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Max Weber já alertara no começo do século XX que uma sociedade democrática era contraditória em um sistema capitalista. De fato, a tensão entre o capitalismo e a democracia permeia a história das sociedades contemporâneas desde a chegada da classe burguesa ao poder. Segundo Streeck (2011), ainda no século XIX e primeiras décadas do século XX, a burguesia e a direita política demonstravam temores de que a “regra da maioria”, implicando na supremacia dos pobres sobre os ricos, acabaria por extinguir a propriedade privada e os mercados livres. Por outro lado, a esquerda e a nova classe trabalhadora alertavam que os capitalistas poderiam se unir às forças reacionárias para abolir a democracia com o objetivo de se protegerem de ser governados por uma maioria ansiosa por políticas de redistribuição econômica e social.

O fortalecimento das novas classes sociais, em especial a classe trabalhadora, gerou uma intensa tensão entre os interesses capitalistas e os ideais democráticos. Este atrito político resultou em importantes conquistas como o sufrágio universal, eleições periódicas, entre outros, porém, não refletiu na substituição e muito menos na inclusão das classes trabalhadoras às esferas do poder. Pelo contrário, a elite econômica dominante viu na abertura de um jogo democrático a oportunidade de fortalecer o próprio capitalismo, reforçando sua própria perpetuação política e econômica.

Bresser-Pereira (2011) cita algumas condições que levaram a este movimento de aproximação entre a democracia e o capitalismo: em primeiro lugar, os capitalistas perceberam que um estado de direito, no qual liberdades e direitos individuais eram as- segurados, gerava um ambiente constitucional e legal estável para o livre exercício da atividade econômica. Em segundo, perceberam que o empoderamento das classes traba- lhadoras através de benefícios, direitos e participação política não era um jogo de soma zero, mas sim um jogo em que todos podem ganhar, uma vez que alivia a tensão entre as classes sociais, melhora a produtividade do trabalhador, garante os direitos indivi- duais de consumir, e, por consequência, leva ao aumento da atividade econômica e dos lucros da classe empresarial. Outrossim, não só a classe trabalhadora estava convencida de que a democracia poderia gerar ganhos para si, mas também a nascente classe média, composta pela pequena burguesia e profissionais liberais, a qual ansiava por instituições que possibilitassem o compartilhamento do poder político e a alternância ordenada de governo.

1 É ridículo acreditar que existe uma afinidade eletiva entre o grande capitalismo (...) e a “democracia”

ou “liberdade”. A questão verdadeira deveria ser: como essas coisas podem ser mesmo “possíveis” sob a dominação capitalista?

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Assim, gradualmente, tanto os capitalistas quanto a classe trabalhadora per- ceberam que a democracia era a forma de governo mais favorável, tanto para garantia do lucro dos empresários, quanto para o bem-estar do trabalhador. Trabalhadores, capita- listas e as classes médias assinaram informalmente um novo contrato sócio-político que, apesar de pequenas crises ao longo da sua consolidação, representou por anos uma sig- nificativa estabilidade política. O intenso crescimento econômico mundial, especialmente após a segunda grande guerra mundial, levou a um período de trégua na tensão entre capitalismo e a democracia, esvaziando o debate de incompatibilidade. Essencialmente, essa trégua envolveu classes trabalhadoras organizadas a aceitar os mercados capitalistas e os direitos de propriedade em troca de conquistas no campo democrático, permitindo alcançar a segurança social e um aumento do padrão de vida (STREECK, 2011).

A relativa paz entre o capitalismo e a democracia, em especial no pós-guerra, foi reforçada pelo sentimento de solidariedade que tomou a vida social europeia após as intensas experiências de dificuldades das duas grandes guerras. Não obstante, as crises capitalistas da década de 70 e, anos depois, o aparecimento e fortalecimento das ideias neoliberais na Europa e nos EUA, reavivaram as tensões entre democracia e o capitalismo. Segundo Rosanvallon (2014, p.31), o capitalismo, principalmente o que se desenvolveu nos últimos 30 anos, “é uma máquina de fazer cercamentos, de privatizar, de isolar o indivíduo”. Essa intensa individualização trouxe uma crise da solidariedade que cimentava a comunidade política e, ao mesmo tempo, uma crise da representação política.

Destarte, a crise democrática transcende a discussão da luta de classes e, no século XXI, acrescenta-se a uma crise dos valores democráticos frente aos valores capi- talistas. Bauman (2004) analisa profundamente o impacto do capitalismo na sociedade contemporânea e observa que as relações do mercado agora são reproduzidas nas relações sociais, criando uma sociedade individualista, impulsiva e descompromissada. Denomina os tempos atuais de “modernidade líquida”, em que os valores, as ideias e as relações são fluidas e não duradouras, tal como deve ser um objeto no mercado: descartável e efêmero para dar movimento ao consumo. Nesta guerra entre capitalismo e sociedade, conclui Bauman, a primeira grande batalha perdida foi o fim da solidariedade.

Ora, a democracia como pensada em sua gênese na Grécia Antiga é essen- cialmente uma prática do bem comum. Em uma sociedade de valores individualistas e ausente de solidariedade, sua prática se esvazia e abre caminho para interesses escusos, apatia participativa, corrupção, entre outros. Além disso, a separação entre as esferas pú- blica e política reforça ainda mais estas características. Rosanvallon (2014) acredita que é mais do que urgente restabelecer os vínculos de solidariedade desfeitos nos últimos 30 anos para que possamos praticar uma democracia voltada para o bem comum e, para isto, sugere uma transformação na própria prática capitalista como o desenvolvimento da economia solidária e cooperativa. O autor também vislumbra na tecnologia, em especial

na internet, possibilidades da retomada da solidariedade vendo de forma positiva o lado comunitário e compartilhado do mundo virtual.

O desaparecimento da solidariedade, o individualismo e o poder econômico na sociedade capitalista são pilares do que se denomina de crise de representatividade demo- crática. A representatividade, conceito central das democracias representativas liberais, implica em uma ética e responsabilidade pelo bem comum. Rosanvallon (2014) cita três condições ideais, senão utópicas, para uma adequada convergência entre a democracia e a representatividade:

1. Os representantes devem saber exatamente o que as pessoas desejam.

2. As expectativas do representado devem ser todas satisfeitas através das realizações do representante.

3. A representação democrática requer autonomia local e liberdade de expressão e associação, bem como uma certa igualdade básica de condições materiais.

A frustração dessas condições, seja através dos valores individualistas da so- ciedade ou da coerção do poder econômico, acarreta não apenas uma crise, mas um descrédito sobre os valores democráticos. A expectativa positiva gerada em uma popula- ção após uma eleição em pouco tempo torna-se, invariavelmente, decepção. O entusiasmo de um atendimento imediato das expectativas por parte dos representantes democratica- mente eleitos é logo dissipado quando a vida cotidiana mostra a distância que existe entre a promessa e a realidade. Como consequência disto, muitas democracias são tentadas a se deixar levar por regimes autoritários que legitimam justamente a secessão social. A democracia contemporânea, cita Rosanvallon (2014, p.31), “tornou-se uma máquina de produzir decepção”.

A crise de representatividade, mais do que uma crise da estrutura governa- mental e suas instituições, é uma crise do representado, na qual os interesses daquele que é eleito estão muito mais voltados aos interesses particulares e econômicos do que à representação da vontade popular. Uma consequência desta conjuntura é o descrédito dos cidadãos com as instituições representativas, constatada pelo aumento no número de eleitores que não se identificam com partidos, altas taxas de volatilidade e queda nos índices de participação eleitoral (COSTA, 2016). O aumento da corrupção também é um sintoma. Em especial no contexto brasileiro, vimos recentemente uma grave crise política que mostrou como interesses particulares e de grandes corporações capitalistas desvir- tuam a representação da vontade popular através da corrupção, pagamento de propina e manipulação da mídia. As consequências não só aumentam ainda mais o descrédito do ci- dadão, como desestabilizam as próprias instituições democráticas, a exemplo do processo

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de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, e reavivam o conservadorismo político (SILVA et al., 2016).

A crise da democracia contemporânea não é sinal de esgotamento do modelo de governança, mas sim uma antítese do processo dialético sócio histórico de transformação dos valores e práticas sociais em uma sociedade profundamente modificada pelo pró- prio capitalismo e seus avanços técnicos e econômicos. Nesta leitura, destaca Rosanvallon (2014), o modelo democrático representativo está em plena reconstrução e ressignificação e deve responder a este novo momento histórico aperfeiçoando criticamente a sua prática (ROSANVALLON, 2014, p.33):

Há toda uma invisibilidade social de que os partidos políticos não se ocupam e que constitui hoje o cerne do problema da representação política. Represen- tar quer dizer justamente estar presente no debate social, estar presente no conhecimento do outro, das realidades vividas por diferentes grupos sociais, as realidades vividas por pessoas, suas dificuldades. Portanto, há necessidade de novos organismos capazes de dar visibilidade a esses setores sociais, seja pela internet, pelos livros, pelos grupos comunitários. Ao lado deles, é preciso que haja também, ao lado dos partidos políticos, outros, que se ocupem, de maneira cotidiana e permanente, de discutir, criticar, interpelar o modo de agir do governo. É preciso fazer com que o governante preste conta, que se interesse pelo problema da sociedade, que seja transparente e torne as coisas mais visíveis. (...) Enfim, é preciso que a democracia articule os eleitores em torno de novas formas de representação, e essas organizações sociais se dedi- quem a brigar por maior transparência por meio da interpelação pública. É o que começa a emergir por todos os lugares do mundo.

Um novo cenário de reação à crise democrática tem surgido nos últimos anos. As novas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), por intermédio da internet, têm gerado uma maior diversificação do engajamento político e já não podem ser ig- noradas como instrumento de pressão política. No Brasil, os protestos de junho de 2013, motivados essencialmente pela percepção de desgaste da política brasileira em representar as vontades populares, tiveram forte impulso no uso de tecnologias de comunicação, como as redes sociais, para propagar as reivindicações e organizar os protestos e mobilizações sociais (SANTOS, 2014).

Pierre Levy, filósofo francês contemporâneo, vê na revolução tecnológica do século XXI um caminho para uma nova prática democrática mais transparente, livre e universal. Acredita que as tecnologias levarão ao surgimento de “ágoras virtuais”, em que nascerão novos modos de comunicação e deliberação política, resgatando a inteligência coletiva como forma de expressão das vontades e opiniões públicas. A ciberdemocracia,

forma que se refere a esta possibilidade, resgatará valores enterrados pela sociedade capi- talista como a ação coletiva, senso de justiça comunitária e a solidariedade. Nas palavras do autor (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 34):

As mídias interativas, as comunidades virtuais e a explosão da liberdade de expressão trazidas pela Internet abrem um novo espaço de comunicação, in- clusivo, transparente e universal que é levado a renovar profundamente a vida pública no sentido de maior liberdade e responsabilidade dos cidadãos.

E é neste contexto de crise política e revolução tecnológica que temos uma im- portante janela de oportunidades para debater e recriar a prática democrática em busca de soluções para sua crise de representatividade. Neste caminho, aproximar as ciências humanas e as engenharias em um diálogo que supere as históricas barreiras entre as duas disciplinas é essencial para a práxis de um novo conhecimento transformador. Nesta pers- pectiva, este trabalho propõe o desenvolvimento de uma ciência tecnológica fundamentada em sólidas teorias das ciências políticas que almejam soluções para superar a crise polí- tica e estabelecer uma nova prática democrática na Era da Informação. Iremos ancorar esse desafio no pensamento de Jürgen Habermas, que teorizou a democracia deliberativa. Suas ideias principais, que irão fundamentar as próximas etapas deste trabalho, serão apresentadas a seguir.