parecer; VIII – Nota; IX –

Informação; XI – Manifestação Processual; XIV – Nota Justificativa [...]. Art. 22. Os atos previstos nos incisos VII, VIII, IX, XI e XIV do art. 2º desta Portaria só se aperfeiçoam quando aprovados por autoridade competente e devidamente numerados. §1º Os atos referidos no caput deverão guardar conformidade com as posições e fundamentos jurídicos da Unidade Central da PGFN. § 2º Os atos referidos no caput representam a posição da PGFN e a essa passam a pertencer apenas quando aprovados pelas autoridades superiores

parece se tratar de uma inconstitucionalidade gritante, como se os atos do agente público decorrentes de sua investidura constitucional fossem um nada jurídico.

Pretende-se por ato administrativo retirar a liberdade de manifestação e de atuação individual de cada membro da Procuradoria da Fazenda Nacional derrogando por intermédio de uma simples Portaria as competências inerentes à própria investidura constitucional.

Tal ato normativo contraria o disposto no art. 31, caput, e § 2º do Estatuto da OAB, que assegura ao advogado, no exercício da profissão, a manutenção da independência em qualquer circunstância, sem receio de desagradar a magistrado ou a qualquer autoridade, nem de incorrer em impopularidade no exercício da profissão.

Aludida Portaria contraria também o art. 131 da Constituição Federal, na exata medida em que suprime do Advogado Público a atribuição de representação da União e de assessoramento do Poder Executivo.

Tal Portaria desconsidera completamente que os Procuradores da Fazenda Nacional ascenderam ao cargo público mediante concorrido concurso de provas e títulos. As relevantes atividades de um Advogado Público não podem sofrer tamanho desprestígio institucional.

A ordem jurídica clama para que a Advocacia Pública cumpra, de fato, um papel relevante no contexto constitucional por intermédio de suas manifestações, mas na contramão de todas as expectativas a própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional explicitamente publica atos normativos com o propósito de afivelar o exercício da liberdade profissional ao entendimento de quem possua um transitório cargo comissionado e que foi subjetivamente designado para exercê-lo. Será muito difícil contribuir para a distribuição da justiça enquanto existir uma Advocacia Pública tímida, tíbia, dependente e fortemente aparelhada onde se praticam inadvertidamente cerceamentos ao livre exercício do múnus constitucional.

Referida portaria expressa, nas entrelinhas, que caso a autoridade superior não concorde com o posicionamento do ‘subalterno’, outro parecer deverá ser confeccionado e o parecer não aprovado não será numerado e, portanto, não será documentalizado. Em outras palavras, expressa-se que não figurará no processo administrativo um parecer sem aprovação da autoridade superior. Desse modo, nenhum órgão de controle tomará conhecimento do verdadeiro entendimento jurídico exarado por determinado Advogado Público. Ou seja, o Advogado Público está jungido a pensar com a cabeça do “chefe”, a acertar com os acertos do “chefe”, a se equivocar com os equívocos do “chefe” e a ser corresponsabilizado por atos praticados em conjunto com o “chefe”.

O parecer representa a manifestação intelectiva do Advogado Público com análise jurídica dos fatos a ele submetidos. Em razão disso, não pode simplesmente ser desprezado.

Necessita ser acostado aos autos do processo administrativo e nele mantido, mesmo se for rejeitado. Para superá-lo necessita-se de fundamentação idônea. Um parecer, mesmo não prevalecente, se insere no contexto da historicidade documental e pode, eventualmente, ser objeto de análise pelas instâncias de controle. Um Estado Democrático de Direito não se constrói sem pensamentos dissonantes. O parecer é um ato individual. É ele a produção jurídica de um membro da Advocacia-Geral da União. Não se pode conceber que uma carreira com assento constitucional de tamanha envergadura seja tolhida na sua atuação específica ou tenha desproporcionalmente refreada a atividade-fim para a qual foi concebida. Há aqui um evidente abuso do poder regulamentar.

Não fosse suficiente, em unidades com afluxo de considerável volume de processos existe uma impossibilidade material para cumprimento de tal Portaria, pois torna-se humanamente impossível a um único agente público personalizado na figura do ‘chefe’ poder analisar todos os processos e ler todas as manifestações processuais produzidas por diversos Advogados Públicos antes de serem apresentadas em juízo. Crê-se por isso que tal portaria não deva ser, de fato, cumprida no âmbito das Procuradorias Fazendárias por impossibilidade material, mas a sua simples existência com a expressa consignação em texto normativo interno sobre a necessidade de aprovação de pareceres e manifestações processuais por parte de um superior é fato desabonador que se situa no avesso de uma sociedade plural em completo desrespeito a preceitos republicanos. É ainda uma manifestação clara e inequívoca da separação entre o advogado ‘que manda’ e o advogado ‘que obedece’ a gerar uma sensação por parte desses últimos de ausência da prerrogativa de “poder-fazer”. Se essa prática se tornou explícita na Procuradoria da Fazenda Nacional, nas demais carreiras mantém-se sob o suspense da indeterminação sobre quais seriam os limites, as possibilidades e as prerrogativas dos Advogados Públicos Federais.

A superação da postura extremamente resistente será conquistada mediante reformas estruturais e culturais. A assimilação de ideias difundidas sobre necessidades de autorização para a prática de qualquer ato implicou se estabelecesse no âmbito institucional a concepção de ausência de liberdade de atuação para reconhecer uma pretensão formulada contra o Estado. E, nesse cenário, infelizmente, a cultura do ‘não’ tornou-se um hábito institucionalmente sedimentado e que somente a duras penas se conseguirá superá-lo.

Espera-se, no entanto, que tal postura seja superada pela Lei 13327/2016, que diz expressamente, em seu art. 37, competir aos ocupantes dos cargos de Advogado Público Federal, dentre outras atribuições, apresentar nos processos petições e manifestações em geral; exarar pareceres, notas, informações, cotas e despachos; interpretar as decisões judiciais,

especificando a força executória do julgado e fixando para o respectivo órgão ou entidade pública os parâmetros para cumprimento da decisão; participar de audiências e sessões de julgamentos, proferindo sustentação oral sempre que necessário; despachar com autoridades judiciais e administrativas assuntos de interesse da União, suas autarquias e fundações públicas; analisar a possibilidade de deferimento de parcelamentos e encaminhar a protesto os créditos cuja titularidade seja da União e de suas autarquias e fundações públicas; promover a análise de precatórios e de requisição de pequeno valor antes de seus pagamentos; propor, celebrar e analisar o cabimento de acordos e de transações judiciais e extrajudiciais, nas hipóteses previstas em lei.

A independência funcional, portanto, está sustentada em âmbito constitucional em um princípio não escrito decorrente da própria investidura no cargo e do respeito aos aspectos de juridicidade do ato administrativo. Neste princípio colhido do direito pressuposto que referida lei se sustenta.