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Parte I – O património artístico móvel do Patriarcado de Lisboa

Capítulo 3 – A historiografia da colecção de arte colonial do Patriarcado de Lisboa

I. 3.1.1 – As exposições oitocentistas

Assim, se há todo um registo de crónicas e textos ancestrais que podem (devem) ser tidos em conta para estabelecer uma genealogia das peças, contudo, o instrumento que mais faz recuar a referenciação a colecções de arte do Patriarcado de Lisboa é, sem dúvida, o Catalogue of the Special Loan Exhibition of Spanish and Portuguese Ornamental Art South Kensington Museum, organizado por John Charles Robinson (1824-1913) em 1881. Com efeito, a diocese de Lisboa, fosse através do cardeal patriarca, D. Inácio do Nascimento Morais Cardoso (1811-1883; patriarca entre 1871- 83), fosse através das suas casas, foi uma das grandes contribuidoras portuguesas para a exposição londrina de final do século XIX.

Logo no n.º 98 do catálogo, lê-se: “Cup in horn, mounted in delicate gold filigree, jeweled with rubies. Indo-Portuguese. 18th century” His Eminence the Cardinal Patriarch of Lisbon”130 (uma peça que seria certamente excepcional; infelizmente desaparecida ou, pelo menos, não localizável). Uma descrição suficientemente pormenorizada (e caracterizada) para poder ser incluída no rol de peças de arte colonial; todavia, nem sempre é este o caso e, face à ausência de imagens, as linhas dedicadas a algumas peças mantêm-nas num limbo que não me permite considerá-las quer para esta resenha quer para o inventário131. E esta é uma das principais condicionantes na análise dos catálogos que não apresentam ainda critérios museológicos na menção e/ou       

130 Robinson, J. C. (ed.) – Catalogue of the Special Loan Exhibition of Spanish and Portuguese

Ornamental Art South Kensington Museum. London: Chapman & Hall, 1881, pp. 56 ss [56]. Este

catálogo, o seu autor e a importância para a construção do conceito de indo-português serão alvo de atenção mais demorada na parte II, cap. 1 desta tese.

131 Veja-se, a título de exemplo, a descrição sob o n.º 173 da sala M: “Cofre de filigrana de oiro, com

fechadura esmaltada. Comprimento 0m,19. Seculo XVI. Igreja da Graça, Lisboa”, Catalogo Illustrado da

Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola celebrada em Lisboa em 1882 sob a protecção de Sua Magestade El-Rei O Senhor D. Luiz I e a presidencia de Sua Magestade El-Rei O Senhor D. Fernando. Texto. Lisboa: Imprensa Nacional, 1882, p. 22, que não me permite com segurança

afirmar tratar-se de um cofre indo-português e que, entretanto, desapareceu do acervo da igreja.

Neste sentido, igualmente o volume dedicado às estampas contribui para a dificuldade na identificação das peças, uma vez que os traços seguem uma preocupação mais ilustrativa que analítica não autorizando grandes conclusões classificativas; a título de exemplo, veja-se a estampa com o n.º 141 “Medalhão de um panno de pulpito bordado a oiro e matiz – A – 17” (Catalogo Illustrado da Exposição Retrospectiva

de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola celebrada em Lisboa em 1882 sob a protecção de Sua Magestade El-Rei O Senhor D. Luiz I e a presidencia de Sua Magestade El-Rei O Senhor D. Fernando. Estampas. Lisboa: Imprensa Nacional, 1882), que corresponde no catálogo de texto à seguinte entrada:

“Panno de pulpito de setim carmezim, profusa e elegantemente bordado a torçal de côres de oiro, tendo ao centro um medalhão com o rapto de Ganymedes, rodeado por um circulo de animaes fantásticos. Fig. 141. Fins do seculo XVI. Mosteiro de Lorvão” (Catalogo Illustrado da Exposição Retrospectiva de Arte

Ornamental Portugueza e Hespanhola […]. Texto, p. 76) , hoje pertencente ao Museu Nacional de

Machado de Castro, Coimbra (n.º inv. T 543) e que foi em classificado por Maria João Ferreira como sino-português. Ver Ferreira, Maria João – “Ganimedes e Fortuna. Exemplos de temáticas mitológicas clássicas em peças têxteis bordadas sinoportuguesas”. Oriente. N.º 12, Agosto 2005, 90-114.

descrição dos artefactos, repercutindo, por outro lado, as ambiguidades de uma classificação (ou seja, a de indo-português) baseada em categorias pouco reflectidas132.

Logo no ano seguinte, e conjugando a vontade já anteriormente expressa de que se realizasse em Portugal uma exposição de arte ornamental e na sequência da Special Loan londrina133, ocorreriam menções ao que aqui designamos por arte colonial e que se encontra na posse da diocese de Lisboa. Por exemplo, “260. Cofre de tartaruga com fechadura e ornatos de prata representando flores, ramos, aves e quadrupedes. Comprimento 0m, 22. Seculo XVI. Freguezia de S. Pedro de Almargem do Bispo”134. Uma peça que embora não fazendo parte da amostra por mim selecionada, foi inventariada por José Bénard Guedes em 1971 e que, precisamente por causa desse inventário, posso com segurança incluir na colecção de arte colonial135.

Também a taça em corno de rinoceronte elencada no catálogo da exibição londrina surgia neste outro, agora numerado sob 565 na sala O: “Vaso de unicornio com azas e ornatos moveis de filigrana de oiro, cravejada de pedras. Altura 0m,09. Mitra Patriarchal de Lisboa.”136

Como atrás referi, às debilidades analíticas inerentes à insuficiente caracterização das peças neste primeiros catálogos expositivos, aliavam-se os equívocos classificativos que a taça em corno de rinoceronte bem espelha. Com efeito, registe-se que a descrição neste catálogo omitia a menção à origem (mais do que duvidosa, contudo) indo-portuguesa (o que torna o trabalho de estabelecimento de uma genealogia das peças numa tarefa detectivesca e algo dependente da sorte) bem como a data atribuída por John Charles Robinson. E esta diferença, que poderia também (e poderia de facto?) expressar um maior cuidado na atribuição de origens e datas por parte da organização portuguesa, é afinal timbre, em termos gerais, de todo o volume. O texto é confuso, as entradas das peças não são todas semelhantes – mas, genericamente, apresentam um Bilhete de Identidade (daqui em diante BI) numerado sequencialmente por sala, com nomeação do objecto e/ou título, a técnica, alguma caracterização formal       

132 Veja-se, a título de exemplo, a descrição sob o n.º 387 da sala N: “Imagem de Nossa Senhora,

esculptura em dente de cavallo marinho. Serve-lhe de peanha um globo cercado pela serpente, sobre uma base de folhagens. Altura 0m,36. Obra indiana. Seculo XVII. Igreja de Trevões.”, Catalogo Illustrado da

Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola (…). Texto, p. 46.

133 Sobre este assunto ver ponto II.1.6.1.

134 Catalogo Illustrado da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola (…).

Texto, p. 32.

135 AHP, Sintra: Igreja paroquial de S. Pedro, n.º 15.

136 Catalogo Illustrado da Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental Portugueza e Hespanhola (…).

e, por vezes, dimensões e/ou datação, e, quase sempre, a proveniência (veja-se como excepção o n.º 567 da sala O na p. 61), ou seja, a menção de a quem (indivíduo ou instituição) pertencia o objecto – e não cumprem sempre os mesmos critérios. Evidente é, não obstante, que o discurso subjacente era o que se centrava na valorização da arte ornamental, seguindo os ditames críticos da época137, pelo que a preocupação com o indo-português surgia de forma dispersa e não poucas vezes baralhada com as expressões “obra indiana”, “porcelana da Índia”, etc.138. Por fim, as alfaias litúrgicas eram incluídas neste discurso, não havendo qualquer menção a arte sacra.

De todas as peças emprestadas pela Mitra Patriarchal de Lisboa ou por alguma das igrejas ou casas pertencentes à diocese da capital para a realização da exposição no Palácio Alvor em 1882, a única que foi possível identificar e confirmar como pertencente ainda ao Patriarcado é um sacrário de filigrana de prata da igreja paroquial de Santos-o-Velho que apresentava apenas uma descrição formal (peça que será tratada no ponto III.1.3.3 – Sacrário).

Seguiu-se um enorme hiato de mais de cinquenta anos. As razões são mais simples do que tal distância temporal poderia deixar transparecer. Em concreto, a situação política e patrimonial alterou-se e isto reflectiu-se no paradigma expositivo (por ténue que fosse) até então existente.

As décadas de 80 (Exposição Distrital de Aveiro, em 1882, e a exposição organizada na Biblioteca Eborense, em 1889) e 90 (Exposição de Arte Sacra Ornamental, em 1895) do século XIX ainda assistiram à realização de “grandes” exposições que seguiam o figurino instituído, mas a implantação da República logo no início da centúria ulterior condicionou iniciativas futuras. A questão não pode ser resumida à mera ideia de que a mudança de regime político justificou tudo. O problema é mais vasto e prende-se essencialmente com a alteração do paradigma de ensino e de entendimento do que era e quais as políticas a seguir na vertente patrimonial, que vinha a ser esboçado e sucessivamente concretizado desde a lei de 30 de Maio de 1834 que decretara a extinção das ordens religiosas139: a inventariação, a venda em hasta pública

      

137 Voltarei a estes assuntos (a classificação indo-portuguesa e a arte ornamental) mais demoradamente ao

longo da Parte II.

138 Este assunto será retomado no ponto II.1.6.1.

139 Sobre este assunto ver Costa, António Manuel Ribeiro Pereira da – Museologia da Arte Sacra em

Portugal (1820-2010). Espaços, Momentos, Museografia. Coimbra. Tese de doutoramento em

Museologia e Património Cultural apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2011, pp. 87-90, e Custódio, Jorge Manuel Raimundo – “Renascença” artística (…).

e a incorporação dos bens da Igreja nas colecções nacionais faziam parte desta alteração.

Assim a reconstrução das relações entre Estado e Igreja nos trinta anos que mediaram entre 1910 e a assinatura da Concordata (1940) e, particularmente, as possibilidades de a última partilhar o seu património em exposições de carácter público, terá sofrido um revés significativo alimentado pela comoção dos anos republicanos anti- clericais.

Outrossim, os museus nacionais (designadamente o MNAA) estavam a construir-se, a reunir e classificar as suas colecções, a formar equipas, e os seus/suas técnicos/as eram ainda chamados para dar pareceres e intervir em decisões patrimoniais que consumiam tempo, definiam estratégias museográficas e delineavam políticas patrimoniais e artísticas, investindo, portanto, na exposição dos seus espólios.