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CAPÍTULO II – A PROTECÇÃO DOS REFUGIADOS NA UNIÃO EUROPEIA

2. A Directiva 2004/83/CE do Conselho, de 29 de Abril de 2004

2.3. Análise ao artigo 9.º da Directiva 2004/83/CE

O artigo 9.º dispõe sobre actos de perseguição e estipula o seguinte: “1. Os actos de perseguição, na acepção do ponto A do artigo 1.º da Convenção de Genebra, devem: a) Ser suficientemente graves, devido à sua natureza ou persistência, para constituírem grave violação dos direitos humanos fundamentais, em especial os direitos que não podem ser derrogados, nos termos do n.º 2 do artigo 15.º da Convenção Europeia de Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; ou b) Constituir um cúmulo de várias medidas, incluindo violações dos direitos humanos, suficientemente graves para afectar o indivíduo de forma semelhante à referida na alínea a)”.

O n.º 2 do artigo 9.º elenca exemplificativamente algumas formas de perseguição. Pode ler-se: “2. Os actos de perseguição, qualificados no n.º 1, podem designadamente assumir as seguintes formas: a) Actos de violência física ou mental, incluindo actos de violência sexual; b) Medidas legais, administrativas, policiais e/ou judiciais, quando forem discriminatórias ou aplicadas de forma discriminatória; c) Acções judiciais ou sanções desproporcionadas ou discriminatórias; d) Recusa de acesso a recurso judicial que se traduza em sanção desproporcionada ou discriminatória;

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Cfr. Hélène LAMBERT – “The EU asylum qualification directive, its impact on the jurisprudence of the United Kingdom and international law”, in International and Comparative Law Quarterly, volume 55, Janeiro de 2006, disponível em

www.academia.edu/171665/THE_EU_ASYLUM_QUALIFICATION_DIRECTIVE_ITS_IMPACT_ON _THE_JURISPRUDENCE_OF_THE_UNITED_KINGDOM_AND_INTERNATIONAL_LAW

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e) Acções judiciais ou sanções por recusa em cumprir o serviço militar numa situação de conflito em que o cumprimento do serviço militar implicasse a prática de crime ou acto abrangidos pelas cláusulas de exclusão previstas no n.º 2 do artigo 12.º; f) Actos cometidos especificamente em razão do sexo ou contra crianças”.

Após cinquenta anos de discussões à volta do conceito de “perseguição”, ainda existem várias interpretações divergentes. Francesco Maiani aponta-nos a vantagem deste conceito ainda não estar completamente definido, a definição de refugiado é, assim, mais flexível, podendo adaptar-se e evoluir consoante as circunstâncias. Mas não deixamos de concordar com este autor, quando nos aponta a desvantagem desta indeterminação: a flexibilidade do conceito pode torná-lo vulnerável a manipulação e a interpretações restritivas, que em nada favorecem a protecção dos direitos humanos. Um outro problema é o facto de o conceito ser interpretado de forma diferente em diversas jurisdições, o que vai criar padrões de protecção diferenciados155. Para Francesco Maiani, a perseguição é um tipo de dano que é infligido por um ser humano (não por catástrofes naturais), é discriminatória e cruel, e é persistente, isto é, não se concretiza em episódios isolados, mas sim em ameaças sistemáticas156.

O Conselho, na sua Posição Comum 96/196/JAI, já mencionada supra, definiu “perseguição” como actos que violem gravemente os direitos humanos, tais como o direito à vida, o direito à liberdade ou à integridade física, ou que impeçam de forma manifesta que a pessoa atingida continue a viver no seu país de origem (n.º 4).

Para o ACNUR, a interpretação do termo “actos de perseguição” terá de ser flexível, de forma a poder adaptar-se a diferentes formas de perseguição que vão surgindo, não devendo ser apenas encarado como violação séria dos direitos humanos. Por isso mesmo, aplaude a alínea b) do n.º 1 do artigo 9.º da Directiva, reforçando que vários actos discriminatórios, mesmo que por si só não constituam perseguição, quando tomados em consideração de forma cumulativa, podem justificar o receio fundado de

155 Cfr. Francesco MAIANI – “The concept of «persecution» in refugee law: indeterminacy,

context-sensitivity, and the quest for a principled approach”, in Les Dossiers du Grihl, Les Dossiers de Jean-Pierre Cavaillé, de la persecution, 28.02.2010, disponível em www.dossiersgrihl.revues.org/3896

[18.04.2013], § 9, 13 e 16.

156 Cfr. Francesco MAIANI – “The concept of «persecution» in refugee law: indeterminacy,

context-sensitivity, and the quest for a principled approach”, in Les Dossiers du Grihl, Les Dossiers de Jean-Pierre Cavaillé, de la persecution, 28.02.2010, disponível em www.dossiersgrihl.revues.org/3896

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perseguição, dada a severidade que adquirem juntos, especialmente se impedem a pessoa de gozar direitos fundamentais, trazendo-lhe um sentimento de insegurança e obrigando-a a fugir. O critério-chave passa, assim, pela avaliação da situação da pessoa no seu país de origem, de modo a determinar se o seu dia-a-dia se tornou insustentável e se a pessoa tem de procurar refúgio157.

O ACNUR sublinha que qualquer violação de um direito absoluto (ou seja, aqueles direitos que não podem ser restringidos por motivos de segurança, ordem ou saúde públicas, nem podem ser derrogados em casos em que é decretado o estado de emergência) pode ser vista como um acto de perseguição. As violações de direitos fundamentais não absolutos também poderão ser considerados perseguição, se forem suficientemente graves, pela sua natureza ou repetição158.

Contrariando a opinião do ACNUR, C. W. Wouters critica a Directiva pela distinção que esta faz entre direitos derrogáveis e não derrogáveis, com base na CEDH. Isto porque o artigo 9.º da Directiva de Qualificação foi projectado para interpretar o termo “perseguição” tal como ele é referido na Convenção de Genebra. Concordamos com o autor quando defende que a Directiva não deveria fazer referência a um texto regional (a CEDH), deveria sim remeter para o Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, de 1966. Wouters tem ainda um outro argumento de peso, pois a lista de direitos não derrogáveis, presente no Pacto Internacional, é mais abrangente do que a da

157 Cfr. ACNUR – UNHCR annotated comments on the EC Council Directive 2004/83/EC of 29 April 2004 on minimum standards for the qualification and status of third country nationals or stateless persons as refugees or as persons who otherwise need international protection and the content of the protection granted (OJ L 304/12 of 30.9.2004), 28.01.2005, disponível em

www.refworld.org/docid/4200d8354.html [18.04.2013], p. 20. Na mesma esteira, C. W. WOUTERS –

International legal standards for the protection from refoulement: a legal analysis of the prohibitions on refoulement contained in the Refugee Convention, the European Convention on Human Rights, the International Covenant on Civil and Political Rights and the Convention against Torture, Antuérpia, Intersentia, 2009, p. 60.

158 Cfr. ACNUR – UNHCR statement on religious persecution and the interpretation of article 9(1) of the EU Qualification Directive, 17.06.2011, disponível em

www.refworld.org/docid/4dfb7a082.html [18.04.2013], p. 8. Na mesma esteira, C. W. WOUTERS –

International legal standards for the protection from refoulement: a legal analysis of the prohibitions on refoulement contained in the Refugee Convention, the European Convention on Human Rights, the International Covenant on Civil and Political Rights and the Convention against Torture, Antuérpia, Intersentia, 2009, p. 60.

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CEDH. Por exemplo, um direito importante para o tema deste trabalho – o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião (artigo 18.º do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, e artigo 9.º da CEDH) – é derrogável sob a CEDH, mas não sob o Pacto159.

Apoiando-se no Direito internacional penal, embora admitindo que o escopo do termo “perseguição” seja diferente, Andreia Sofia Pinto Oliveira enumera os elementos necessários que devem estar presentes, cumulativamente, para que exista perseguição: privação de direitos fundamentais, intencionalidade, gravidade e discriminação160.

Primeiro, é necessário comprovar-se que o requerente sofreu uma privação de direitos fundamentais. E surge logo aqui um problema, que catálogo de direitos é relevante nesta situação? Na opinião de Andreia Sofia Pinto Oliveira, os direitos a ter aqui em conta serão os inscritos nas Constituições nacionais161. Isto porque o direito de asilo é uma forma de protecção de um bem jurídico considerado fundamental por cada ordem jurídica. Não concordamos neste ponto com Andreia Oliveira. A evolução histórica da protecção da dignidade humana de pessoas perseguidas pelos seus próprios Estados mostra-nos que este é um valor universal, devendo procurar-se definições e procedimentos globais, por forma a que os padrões de protecção não sejam demasiado díspares, consoante a parte do mundo onde um refugiado procura asilo. Concordamos com a autora quando nos diz que não é necessária uma privação absoluta do direito fundamental para que exista perseguição, no entanto, mesmo que relativa, essa privação terá de ser grave.

Quanto ao elemento intencionalidade, a prática do acto de perseguição é voluntária, pressupõe que o agente tem consciência dos efeitos que as suas acções produzem na pessoa afectada. Pode dizer-se que toda a perseguição é intencional. No entanto, devemos abordar este requisito com prudência. Como nos diz Andreia Sofia

159 Cfr. C. W. WOUTERS – International legal standards for the protection from refoulement: a legal analysis of the prohibitions on refoulement contained in the Refugee Convention, the European Convention on Human Rights, the International Covenant on Civil and Political Rights and the Convention against Torture, Antuérpia, Intersentia, 2009, p. 61.

160 Cfr. Andreia Sofia Pinto OLIVEIRA – O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa: Âmbito de protecção de um direito fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 265-299.

161 A autora fala aqui, especificamente, da Constituição da República Portuguesa. Cfr. Andreia

Sofia Pinto OLIVEIRA – O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa: Âmbito de protecção de um direito fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 275.

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Pinto Oliveira, não devemos “entender apenas relevante a perseguição quando haja intenção de produzir danos concretos previamente definidos e previstos na esfera jurídica de uma pessoa concreta”162. Por isto mesmo é que não cabem na definição de refugiado vítimas de catástrofes naturais.

A privação intencional de direitos humanos tem de ser grave, para que se possa falar em perseguição. A aplicação desde requisito é especialmente difícil. Em termos gerais, podemos falar da importância que o bem jurídico em causa terá. Andreia Sofia Pinto Oliveira propõe a utilização de vários critérios para se aferir a gravidade daquela privação: a gravidade dos bens atingidos, a gravidade das medidas e a gravidade dos motivos. Quanto à gravidade dos bens atingidos, poderá existir uma hierarquia de direitos humanos? Seguindo jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, Andreia Sofia Pinto Oliveira diz-nos que esta avaliação deve ser feita utilizando o princípio da inviolabilidade da dignidade humana. Assim, se a vida, a liberdade ou a integridade física são ameaçadas, a perseguição pode ser considerada grave. Se estes bens jurídicos não estão em risco, a gravidade da perseguição será avaliada através da intensidade com que a dignidade humana é afectada. Quanto à gravidade das medidas, devemos falar particularmente das que consistem em sanções penais163. Estas só serão consideradas perseguição se, por um lado, no Estado de acolhimento não se considerar crime o acto que o requerente cometeu ou, por outro, se, embora seja considerado crime, a medida sancionatória é desproporcionada face ao ilícito cometido164. Quanto à gravidade dos motivos que conduzem à privação de direitos fundamentais, pode considerar-se uma

162 Cfr. Andreia Sofia Pinto OLIVEIRA – O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa: Âmbito de protecção de um direito fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 280.

163 V. Nicholas BLAKE, e Raza HUSAIN – Immigration, asylum and human rights, colecção

Blackstone’s human rights, Oxford University Press, 2003, pp. 76-77.

164 V. C. W. WOUTERS – International legal standards for the protection from refoulement: a legal analysis of the prohibitions on refoulement contained in the Refugee Convention, the European Convention on Human Rights, the International Covenant on Civil and Political Rights and the Convention against Torture, Antuérpia, Intersentia, 2009, pp. 68-71; ACNUR – Interpreting Article 1 of the 1951 Convention Relating to the Status of Refugees, Abril de 2001, disponível em

http://www.refworld.org/cgi-bin/texis/vtx/rwmain?docid=3b20a3914 [16.01.2014], pp. 5-6. A Directiva

2004/83/CE do Conselho dissipa qualquer dúvida, incluindo vários exemplos que cabem nesta definição no seu artigo 9.º, n.º 2, nomeadamente as suas alíneas b), c) e d).

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perseguição grave quando aqueles, nas palavras de Andreia Sofia Pinto Oliveira, “repugnam vivamente à consciência jurídica da comunidade de acolhimento”165

.

Por fim, a privação de direitos fundamentais deve ser discriminatória, embora nem todo o tipo de discriminação constitua perseguição. Discriminação significa, correntemente, que uma pessoa é impedida de gozar de determinado direito ou liberdade. Mas pode também estar presente em casos em que a pessoa é vítima de uma acção repressiva. Há discriminação quando a pessoa é vítima, pelo simples facto de possuir certa característica, justificação não plausível perante os direitos fundamentais aceites em uma comunidade específica. Esta definição não abrange vítimas de catástrofes naturais nem de conflitos armados166. Será isto justo, uma vez que existem pessoas privadas de direitos fundamentais graves, embora de carácter não discriminatório? Concordamos com Andreia Sofia Pinto Oliveira quando argumenta que, apesar de essas pessoas merecerem tanta protecção quanto os refugiados, para estas situações específicas, outros mecanismos internacionais devem ser criados167.

Concordamos com o ACNUR quando observa que, tendo em conta o artigo 4.º, n.º 3, alínea c), da Directiva 2004/83/CE, ao avaliar se certa medida restritiva constitui um acto de perseguição, as autoridades competentes devem ter em conta as circunstâncias individuais daquele caso, pois o mesmo acto pode afectar de forma

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Cfr. Andreia Sofia Pinto OLIVEIRA – O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa: Âmbito de protecção de um direito fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 294. A autora dá- nos o exemplo da obrigatoriedade da utilização, na Alemanha nazi, da estrela de David pelos Judeus, na sua roupa. Estava em causa o direito à imagem. Podendo argumentar-se que, se o sinal distintivo for de reduzida dimensão, a violação do direito não deve ser considerada grave, o motivo da obrigatoriedade do seu uso provoca nas comunidades de Estados de Direito democráticos uma repulsa tal, que justifica a gravidade da violação do direito fundamental.

166 Excepto em casos em que a guerra tem como principal objectivo uma limpeza étnica ou

religiosa.

167 Cfr. Andreia Sofia Pinto OLIVEIRA – O Direito de Asilo na Constituição Portuguesa: Âmbito de protecção de um direito fundamental, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 298-299. V. também ACNUR – Interpreting Article 1 of the 1951 Convention Relating to the Status of Refugees, Abril de 2001, disponível em http://www.refworld.org/cgi-bin/texis/vtx/rwmain?docid=3b20a3914

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diferente diversas pessoas, consoante o seu perfil, crenças e vulnerabilidade168. Essas restrições devem ser proporcionais, não podendo ser impostas com razões discriminatórias.

Pode concluir-se que, quanto mais importante for o direito humano atingido, menos gravosa tem de ser a medida que o afecta, para que a perseguição seja considerada grave. Um acto de perseguição pode revestir muitas formas, seria impossível tentar enumerar todas as formas possíveis de perseguição. Cada caso deve ser avaliado de forma individual, pois saber se determinado acto pode ser considerado perseguição depende, em grande medida, dos factos de cada caso e das suas circunstâncias específicas.

168 Cfr. ACNUR – UNHCR statement on religious persecution and the interpretation of article 9(1) of the EU Qualification Directive, 17.06.2011, disponível em

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