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4.2 – Um problema de significado Objecto: sacro; artístico; museológico

Parte I – O património artístico móvel do Patriarcado de Lisboa

Capítulo 4 – A questão da arte sacra

I. 4.2 – Um problema de significado Objecto: sacro; artístico; museológico

No dia 6 de Outubro de 2010, António Filipe Pimentel, na qualidade de director do MNAA, e aquando da assinatura do protocolo de colaboração entre o Instituto dos Museus e da Conservação e o Patriarcado de Lisboa, considerava que o património da Igreja era um “património-âncora de carácter parabólico”. Com efeito, é inegável que a Igreja tem sido uma das grandes patrocinadoras de arte em Portugal (avolumando por isso um considerável património) e, de modo semelhante, há que ter em conta a centralidade de circunstâncias como as ditadas em 1834 (nacionalização dos bens da Igreja) e 1910 (implantação da República e arrolamento dos bens da Igreja) para a formação dos museus nacionais. Essa feliz expressão recentra alguns dos tópicos analisados nesta tese: por um lado, a caracterização do acervo da Igreja como sendo de cariz patrimonial (ponto I.2), por outro, o seu carácter essencial e “parabólico”. E embora o historiador de arte não tenha concretizado o que entendia por esta expressão, faço minha a sua abordagem, interpretando nos dois movimentos simultâneos em direcções perpendiculares provocados pela parábola, a possibilidade dúplice do artefacto que se pode enunciar como artístico e sacro, museológico, etc. (não pretendo criar uma dicotomia ou antagonismo; esta aparente divisão resulta apenas da arrumação dos conceitos e do facto de a colecção que abordo ser reunida sob o primado da arte).

Subjacente a esta proposta estão certamente os ensaios elaborados por Michel Foucault sobre a importância da linguagem para o estabelecimento de significados a atribuir aos objectos e, consequentemente, para o conhecimento. Em suma, o objecto só existe em função de um sujeito (particular e/ou colectivo) que o observa, classifica e pensa223.

Pelo que atrás ficou escrito julgo resultar claro que no âmbito desta tese um objecto sacro é aquele ao qual foi conferido esse valor pelo uso na prática dos ritos e cultos católicos224. Assim, a sua capacidade de exibição depende exclusivamente da

      

223 “… l’objet n’attend pas dans les limbes l’ordre qui va le libérer et lui permettre de s’incarner dans une

visible et bavarde objectivité; il ne se préexiste pas à lui-même, retenu par quelque obstacle aux bords premiers de la lumière. Il existe sous les conditions positives d’un faisceau complexe de rapports.”, Foucault, Michel – L’archéologie du savoir, p. 61.

224 E que é também, escreva-se em abono da verdade, o entendimento da Igreja. É neste âmbito que se

inscreve a asserção de monsenhor Aníbal Ramos “Claramente se afirma que tomamos arte sacra no sentido específico de arte litúrgica e não no sentido genérico que lhe dá Van Lier.”, a propósito da classificação em cinco maneiras (na prática, com valor descendente) que Henri Van Lier propunha em 1959 (Ler arts de l’espace): “a) Arte sacra – é a que manifesta o absoluto. Neste sentido, toda a arte é sacra, desde um Giotto a um Rembrandt e a um Picasso.

vontade da própria Igreja – seja ao nível das paróquias ou dos organismos da própria instituição – que é detentora desse património e a quem compete a decisão de aceitar a descontextualização do mesmo225.

A dimensão espiritual dos artefactos (que não lhe é inata) convive muitas vezes com a dimensão estética (bem como com a histórica, antropológica, ou outras, conforme já abordei na Introdução desta tese), o que pode conferir aos objectos a qualificação de artísticos (faço aqui a ressalva sobre o eventual determinismo da ideia de que todos os objectos artísticos têm valor estético). Repare-se, igualmente, que não me estou a referir à noção de “obra de arte”, que foge ao âmbito desta tese por razões sistémicas mas também práticas, uma vez que as peças com que trabalho são maioritariamente produzidas em série e longe dos cânones de autoria e originalidade em que se conforma a noção de Belo na arte ocidental.

Mesmo que o tempo vá passando sobre as reflexões de Immanuel Kant (1724- 1804) que introduziram a subjectividade no julgamento estético, sobre o ready made de Marcel Duchamp (1887-1968) ou sobre a desmaterialização do objecto de arte levada a cabo por Lucy Lippard (1937), a noção de “obra de arte” continua a ter um peso significativo no discurso. Isto implica que, para a generalidade da população, a compreensão artística do objecto no mundo ocidental continue a repousar, a um tempo, no arquétipo de Belo e, a outro, assente no desempenho de uma noção de arte – no sentido da ars latina, da techne grega ou da Kunst alemã – ligada à perícia, ao domínio de um ofício226.

       b) Arte sacral – é a arte sacra, mas enquanto orientada para a transcendência, na qual ausculta primeiro o lado inquietante, sob a forma da magia das matérias e do mistério do mundo. Manifesta-se na arte românica, nas artes bárbaras em geral e no contemporâneo Rouault.

c) Arte religiosa – é a que existe quando a transcendência se intelectualiza, ou, em todo o caso, se interioriza, sem estar necessàriamente sujeita a um dogma ou a uma igreja. O autor aponta Greco como exemplo.

d) Arte confessional – é a que depende de uma «confissão» que produz não sòmente o mistério em geral, mas determinados mistérios. Fra Angélico seria um modelo de artista confessional.

e) Arte eclesial ou litúrgica – quando convém ao culto, edifica os fiéis e está de acordo com as exigências litúrgicas.”, dificilmente partilhável quando apreendida em outros ternos que não os da fé e que, no propósito de tanto escalpelizar e caracterizar, acaba por cair na extravagância. Ramos, Aníbal – Sentido

comunitário da arte sacra. Sep. revista Lumen, Junho 1960, p. 4.

225 Este património, ou seja, os Bens Culturais da Igreja, são um “Instrumento pastoral indispensável em

contexto eclesial”, Saldanha, Sandra Costa – “Editorial”, p. 5. Sobre este assunto ver, ainda, Conferência Episcopal Portuguesa – Princípios e orientações, particularmente, “II – Posse e administração das Bens Culturais da Igreja”, pp. 5-8 e “III – Utilização pastoral dos Bens Culturais da Igreja”, pp. 9-11.

226 Thomas Da Costa Kaufmann, “The Collections of the Austrian Habsburgs”, in Elsner, John e Cardinal,

Por conseguinte, e como já foi desenvolvido no cap. 2 desta parte da tese, para o entendimento de objecto artístico em ambiente museológico contribui, para além da valorização formal do artefacto (estética ou técnica), a interpretação das relações que esse objecto estabeleceu quer com a sua época quer com os outros objectos e com a sociedade (a cultura material227). Isto é, a história da constituição das colecções e dos próprios museus também se torna relevante para a formulação do juízo sobre os espécimes, pelo que, igualmente, a noção de objecto artístico não se consubstancia como universal e antes se enforma pelas circunstâncias históricas e culturais228. Concretizando, por exemplo, uma colcha bengali do século XVII que, apesar de ter relação formal com os bordados de Castelo Branco, é incorporada no acervo de um museu de arte, enquanto os segundos são remetidos para museus regionais e/ou etnográficos.

Assim, e tratando-se de uma tese que se posiciona a meio caminho entre as propostas da museologia e a história da arte do período moderno, o conceito mais operacional para tratar os objectos é o que os adjectiva de museológicos, o que não implica que o pronunciamento sobre os mesmos seja exclusivo. Como me parece ter ficado claro, os objectos são o que o discurso diz sobre eles, e neste sentido não há classificações únicas e restritas.

Por razões que se prendem com as especificidades já apontadas à colecção analisada nesta tese, importa, entretanto, clarificar que tenho bem consciência de que os objectos do meu trabalho, sendo de colecção, não são, contudo, museológicos, uma vez que na sua maioria não se encontram de facto num museu ou nas suas reservas. Permito-me, conquanto, insistir nas categorias do âmbito da museologia, quer pela argumentação apresentada no cap. 2 desta parte quer pelos objectivos subjacentes à realização desta tese, igualmente, sobejamente expostos na Introdução.

O que é então um objecto museológico?

Os objectos museológicos (e, neste sentido mais abrangente, também, os objectos que são alvo de colecção) são construções sociais (social constructs), conforme a definição proposta por Susan Pearce. Ou seja, são peças que resultam de uma discursividade – entendimento/classificação/interpretação – que procede da       

227 Tilley, Christopher – “Interpreting material culture”, [1991]. In Interpreting Objects and Collections.

Susan M. Pearce (ed.). London: Routledge, 1994, pp. 67-75.

228 Ver para a história do estabelecimento de diferenças entre “objecto de arte” e “objectos comuns”,

presença/existência e da actividade humanas (humanly defined pieces)229. Num sentido mais restrito, o objecto museológico encontra-se indelevelmente ligado ao acto de expor (museografia), sendo, portanto, o artefacto que se encontra em reserva ou em exibição em mobiliário/dispositivos museológicos, alicerçado por uma comunicação exigente – legendas, textos de sala e de parede, mapas, etc. – servindo um discurso previamente elaborado sobre o mesmo e interagindo com a manipulação/construção que o próprio acto de expor produz nele230.

Em suma, a um objecto museológico tem que estar associado um (ou mais) discurso(s) e representação(ões) museológica(s)231.

Conforme já vimos, nenhuma destas significações do objecto existem numa realidade auto-exclusiva. Reunidos, classificados e arrumados, os objectos museológicos ilustram sistemas que os enformam enquanto conjunto e permitem, num aparente jogo de absurdo, um olhar para o objecto em si, fora do contexto para que foram originalmente criados. Absurdo esse que se esvazia sempre que os agentes reflectem sobre os objectos e as suas colecções e os mostram (expõem), acto entendido aqui como um processo e não como um objectivo com intuitos de constância. “O museu, que é o lugar onde se guardam e mostram objectos, é, principalmente, um lugar de imagens”232.

E estas imagens não são ingénuas, resultam de convenções ideológicas que, mesmo que não auto-percepcionadas, se projectam na forma como pensamos, agimos e dispomos o(s) objecto(s) e os seus discursos, num “desmultiplicar de imagens” em que o acumular de significados que o passar do tempo confere aos objectos não deve ser descurado.

      

229 Pearce, Susan – “Museum objects”, [1992]. In Interpreting Objects and Collections. Susan M. Pearce

(ed.). London: Routledge, 1994, pp. 9-11 [10].

230 Moutinho, Mário Canova – “A construção do objecto museológico”. Cadernos de Sociomuseologia.

Centro de Estudos de Sociomuseologia. N.º 4, 1994, pp. 7-59 [8] (consultado em 2013.09.12

(http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/449/353). Para uma história da evolução e significado do objecto na museologia ver Luna, Maria Isabel Soares de – Incorporação e

Desincorporação em Museus, pp. 10-4.

231 Alice Semedo, “Introdução”, in Semedo, Alice e Lopes, J. Teixeira (coord.) – Museus, discursos e

representações. Porto: Edições Afrontamento, 2006, p. 13.

232 Veja-se a este propósito o que Pais de Brito escreve sobre o “crescendo da valoração da obra singular,

ou mesmo única, por oposição à obra representativa de uma prática, de um modelo, de um universo de representação que sempre caracterizou o documento etnográfico” dentro dos museus dessa área, fazendo uma reinterpretação e reavaliação dos princípios que estiveram na ideia de formação das galerias de belas-artes (a origem dos museus/colecções de arte), categoria sob a qual se inscrevem as problemáticas analisadas nesta tese. Brito, Joaquim Pais de – “O museu, entre o que guarda e o que mostra”. In Museus,

discursos e representações. Alice Semedo e J. Teixeira Lopes (coord.). Porto: Afrontamento, 2006, pp.

Este tem sido um dos campos de trabalho da New Museology e dos Museum Studies, que através de uma crítica às práticas museológicas na relação com os seus contextos social, económico e político, se têm esforçado por estabelecer os parâmetros de reavaliação dos objectos museológicos. Com efeito, a New Museology crítica a noção museológica tradicional que confere aos objectos características morais e/ou estéticas inerentes, bem como a ideia de que se trata de representações objectivamente empíricas da realidade. Implícito ao argumento desta crítica está a ideia de que estas noções têm feito parte do discurso hegemónico que apresenta o progresso como uma linha evolutiva e o conhecimento em termos absolutos233.

Por conseguinte, a utilização concreta de conceitos previamente apreendidos – ou seja, independentemente da origem e da função primeira dos artefactos, a assunção de que esta tese lida com objectos museológicos – não pode de forma alguma obliterar a memória e a vida prévia das peças. Pelo contrário. É neste âmbito que se destaca a necessidade de produzir mais informação (mais diferenciada), documentação e “matéria expressiva comunicável com os públicos, que vá para além da concretude e materialidade formal dos objectos”234.

Todavia, não se veja no “objecto museológico” (mesmo que na sua vertente mais crítica) a resposta aglutinadora de todas as potencialidades dos objectos. Voltamos ao início, o objecto só existe em função do discurso que lhe é associado, e este só o torna real em função do contexto histórico em que se insere.

Logo, ainda a este propósito e também sobre as limitações e potencialidades do objecto inserido em contexto museológico e, sobretudo, como em época de pressão globalizante (que é a nossa) se revela difícil uniformizar comportamentos e vivências humanas, partilho um episódio a que assisti em Nova Delhi aquando de uma visita em Fevereiro de 2013 ao National Museum. O museu apresenta uma museografia datada mas absolutamente a par com o que se fazia na Europa nos anos 50 e 60 do século XX (inerente a esta descrição está a constatação de que o museu assim percebido é uma criação “ocidental” que foi exportada para outras geografias).

Na sala budista, quatro crentes – o mestre e três discípulas – praticavam o cerimonial budista zen em frente a um templo-relicário protegido por uma vitrine       

233 Sobre este assunto ver Jordanova, Ludmilla – “Objects of Knowledge: A Historical Perspective on

Museums”. In The New Museology. Peter Vergo (ed.). 5.ª ed. London: Reaktion Books, 2000 [1989], pp. 22-40.

museográfica [Fig. 3]. Acrescento que os turistas japoneses que passavam pela sala, descalçavam os sapatos, incluíam-se na cerimónia e ali ficavam a partilhar aquele momento religioso, alheios aos turistas dos objectos museológicos.

Este comportamento, impossível (difícil?) de encontrar em museus “ocidentais”, mostra bem a multiplicidade de vivências suscitadas pelo objecto em contexto museológico, bem como (e não menos significativas) as potencialmente limitadas interpretações sobre o que é o sagrado, e nas quais me demorei no ponto anterior.