• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Y E Z

2. O Acórdão Y e Z

2.4. A decisão do Tribunal de Justiça

O TJUE respondeu à primeira e à segunda questões em conjunto. Ora, procurava aqui saber-se se o artigo 9.º, n.º 1, alínea a), da Directiva 2004/83/CE deve ser interpretado no sentido de que qualquer violação à liberdade de religião, tal como está prevista no artigo 10.º, n.º 1, da CDFUE195, é susceptível de constituir um “acto de perseguição”, para efeitos do reconhecimento do estatuto de refugiado. Ou seja, haverá uma diferença entre o “núcleo essencial” da liberdade de religião e a sua manifestação exterior?

O artigo 9.º, n.º 1, alínea a), da Directiva de Qualificação exemplifica como actos de perseguição os direitos inderrogáveis garantidos no artigo 15.º, n.º 2, da CEDH, como foi dito supra. Ora, a liberdade de religião não é um deles. No entanto, o Tribunal de Justiça falou da importância deste direito na sociedade enquanto direito fundamental, concluindo que “[u]ma ingerência no direito à liberdade de religião pode ter uma gravidade equiparável aos casos visados no artigo 15.º, n.º 2, da CEDH”196. Mas o TJUE esclareceu que, de facto, nem todas as violações do direito à liberdade de religião podem consubstanciar actos de perseguição. O artigo 9.º da Directiva de Qualificação fala-nos em “grave violação dos direitos humanos fundamentais”. O Tribunal argumentou que as violações à liberdade da pessoa têm de afectar a sua vida de forma significativa, sendo “excluídos liminarmente os atos que constituem restrições ao exercício do direito fundamental à liberdade de religião na aceção do artigo 10.º, n.º 1,

195 Artigo 10.º, n.º 1, da CDFUE: “Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de

consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção, individual ou colectivamente, em público ou em privado, através do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos”.

196 V. § 57 do Acórdão do Tribunal de Justiça Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z, de 5 de

64

da Carta, previstas pela lei, sem, porém, violarem este direito, uma vez que são abrangidos pelo artigo 52.º, n.º 1, da Carta”197

.

O Tribunal de Justiça afirmou que, para se determinar o conceito de “acto de perseguição” do artigo 9.º, n.º 1, alínea a), da Directiva 2004/83/CE, não é correcto fazer-se a distinção entre o núcleo essencial da liberdade de religião (o chamado forum

internum) e as actividades religiosas em público, individuais ou colectivas (o chamado forum externum). O TJUE argumentou que esta distinção não está de acordo com o

artigo 10.º, n.º 1, alínea b), da Directiva, pois a definição de “religião” ali presente é mais ampla198. Por isso mesmo, o Tribunal de Justiça considerou que as violações que interfiram com os ritos religiosos públicos também devem ser consideradas suficientemente graves, de acordo com o artigo 9.º da Directiva de Qualificação, consubstanciando, assim, actos de perseguição199. Ou seja, os actos de perseguição não devem ser identificados através do elemento da liberdade de religião que foi atingido, mas sim através da natureza e gravidade da restrição imposta e das consequências que a mesma traz à pessoa afectada200. O Tribunal de Justiça concluiu que “uma violação do direito à liberdade de religião é suscetível de constituir uma perseguição na aceção do artigo 9.º, n.º 1, alínea a), da diretiva quando o requerente de asilo, devido ao exercício dessa liberdade no seu país de origem, corre um risco real, nomeadamente, de ser perseguido ou de ser submetido a tratamentos ou a penas desumanas ou degradantes por parte de um dos agentes referidos no artigo 6.º da diretiva”201.

197

V. § 60 do Acórdão do Tribunal de Justiça Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z, de 5 de Setembro de 2012, processos apensos C‑71/11 e C‑99/11.

198

Artigo 10.º, n.º 1, alínea b), da Directiva 2004/83/CE: “A noção de religião abrange, designadamente, o facto de se ter convicções teístas, não teístas e ateias, a participação ou a abstenção de participação em cerimónias de culto privadas ou públicas, quer a título individual, quer em conjunto com outras pessoas, noutros actos religiosos ou expressões de convicções, ou formas de comportamento pessoal ou comunitário fundadas em credos religiosos ou por estes impostas”.

199 V. § 62 e § 63 do Acórdão do Tribunal de Justiça Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z,

de 5 de Setembro de 2012, processos apensos C‑71/11 e C‑99/11.

200 O TJUE segue aqui a opinião do Advogado-Geral Yves Bot, como se comprova pelo § 52 das

suas Conclusões.

201 V. § 67 do Acórdão do Tribunal de Justiça Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z, de 5 de

65

O TJUE chamou ainda a atenção para os critérios a ter em conta na avaliação daquele risco. Um dos elementos a ter em conta é o carácter subjectivo que aquele específico rito público assume para a identidade religiosa do interessado, mesmo que aquela prática não consubstancie um elemento central para a comunidade religiosa em causa202. O Tribunal de Justiça justificou esta interpretação com a redacção do artigo 10.º, n.º 1, alínea b), da Directiva 2004/83/CE, pois “o âmbito de proteção do motivo de perseguição relacionado com a religião abrange tanto as formas de comportamento pessoal ou comunitário que a pessoa considere necessárias para si própria, designadamente, as que são «fundadas em credos religiosos», como as que são determinadas pela doutrina religiosa, designadamente, as que são «impostas [por estes credos]»”203

.

Quanto à terceira questão prejudicial, o tribunal de reenvio procurava saber se o receio do requerente é fundado se este puder renunciar ao exercício de determinados actos religiosos, evitando assim ser perseguido. Primeiramente, o Tribunal de Justiça esclareceu que “[a] apreciação da importância do risco [de perseguição] que, em todos os casos, deve ser efetuada com vigilância e prudência [assenta] unicamente numa apreciação concreta dos factos e das circunstâncias em conformidade com as regras que figuram, designadamente, no artigo 4.º da diretiva”204. O TJUE argumentou que nenhuma norma da Directiva nos dá a entender que este critério seja pertinente. Assim, se as autoridades competentes estabelecerem que é razoável que o interessado, tendo em conta a sua situação pessoal, regressado ao seu país de origem, praticará actos religiosos que o possam expor a um risco real de perseguição, deve ser-lhe reconhecido o estatuto

202 V. § 70 do Acórdão do Tribunal de Justiça Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z, de 5 de

Setembro de 2012, processos apensos C‑71/11 e C‑99/11. Na nossa opinião, o facto de os requerentes continuarem a praticar a sua religião na Alemanha constitui um forte indício de que a manifestação da sua fé é um acto deveras importante para a sua identidade religiosa.

203

V. § 71 do Acórdão do Tribunal de Justiça Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z, de 5 de Setembro de 2012, processos apensos C‑71/11 e C‑99/11.

204 V. § 77 do Acórdão do Tribunal de Justiça Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z, de 5 de

66

de refugiado, segundo o artigo 13.º da Directiva 2004/83/CE, pois o receio do requerente em ser perseguido é fundado205.