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CAPÍTULO III – O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Y E Z

2. O Acórdão Y e Z

2.3. As conclusões do Advogado-Geral

O Advogado-Geral nestes processos apensos foi Yves Bot. Nas suas conclusões, Bot começa por chamar a atenção para o facto de a liberdade de manifestar a fé não se revestir de carácter absoluto. Ou seja, esta liberdade não protege todos os actos motivados por uma qualquer convicção, podendo ainda ser sujeita a restrições, nas condições definidas no artigo 9.º, n.º 2, da CEDH187 e no artigo 52.º, n.º 1, da CDFUE188.

Significa isto que Bot defende que existe, efectivamente, um “núcleo essencial” do direito à liberdade religiosa? Não necessariamente. O Advogado-Geral argumenta que o exercício de tentar circunscrever esse núcleo desembocaria em definições

187 O tribunal de reenvio também adopta esta perspectiva. Cfr. Federal Administrative Court – Request to the European Court of Justice for a preliminary ruling to clarify the preconditions required for persecution on account of violation of religious freedom under Directive 2004/83/EC, 9.12.2010, disponível em http://www.bverwg.de/medien/pdf/ent_en/10_c_19_09.pdf [13.03.2014], p. 12.

188 V. § 37 das Conclusões do Advogado-Geral Yves Bot apresentadas em 19 de Abril de 2012

(processos apensos C‑71/11 e C‑99/11), Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z, texto disponível em

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díspares, isto porque esta é uma questão demasiado subjectiva, que se altera consoante a cultura. Em seu entender, o objectivo da Directiva 2004/83/CE não pode ser este, pois o que se procura é estabelecer uma base comum a todos os Estados-Membros, e, por isso, não podemos relativizar um conceito tão essencial para o reconhecimento do estatuto de refugiado, que pode facilmente mudar consoante a época e o espaço em que nos encontramos. Por tudo isto, Yves Bot defende uma interpretação ampla da liberdade de religião, que integre as suas componentes privada e pública, individual e colectiva189.

Para determinar se estamos perante um acto de perseguição, Bot defende que devemos analisar a situação concreta do indivíduo no seu país de origem, isto é, o acto em questão deve estar revestido de uma gravidade tal que torna intolerável a vida da pessoa afectada naquele território. Yves Bot considera que a perseguição é uma forma de negação da pessoa humana, visando excluí-la da vida em sociedade190.

Ora, segundo o artigo 9.º, n.º 1, alínea a), da Directiva 2004/83/CE, estamos perante um acto de perseguição quando se constate uma violação de um direito inderrogável segundo o artigo 15.º, n.º 2, da CEDH, desde que essa perseguição ocorra por um dos motivos descritos no artigo 10.º da Directiva. E quando o fundamento do pedido de asilo não é a violação de um desses direitos absolutos? Yves Bot diz-nos que certas limitações ao direito à liberdade religiosa são necessárias ao equilíbrio da vida numa sociedade democrática, para que as diferentes religiões presentes num Estado de Direito possam conviver pacificamente, em nome do pluralismo religioso. Assim, o

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V. § 50 das Conclusões do Advogado-Geral Yves Bot apresentadas em 19 de Abril de 2012 (processos apensos C‑71/11 e C‑99/11), Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z: “A manifestação religiosa é indissociável da fé e constitui uma componente essencial da liberdade religiosa, quer ela seja exercida de forma pública ou privada. Como recordou a Comissão Europeia dos Direitos do Homem, a alternativa «em privado ou em público» referida nos textos significa apenas permitir ao fiel que manifeste a sua fé, de uma ou de outra forma, e não deve ser interpretada como excluindo-se mutuamente ou como deixando uma opção aos poderes públicos”. Na mesma esteira, v. Alliance Defense Fund – Federal Republic of Germany v Y and Federal Republic of Germany v Z: understanding freedom of religion, s/d, disponível em www.adfmedia.org/files/2012-04-23_Y_Update.pdf [18.04.2013], p. 6.

190 V. § 54 a § 56 das Conclusões do Advogado-Geral Yves Bot apresentadas em 19 de Abril de

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Advogado-Geral conclui que a perseguição se revela numa desproporção entre a liberdade que é atingida e as sanções susceptíveis de serem adoptadas191.

Yves Bot considera que o artigo 9.º, n.º 1, alínea a), da Directiva 2004/83/CE, deve ser interpretado no sentido de que uma violação grave da liberdade religiosa é susceptível de constituir um acto de perseguição quando o requerente de asilo corre um risco real de ser executado ou sujeito a tortura, a tratos ou a penas desumanos ou degradantes, de ser sujeito a escravidão ou a servidão ou de ser perseguido ou preso de forma arbitrária192. No caso em apreço, estão em causa sanções criminais desproporcionadas, previstas no Código Penal paquistanês, para os membros da comunidade Ahmadiyya. Cabe às autoridades responsáveis pela análise do pedido de asilo verificar se esta legislação em concreto é efectivamente aplicada no Paquistão193, através de relatórios regulares emitidos pelos Estados e pelas organizações de protecção dos direitos humanos. Para além da liberdade de religião, Yves Bot considera que este caso viola também as liberdades de expressão e de associação194.

Quanto à terceira questão, o Advogado-Geral discorda inteiramente da interpretação de que o requerente se deve abster de actos futuros que possam conduzir a situações de perseguição. Em primeiro lugar, a letra da Directiva de Qualificação não deixa antever nenhum sinal de que essa interpretação possa ser feita. Em nenhuma norma se fala da necessidade de encontrar uma solução que permita que o requerente de asilo resida no seu país de origem, sem recear ser exposto a violência. Em segundo lugar, Yves Bot argumenta que esta interpretação iria contra a CDFUE e o princípio da

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V. § 64, § 65, § 68 e § 69 das Conclusões do Advogado-Geral Yves Bot apresentadas em 19 de Abril de 2012 (processos apensos C‑71/11 e C‑99/11), Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z.

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V. § 77 das Conclusões do Advogado-Geral Yves Bot apresentadas em 19 de Abril de 2012 (processos apensos C‑71/11 e C‑99/11), Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z.

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Artigo 4.º, n.º 3, alínea a), da Directiva 2004/83/CE do Conselho. Desde a implementação da norma sobre blasfémia no Código Penal paquistanês, estima-se que cerca de dois mil processos criminais foram abertos contra ahmadis. Cfr. Federal Administrative Court – Request to the European Court of Justice for a preliminary ruling to clarify the preconditions required for persecution on account of violation of religious freedom under Directive 2004/83/EC, 9.12.2010, disponível em

http://www.bverwg.de/medien/pdf/ent_en/10_c_19_09.pdf [13.03.2014], p. 6.

194 Artigos 11.º e 12.º da CDFUE e 10.º e 11.º da CEDH, respectivamente. V. § 84 das

Conclusões do Advogado-Geral Yves Bot apresentadas em 19 de Abril de 2012 (processos apensos C‑71/11 e C‑99/11), Bundesrepublik Deutschland contra Y e Z.

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dignidade humana, pois, sendo a liberdade de religião essencial para a identidade de cada um, se se aceitar que o requerente deve renunciar a alguns direitos, será o mesmo que o fazer negar-se a si próprio. Se assim fosse, a Directiva perderia o seu efeito útil, não protegendo os indivíduos perseguidos por manifestarem a sua religião.