• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO III – O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Y E Z

2. O Acórdão Y e Z

2.1. Os factos

Em Janeiro de 2004 e em Agosto de 2003, Y e Z entraram em território alemão, requerendo que lhes fosse concedido asilo e reconhecido o estatuto de refugiados. Da norma constitucional sobre asilo, retirou o Tribunal Constitucional alemão vários direitos, tais como o direito de entrada e permanência no território daquele Estado, o direito a uma protecção efectiva contra novas perseguições e o direito de recurso jurisdicional de decisões que indefiram um pedido de asilo180. A Constituição alemã, no seu artigo 3.º, n.º 3, proclama o princípio da não discriminação com base na religião. Esta Constituição incorpora, ainda, a chamada dimensão negativa da liberdade de religião, afirmando que ninguém pode ser obrigado a participar de qualquer cerimónia religiosa, ou a praticar um acto religioso181. O § 2 da Lei sobre o processo de asilo (Asylverfahrensgesetz) prevê que as pessoas que beneficiam do direito de asilo em solo

179

Acórdão do Tribunal de Justiça Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z, de 5 de Setembro de 2012, processos apensos C‑71/11 e C‑99/11, texto disponível em http://eur-

lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:62011CJ0071:PT:HTML [10.03.2014].

180

Cfr. Andreia Sofia Pinto OLIVEIRA – O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa: Âmbito de protecção de um direito fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 114.

181 Cfr. Alejandro Saiz ARNAIZ et al. (coordenador) – Religious practice and observance in the EU Member States, Fevereiro de 2013, disponível em

www.europarl.europa.eu/committees/en/studiesdownload.html?languageDocument=EN&file=91550

57

alemão gozam do estatuto definido na Convenção de Genebra. As condições para ser considerado refugiado estão plasmadas no § 3, n.º 1, da Lei de asilo alemã: um estrangeiro é considerado refugiado na acepção da Convenção de Genebra quando, no Estado de que tem a nacionalidade, esteja exposto aos riscos referidos no § 60, n.º 1 da Lei sobre a residência, o trabalho e a integração dos estrangeiros no território federal. O § 60, n.º 1, dispõe que, em aplicação da Convenção de Genebra, um estrangeiro não pode ser conduzido à fronteira a fim de ser afastado para um Estado onde a sua vida ou a sua liberdade estejam ameaçadas em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, das suas convicções políticas ou do facto de pertencer a um determinado grupo social. A Alemanha transpôs literalmente o artigo 9.º, n.º 2, da Directiva 2004/83/CE do Conselho, que nos dá exemplos do que pode constituir um acto de perseguição182.

Perante as autoridades alemãs, Y e Z argumentaram que tiveram de fugir do seu país de origem, o Paquistão, por pertencerem à comunidade muçulmana Ahmadiyya, um movimento minoritário reformista islâmico oprimido pela maioria sunita. O Islão foi declarado como religião oficial do Estado do Paquistão na Constituição de 1973. O tribunal de reenvio esclarece as condições em que os ahmadis vivem naquele país. Os seus locais de oração, na maioria das vezes, não chegam a ter permissão para serem construídos e os já existentes são por vezes fechados e outras vezes invadidos por grupos extremistas. As forças policiais do Estado recusam-se a oferecer protecção efectiva aos ahmadis contra tal violência183.

Em particular, Y alegou ter sido agredido e apedrejado continuamente, no local de orações que frequentava. Os agressores ameaçaram-no de morte e denunciaram-no por insultos ao profeta Maomé. Já Z afirmou ter sido maltratado e feito prisioneiro

182 Cfr. European Council on Refugees and Exiles – The impact of the EU qualification directive on international protection, European Legal Network on Asylum, Outubro de 2008, disponível em

www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&source=web&cd=3&cad=rja&ved=0CEEQFjAC &url=http%3A%2F%2Fwww.ecre.org%2Fcomponent%2Fdownloads%2Fdownloads%2F130.html&ei= DRyaUZMM9I_sBse7gdgM&usg=AFQjCNG181tbC0BYYMb8yvOmxWURUolQXQ&sig2=9EQI4ihft

860kks2A_-E-Q&bvm=bv.46751780,d.ZGU [18.04.2013], p. 20.

183 Cfr. Federal Administrative Court – Request to the European Court of Justice for a preliminary ruling to clarify the preconditions required for persecution on account of violation of religious freedom under Directive 2004/83/EC, 9.12.2010, disponível em

58

devido às suas crenças religiosas. O artigo 298.º C do Código Penal paquistanês prevê que os membros da comunidade Ahmadiyya sejam punidos com pena de prisão até três anos, ou com uma sanção pecuniária. Isto acontece sempre que esses membros exijam ser considerados muçulmanos, pratiquem a sua religião em público, difundam a sua crença ou convidem outros a juntar-se à sua fé. Quem profanar o nome sagrado do profeta Maomé ou os símbolos e locais associados ao Islão, pode ser punido com pena de morte ou prisão perpétua e sanção pecuniária, nos termos do artigo 295.º C do Código Penal paquistanês184. Apesar do que alegaram, Y e Z viram os seus pedidos de asilo indeferidos pela autoridade administrativa responsável, o Serviço Federal para as Migrações e os Refugiados (Bundesamt für Migration und Flüchtlinge), que considerou que não estavam preenchidas as condições para o reconhecimento do estatuto de refugiado, pois não ficou provado um receio fundado de perseguição.

Y recorreu para o Tribunal Administrativo de Leipzig (Verwaltungsgericht

Leipzig), que anulou a decisão anterior da autoridade administrativa. Z recorreu para o

Tribunal Administrativo de Dresden (Bundesamt no Verwaltungsgericht Dresden), mas este negou provimento ao seu recurso. O representante federal para os assuntos relacionados com o asilo (Bundesbeauftragter für Asylangelegenheiten) e Z recorreram, em 2008, para o Tribunal Administrativo Superior do Land de Saxe (Sächsisches

Observerwaltungsgericht). Este tribunal considerou que, tanto Y, como Z, preenchiam

os requisitos para serem considerados refugiados, sendo proibido às autoridades alemãs expulsarem-nos para o Paquistão. Mais especificamente, o tribunal argumentou que o facto de Y e Z terem sido ameaçados pessoalmente é pouco importante para o caso, pois sendo ahmadis activos estarão sempre sujeitos a perseguição. Se voltarem ao Paquistão, Y e Z não poderão praticar a sua religião em público, facto que consideram essencial para conservarem a sua identidade religiosa, sem se colocarem em perigo, constituindo essa situação uma grave violação da liberdade de religião.

O Tribunal Administrativo Federal (Bundesverwaltungsgericht) foi chamado a intervir, quando o Serviço Federal para as Migrações e os Refugiados e o representante federal para os assuntos relacionados com o asilo interpuseram recurso da decisão anterior, considerando a interpretação do Tribunal Administrativo Superior do Land de

184 Sobre a aplicação destas normas, v. International Religious Freedom Report for 2012 - United

States Department of State, Bureau of Democracy, Human Rights and Labor, disponível em

59

Saxe demasiado ampla. Os recorrentes apontaram para a jurisprudência vigente na Alemanha antes da transposição da Directiva 2004/83/CE, em 2007, em que só se poderia considerar uma perseguição relevante nestes termos, quando fosse violado o “núcleo essencial” da liberdade de religião ou o “mínimo religioso vital” do Homem185

. Assim, não estaria aqui incluída a prática da religião em público186, questão essencial no caso dos ahmadis. Perante todos estes argumentos, o órgão jurisdicional onde a disputa se travava decidiu suspender a instância e submeter ao TJUE algumas questões prejudiciais.