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2.1 – A definição dos parâmetros da colecção de arte colonial

Parte I – O património artístico móvel do Patriarcado de Lisboa

Capítulo 2 – A colecção de arte colonial do Patriarcado de Lisboa

I. 2.1 – A definição dos parâmetros da colecção de arte colonial

No livro de 1994 The Cultures of Collecting John Elsner e Roger Cardinal começaram a Introdução escrevendo que Noé foi o primeiro colecionador108.

Nas narrativas de autores culturalmente judaico-cristãos, é sempre erudito e elegante começar um texto por uma referência ao Velho Testamento. Todavia, a intenção dos autores era tudo menos bíblica: a primeira frase do livro remetia também para o octavô do dono da arca, Adão, que tendo dado nomes aos animais aludia imediatamente para o âmago do acto de coleccionar, ou seja, classificar109. Mas, então, o que entendemos por classificação?

Classificar, como será abordado neste texto, tem dois níveis de entendimento. Um primeiro, discursivo e antropológico, em que classificar é antes de tudo nomear, podendo ter como consequência o desenvolvimento e uso da escrita e desta forma intervir na organização das sociedades em termos de cognição e de poder110. Num segundo nível, que decorre obviamente deste primeiro, em que a classificação “é o espelho dos pensamentos e percepções colectivas da Humanidade” abrindo por isso caminho à ideia da formação de colecções como sendo a “materialização” (material embodiment) desses. Por conseguinte, são igualmente formas de classificação o ciclo de colheitas, a colecta de impostos, a contagem de almas para enunciar a importância de

      

108 Elsner, John e Cardinal, Roger (ed.) – The Cultures of Collecting. 2.ª ed. London: Reaktion Books,

1997. A mera tentativa de tradução do título revela-se um autêntico programa. Com efeito, a tradução mais directa seria “As culturas do coleccionismo” mas enquanto em inglês “collecting” exprime uma acção (trata-se do presente participle do verbo collect) em português acrescenta-se ao substantivo feminino “colecção” o sufixo “ismo” (que implica a noção de formação de doutrina, teorias, sistemas, princípios), transformando profundamente a palavra em bem mais sentidos que meramente o do género. Para uma proposta muitíssimo estimulante de entendimento do museu como local de utopia ver Kirshenblatt-Gimblett, Barbara – “The Museum – A Refuge for Utopian Thought”, [2004] (consultado em 2013.04.02: http://www.nyu.edu/classes/bkg/web/museutopia.pdf).

109 “Classification precedes collection”. E para as implicações éticas que tal acto tem: “In Noah, the act of

collecting up that which had been created and was doomed became inseparable from the creation of a new and better world. In the myth of Noah as ur-collector resonate all the themes of collecting itself: desire and nostalgia, saving and loss, the urge to erect a permanent and complete system against the destructiveness of time”, Elsner, John e Cardinal, Roger (ed.) – The Cultures of Collecting, p. 1.

110 Sobre este assunto ver Foucault, Michel – As palavras e as coisas e L’archéologie du savoir, e Jack

uma religião, o gosto por determinado artefacto em detrimento de outro, a taxinomia, etc.111

As razões que dirigem a diferenciação entre a classificação de carácter colectivo que reflecte o social (contendo e regulando) e a classificação que exprime a singularidade112 – a colecção na esfera que interessa à museologia – são o tópico deste capítulo. Ou seja, ao longo deste ensaio procurarei exprimir em que sentido a minha proposta de organização de uma colecção pode (deve) encontrar fundamentação teórica quer na história do coleccionismo quer na bibliografia crítica sobre o mesmo.

Naquele último sentido atrás mencionado, o acto de coleccionar compreende-se consequentemente como uma procura de individualidade (do próprio ou de um grupo), de destrinça.

De acordo com Jean Baudrillard (1929-2007) e a sua teoria dos sistemas (que parte dos objectos do quotidiano para análise da realidade), o que caracteriza o objecto sistémico é a posse; e a posse tem menos a ver com valores monetários que com a desfuncionalização, conferindo ao objecto a aptidão de amado (l’objet aimé). Em suma, no ensaio de Baudrillard, o objecto que mantém a sua função (utensílio) não pode ser alvo de passion (isto é, de colecção) porque o primeiro me renvoie au monde ao passo que o segundo se formula quando e enquanto relativo ao sujeito (relatif au sujet)113.

Esta divisão é facilmente contestável hoje em dia porque nada impede alguém de coleccionar objectos que continuam a ser utilizados numa determinada função (p. e., cachimbos) e que reflectem o ser de cada um (gostar de tabaco). Mas a simplificação não destrói o argumento de que – no sentido em que todos os artefactos possuídos estão

      

111 “And if classification is the mirror of collective humanity’s thoughts and perceptions, then collecting is

its material embodiment. Collecting is classification lived, experienced in three dimensions. The history of collecting is thus the narrative of how human beings have strived to accommodate, to appropriate and to extend the taxonomies and systems of knowledge they have inherited.”, Elsner, John e Cardinal, Roger (ed.) – The Cultures of Collecting, p. 2 (tradução minha).

112 Colectivo entendido aqui, portanto, no sentido tradicional, marxista, que as ciências modernas deram à

palavra; isto é, “colectivo” como dimensão da realidade que se opõe a uma dimensão individual.

113 “Le système marginal: La collection” in, Baudrillard, Jean – Le système des objets. 2.ª ed. Paris:

Gallimard, 1978, pp. 120-1.

Quero esclarecer desde já qualquer equívoco que as minhas palavras pudessem deixar subjacente quanto à presumível subalternização do objecto de uso em relação ao objecto artístico (uma vez que é nesta esfera que se coloca esta tese e colecção). A estetização dos objectos passa hoje em dia por propostas e entendimentos muito mais complexos que o da mera valorização artística dos mesmos.

submetidos a uma mesma abstracção – os objectos se constituem como um sistema com base na qual o sujeito procura reunir o seu mundo, o seu microcosmo pessoal114.

Ainda que o texto já quase cinquentenário de Baudrillard possa suscitar hoje em dia algumas questões (todos os exemplos são do universo masculino; o texto é escrito no género masculino; de alguma forma reflecte os comportamentos das elites económicas e sociais; concentra-se demasiado na ideia de individualidade do indivíduo), mantém a sua operacionalidade no âmbito desta tese em que se autonomiza uma colecção específica de um acervo patrimonial pré-existente, através de uma sistematização definida pelos critérios que enquadram o entendimento de uma arte produzida em contexto ultramarino nos séculos XVI e XVII. Ou seja, em última análise, o facto de a proposta desta tese reflectir o meu microcosmo pessoal relacionado com a minha área de trabalho, encontrava (pelo menos) aqui, fundamento teórico.

Nos últimos anos tenho-me dedicado (num grupo de trabalho alargado115) à análise, ao estudo e à caracterização de uma série de artefactos e fenómenos que se podem designar por arte colonial portuguesa e, decorrente desta realidade, pretendo contribuir para a resposta à pergunta: em que medida é que podemos pensar e estruturar uma colecção de arte colonial no contexto museológico português?

O discurso sobre o indo-português tem dominado a apresentação museológica e expositiva sobre a (mais abrangente) arte colonial portuguesa. Esta constação manifesta- se através de uma certa perpetuação das narrativas sobre os artefactos e os percursos expositivos, e é, por isso, causa e efeito de uma certa cristalização na maneira de expor as colecções museológicas. Apesar de tudo, as exposições temporárias têm contrariado esta realidade que é, também, resultado do peso da história das próprias instituições. Assim, se por um lado, há que ter em conta a maneira como se processou a reunião e incorporação das peças (que ainda domina a forma como os museus abordam o estudo e exposição das colecções), por outro, há que ter em consideração o estabelecimento de conexões dos museus com as sociedades em que se inserem, bem como a reelaboração das relações de Portugal com outras geografias culturais e artísticas, particularmente,

      

114 Impey, Oliver e MacGregor, Arthur – “Editorial”. The Journal of the History of Collections. Vol. 1.

N.º 1, 1989, p. 1.

115 Concretamente, o grupo de investigação “As Artes e a Expansão Portuguesa”, coordenado por Nuno

Senos no Centro de História de Além-Mar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (http://cham.fcsh.unl.pt/li_apresenta.aspx?linha=3).

aquelas que em tempos diversos pertenceram ou estiveram em contacto com os espaços do Império.

Pareceu-me mais operativo e eficaz criar um núcleo específico que servisse um conceito, invés de partir da(s) colecção(ões) museológica(s) existente(s) e fazer-lhes uma crítica com base nos parâmetros definidos para o entendimento da arte colonial portuguesa116. Isto não invalida a importância e a necessidade de conhecer a colecção seminal: a do MNAA, razão pela qual recorri a uma análise crítica quer da história da exposição do indo-português quer da sua historiografia (tópicos que serão analisados na parte II da tese).

Por conseguinte, fica desde já claro que a colecção de arte colonial do Patriarcado de Lisboa não existe enquanto colecção museológica, ainda que os dipositivos que utilizarei para a reunir e abordar, e em última análise, construir a narrativa dando resposta à pergunta que atrás coloquei, sejam do domínio dos museus.

E, neste sentido, a extrema individualidade (e as reservas teóricas que a mesma poderia suscitar) da minha proposta estará ultrapassada. Retomando as propostas do texto de Jean Baudrillard, parece-me que a que procura a individualidade apenas no indivíduo se poderá constutir como limitação, já que a individualidade de alguém/alguns se pode encontrar, também, no grupo. Assim, esta tese procura responder a uma pergunta de grupo – sintetizada pelas minhas preocupações – mas que, de alguma forma, vai ao encontro de algumas inquietações expressas na academia e na museologia nacionais. O que define afinal esta (uma) colecção?

      

116 A colecção de referência seria obviamente a do Museu Nacional de Arte Antiga (seja pela qualidade,

quantidade ou representatividade das peças expostas; daqui em diante MNAA). Em abono do meu argumento e opção, diga-se que esta “colecção” se encontra exposta numa zona que era genericamente designada por “Sala Oriental”, e que mantém o mesmo espaço, a mesma comunicação (mapas, textos, legendas, etc.) e, grosso modo, as mesmas peças e disposição desde 1983 – após a realização da XVII Exposição de Arte, Ciência e Cultura do Conselho da Europa (daqui em diante XVII.ª) para a qual o espaço foi criado – e que, precisamente por constrangimentos históricos, os objectos que se encontram ali reunidos são provenientes das diferentes colecções tipológicas (escultura, ourivesaria, mobiliário, etc.) que formaram o núcleo inicial do museu de Belas-Artes. Ou seja, na prática, também no museu de referência eu teria que criar uma colecção.

Ainda sobre este assunto, e para evitar equívocos quanto à expressão “Sala Oriental”, registe-se que sendo as salas do museu identificadas por números, é assim que estas são reconhecidas. Com efeito, acresce que no sítio do MNAA na internet se escreve que na exposição permanente no piso 2, se mostram “… Artes Orientais (integram as produções afro-portuguesa, indo-portuguesa, sino-portuguesa e a arte Namban)” (http://www.museudearteantiga.pt/pt-PT/exposicao%20permanente/HighlightList.aspx; consultado em 2012.12.18). A planta, também online, reproduz esta informação. Todavia (e a partir de data que não consegui apurar) não é esta a mensagem que consta nas plantas distribuídas à entrada do museu: a “Sala Oriental” da vox populi, as “Artes Orientais” do sítio e da planta online, são, nos desdobráveis com planta distribuídos à porta, “Arte da Expansão”.

Como até agora vimos, a classificação está subjacente à própria ideia de funcionamento organizacional do ser humano. E, assim sendo, o que transforma (distingue) os vários níveis de classificação numa colecção serão as suas características geradoras. Ora colecionar, e particularmente em contexto museológico, é acumular, classificar e arranjar/mostrar117. Assim, em que sentido posso propor para estudo uma colecção que não reúne os objectos num único sítio nem os mostra?