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1.3 – A história do inventário do Patriarcado de Lisboa

Parte I – O património artístico móvel do Patriarcado de Lisboa

I. 1.3 – A história do inventário do Patriarcado de Lisboa

Na realidade e no que diz respeito à história do Patriarcado de Lisboa, as grandes alterações a que o século XX assistiu derivaram mais da necessidade de auto-reflexão e actualização da Igreja face às profundíssimas mudanças sociais e culturais coevas – e que tiveram obviamente reflexo nas constituições diocesanas –, que a reorganizações geográficas ou pastorais.

Foi neste cenário de mudança, pós-Concílio Vaticano II, que a arte (depois da música) surgiu como tópico de ponderação no estabelecimento de relações entre a Igreja e o mundo. Em Portugal, diga-se, com alguma precocidade, designadamente nos trabalhos levados a cabo pelo ramo nacional do Movimento Litúrgico (como atestam os artigos publicados por Monsenhor José Manuel Pereira dos Reis [1879-1960] em 1915 e       

96 Tema a precisar de urgente estudo e reflexão. Para um desenvolvimento deste assunto ver José Carlos

Francisco Pereira – “O Movimento de Renovação da Arte Religiosa e o papel artístico e pastoral do seu

Boletim”. Lusitânia Sacra. 2.ª s. N.º 12, 2000, pp. 431-8.

97 Manuel Clemente, “Lisboa, Diocese e patriarcado de” in, Azevedo, Carlos A. Moreira (dir.) –

Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. 3, p. 109. Sobre a nova divisão paroquial de 1959 ver

Cerejeira, D. Manuel Gonçalves – O grave problema das igrejas do Patriarcado de Lisboa.

98 Ver Pinto, Carla Alferes – “O Inventário Artístico do Patriarcado de Lisboa: história e análise de uma

1931 ou a criação e propostas do MRAR99) e na sensibilidade que muitos dos seus membros revelavam para a necessidade de estudar e preservar o património artístico. Como resultado, em 2 de Abril de 1963 (oito meses antes da aprovação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia, durante os trabalhos do Concílio Vaticano II, no dia 4 de Dezembro) o cardeal patriarca D. Manuel Cerejeira criava a Comissão de Arte Sacra do Patriarcado de Lisboa (daqui em diante CAS), presidida por D. João de Castro (1908- 2000)100.

No decreto cardinalício ficava bem vincado que os “grandes valores em móveis e imóveis que importa[va] inventariar, conservar e valorizar” haviam levado à criação do novo organismo e que se reconhecia que “para mais eficiente cumprimento das disposições canónicas, (…) se torna[va] necessário constituir um corpo de consultores competentes a quem possamos pedir pareceres, informações e certos serviços em matéria de Arte Sacra”101. O Inventário Artístico do Patriarcado de Lisboa tornava-se assim o primeiro instrumento da actividade da CAS lisboeta.

Na pasta número 78 do Inventário – ainda hoje, e desde o início, disposto em dossiers por igreja, que contêm as fichas de peça normalmente ordenadas por colecções tipológicas (pintura, escultura, ourivesaria, mobiliário, etc.) – encontra-se a pasta dedicada à igreja de Santo Adrião em Loures, a primeira referência (coeva aliás) que nos permite averiguar os acontecimentos em torno da criação e execução do inventário do Patriarcado de Lisboa.

Numa folha que inaugura o dossier, dactilografada, encontra-se o seguinte texto: “O Inventário desta Igreja de Póvoa de Santo Adrião, foi feito em 1964 pelo Dr. Carlos de Azevedo, e serviu de ensaio para o trabalho que depois se viria a estender a todo o Patriarcado. Depois de feito este Inventário, o templo passou por várias vicissitudes, como sejam as grandes inundações de Novembro de 1967, vários assaltos de ladrões, etc. O inventário primeiramente pensado apenas para peças móveis, tem sido com a       

99 Os artigos a que me refiro são: “Restauração litúrgica”, 1915 (reeditado na revista Novellae Olivarum

em 1950) e “A liturgia e a arte” (revista Opus Dei. Braga, 1931-2, pp. 244-7). Para mais informações sobre a vida e acção de Monsenhor Pereira dos Reis ver, Joaquim Augusto Nunes Ganhão – O movimento

litúrgico em Portugal. O contributo de Monsenhor Pereira dos Reis. Moscavide: Seminário Maior de

Cristo-Rei, 2006.

100 Sobre os episódios que levaram à criação da CAS ver, Pinto, Carla Alferes – “À volta de três

personagens e um inventário: a história do Inventário Artístico do Patriarcado de Lisboa”. Lusitânia

Sacra. 2.ª série. Tomo XXIV, Julho-Dezembro 2011, pp. 213-34 [228-34].

101 Espólio Carlos de Azevedo, Pasta Comissão de Arte Sacra (documentação não tratada

arquivisticamente), [Lisboa, 1963, 2 de Abril]. Ver anexo Documentação, n.º I.1 e, também, Pinto, Carla Alferes – “À volta de três personagens e um inventário”, p. 232.

experiência alargado a pormenores de interêsse – atendendo a futuras obras nas igrejas e capelas – como sejam elementos arquitectónicos, inscrições lapidares, pias, etc. Por todas estas razões, se fez uma revisão do inventário de 1964, passando os dois trabalhos a figurar juntamente no presente processo”102. Ou seja, um ano depois da assinatura do documento que criara a Comissão de Arte Sacra, o inventário já estava em andamento.

Pensado e organizado por Carlos de Azevedo (1918-1955), teve o inequívoco apoio de D. João de Castro dentro da cúpula da Igreja, e a maior parte da empenhadíssima execução levada a cabo por José Bénard Guedes Salgado (1931- 2012)103.

O andamento do Inventário Artístico do Patriarcado de Lisboa levou décadas e, apesar de nunca concluído e posteriormente sub-avaliado, foi uma acção da maior importância104. Desde logo, porque foi de facto o primeiro inventário levado a cabo pela Igreja. Este inventário – executado através de uma ferramenta museológica105 – foi feito sobre um património disperso, a uso e de múltipla definição (móvel e imóvel, para colocar a caracterização em termos sumários e simples). E, se por um lado, revelava (como já vimos) as preocupações patrimoniais que lhe estavam subjacentes (recolocando-se a Igreja no centro da discussão em torno da salvaguarda e valorização do património português), a faceta em que foi mais precursor prende-se com a génese desta tese.

Ao pensar, criar e executar um inventário, o Patriarcado de Lisboa abriu o caminho para a constituição de colecções – que como já escrevi o próprio arranjo dos dossiers espelhava, conferindo um carácter seminal às percepções e organização posteriores que nos proponhamos ter sobre o seu património.

      

102 Arquivo Histórico do Patriarcado, Mosteiro de S. Vicente de Fora, Lisboa (daqui em diante AHP),

Loures: Igreja de Santo Adrião, n.º 78.

103 Sobre as biografias dos três intervenientes ver Pinto, Carla Alferes – “À volta de três personagens e

um inventário”; sobre o inventário enquanto ferramenta ver Pinto, Carla Alferes – “O Inventário Artístico do Patriarcado de Lisboa”, pp. 141-74.

104 Fundação Calouste Gulbenkian – Biblioteca de Arte, Lisboa (doravante FCG – BA), Arquivo do

Serviço de Belas-Artes, Comissão de Arte Sacra, n.º 1904, várias cartas de D. João de Castro para os serviços da Fundação, Lisboa, entre 12 Julho de 1968 e 28 de Janeiro de 1974, onde está transcrito a enumeração das igrejas e localidades do inventário executado por José Bénard Guedes ao longo da década de 60 e 70 do século XX, dando-nos assim uma ideia da dimensão, morosidade e complexidade desta tarefa (anexo Documentação, ns. I.9 a I.17).

105 Veja-se a este propósito como a opção museológica acabou por vingar aquando das alterações

verificadas entre a concepção da primeira ficha de inventário (a data mais recuada que tenho é de Junho de 1964) e as fichas começadas por José Bénard Guedes em 1966, in idem, pp. 147-8. Ver ainda FCG – BA, Arquivo do Serviço de Belas-Artes, Comissão de Arte Sacra, n.º 1904: Ficha informativa

exemplificada, Lisboa, 1963, 26 de Junho, e Arquivo do Serviço de Belas-Artes, Comissão de Arte Sacra,

O Inventário Artístico do Patriarcado de Lisboa é, a um tempo, um pré-conceito – uma vez que instrumentalizou a criação de colecções sem que as mesmas tivessem sido previamente conceptualizadas – e uma fonte documental e analítica da(s) colecção(ões) possíveis dentro do acervo patrimonial da diocese de Lisboa.

A imensa riqueza desta ferramenta na sua vertente orgânica e analítica são igualmente tópicos de análise nos dois capítulos que se seguem.