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é um fenômeno relativamente novo na sociedade e, como um processo ainda em cons- trução, carece de teses e antíteses para avaliação das conquistas (ou derrotas) que ela implica no jogo democrático. No entanto, algumas experiências mostram o potencial de transformação da web e, dentre estas, as mais significantes encontram-se no campo das redes sociais (MAGRANI, 2014).

A mais popular rede social da atualidade, em número de usuários, é o Face- book, com, no início de 2018, 2,13 bilhões de perfis4. Apenas no Brasil, 127 milhões de pessoas5 estavam conectadas à rede criada por Mark Zuckerberg. Como um ambiente de intensa interação e troca de informações, o Facebook tornou-se também um espaço de expressão e debate político, com implicações cada vez mais relevantes no cenário político e democrático.

Marichal (2012), em seu livro Facebook Democracy, afirma que o Facebook gera certa utopia ao supor que, através das redes sociais, o cidadão torna-se capaz de colaborar e inspirar a ação coletiva, necessária para a mudança social, ao ponto de transformar a rede em uma esfera pública que rivalize com formas de poder e desigualdade. No entanto, os limites do engajamento coletivo chocam-se com o aspecto privado da rede social: o Facebook parece ser uma excelente ferramenta quando deseja unir um grupo a uma causa, como aconteceu nas eleições de 2008 nos EUA, quando Obama conseguiu criar uma rede de voluntários e doadores para sua vitoriosa campanha; porém, seu caráter privado não é capaz de gerar pluralidade, uma vez que as pessoas tendem a se organizar por grupos de interesses comuns, gerando uma infinidade de “bolhas” que privatiza o espaço público.

4 https://link.estadao.com.br/noticias/empresas,facebook-chega-a-2-13-bilhoes-de-usuarios-em-todo-o-

mundo,70002173062 - acessado em 10 de novembro de 2018.

5 https://www1.folha.uol.com.br/tec/2018/07/facebook-chega-a-127-milhoes-de-usuarios-mensais-no-

Além do mais, como uma ferramenta comercial, o Facebook, nas palavras de Marichal (2012, p.31), “serve ao neoliberalismo e ao mercado”, fazendo do usuário também um produto manipulável segundo os interesses do capital.

No entanto, nos últimos anos, foi possível observar um aumento no uso das redes sociais como instrumento de engajamento político. No Brasil, as manifestações de junho de 2013 foram organizadas quase exclusivamente através do Facebook, por diversos movimentos sociais, e culminaram com uma multidão de mais de 1 milhão de pessoas nas ruas em um único dia (20 de junho) (PERUZZO, 2013). Neste episódio, as redes sociais mostram-se poderosos instrumentos de organização rápida e massiva. Porém, como foi possível observar nos momentos subsequentes às grandes manifestações, a capacidade de mobilizar e gerar debates consensuais não parecia ser uma característica das redes, levando a uma pluralidade de pautas que, na dificuldade de convergir, cindiu as multidões, que ficaram à mercê de movimentos políticos “tradicionais” (quando não oportunistas).

Fora do Brasil, as redes sociais protagonizaram importantes acontecimentos da vida democrática. No Brexit, votação que ocorreu na Inglaterra em 2016 para decidir se o país sairia ou não da Zona do Euro, Vicario et al. (2016) analisaram o papel das redes sociais na formação da opinião e influência no resultado do processo, e constataram um curioso comportamento: nas redes sociais, os usuários tendem a selecionar e aderir às informações que reforçam a sua visão do mundo e ignoram as que são divergentes. Além do mais, sem intermediação do conteúdo, a qualidade destas informações nem sempre é garantida, ficando o usuário à mercê de conteúdos inverídicos, popularmente conhecidos como fake news. Este comportamento, complementam os autores, não só intensificou ainda mais a polarização do processo eleitoral, como frustrou o debate democrático de ideias, uma vez que a seletividade observada na rede social, ao reforçar o imaginário individual e não possibilitar o contraditório, esvazia qualquer espaço de debate e pluralidade, condição básica para o bom funcionamento das práticas democráticas. Destarte, a disputa extrapola o debate democrático e se insere na tenebrosa seara do mundo privado, onde vence quem é capaz de aglutinar mais pessoas usando (des)informação construída (senão falsa) que reforce os desejos e fantasias individuais (e não coletivos) do cidadão.

Outra relevante influência das redes sociais ocorreu na eleição de Donald Trump, nos EUA, em 2016. Tal como no Brexit, o uso das redes sociais como espaço de debate ficou em segundo plano, e o ambiente virtual foi dominado por uma forte po- larização, reforçada pela intensa disseminação de fake news. Allcott e Gentzkow (2017) analisaram o efeito das histórias falsas nas eleições estadunidenses e concluíram que, mais do que uma fatídica disseminação de desinformação, as fake news foram estrategicamente pensadas, começando a ser distribuídas 3 meses antes das eleições. As notícias falsas fa- voráveis à Trump atingiram 30 milhões de compartilhamentos, enquanto as favoráveis a Hillary Clinton, sua adversária, alcançaram 8 milhões de compartilhamentos. Outrossim,

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os pesquisadores observaram que as pessoas tendiam a acreditar nas notícias falsas que favorecessem seu candidato favorito, reforçando os mesmos achados no processo do Brexit. No Brasil, o uso das redes sociais, em especial do Facebook e do WhatsApp, também tem exercido grande influência no jogo democrático. Apesar de se tratar de um fenômeno muito novo e ainda carente de análises acadêmicas, o noticiário tem expressado a influência (muitas vezes assustadora) das mídias virtuais na capacidade de mobilização da população. Recentemente, dois eventos chamaram a atenção da mídia nacional e inter- nacional sobre os impactos das redes sociais: a greve de caminhoneiros em maio de 2018 e as Eleições Presidenciais em outubro do mesmo ano.

A greve dos caminhoneiros foi uma mobilização de classe que tinha como prin- cipal pauta barrar o aumento do diesel. A mobilização foi toda construída virtualmente, principalmente através do WhatsApp6, e muito rapidamente atingiu uma paralisação

quase completa da classe, que gerou inúmeras consequências na economia brasileira, desde o desabastecimento de combustível até a parada de fábricas e serviços públicos7,8. Um fato que chamou a atenção foi a disseminação de notícias falsas, que não só causavam medo e desconfiança na população, como no próprio governo, o qual, na tentativa de ne- gociar uma solução, teve grandes dificuldades de encontrar uma figura que representasse as demandas da classe, uma vez que o movimento virtual muitas vezes mostrava-se acéfalo em termos de liderança9.

Caso mais recente foi o da Eleição Presidencial de 2018, a qual, apesar de ainda em processo, já mostrou a força das redes sociais na mobilização da população com instrumentos pouco (ou nada) democráticos. Novamente, como observado no Brexit e nas Eleições de Trump, o debate democrático foi renegado a segundo (ou terceiro) plano, e o que foi visto foi uma guerra de desinformação e fake news. Uma novidade em relação às experiências estrangeiras foi o uso do WhatsApp como a principal ferramenta de disseminação de histórias falsas, uma vez que não houve, a priori, nenhuma forma de intermediação da informação, ao contrário do que o Facebook começou a adotar como prática após as manipulações na história recente. O poder das fake news nas eleições brasileiras não só mostrou uma face antidemocrática do uso inadequado das redes sociais, como também inaugurou um fenômeno (perigoso) sem precedentes na história recente mundial, sendo motivo de preocupações e alertas da ONU e da OEA. Nas palavras de Laura Chinchilla, chefe da missão da OEA na eleição brasileira:

6 https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/como-o-whatsapp-mobilizou-caminhoneiros-

driblou-governo-e-pode-impactar-eleicoes.ghtml - acessado em 12 de novembro de 2018.

7 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/greve-de-caminhoneiros-trava-onibus-postos-e-

fabricas-no-pais.shtml - acessado em 12 de novembro de 2018.

8 https://g1.globo.com/economia/noticia/2018/08/31/greve-de-caminhoneiros-ajudou-a-frear-

recuperacao-da-economia-veja-o-caminho-do-pib-no-trimestre.ghtml - acessado em 12 de novembro de 2018.

9 https://oglobo.globo.com/economia/falta-de-lideranca-formal-complica-acordo-entre-governo-

É um fenômeno tão novo e tão recente. É a primeira vez em uma democra- cia que estamos observando o uso de WhatsApp para difundir continuamente notícias falsas.10

As experiências brasileira, inglesa e estadunidense nos mostram que o uso das mídias sociais como intermediadores do processo político é uma tendência em um mundo cada vez mais conectado. Porém, como um fenômeno muito recente, as implicações da sua presença no jogo democrático ainda são nebulosas e incertas.

É inegável a capacidade da internet e de suas ferramentas de aproximarem as práticas democráticas de cada cidadão, principalmente ao dar alguma visibilidade a grupos antes excluídos ou silenciados pela ausência de um ambiente de expressão sem limitações espaço-temporais. Porém, as experiências recentes têm mostrado que os espaços de debate e discussão, como os propiciados pelas redes sociais, estão muito distantes de uma genuína esfera pública.

As redes sociais são espaços seletivos que tendem a aproximar pessoas com interesses comuns ou que possuem algum vínculo como amizade ou parentesco. Essa ca- racterística expressa um caráter privado que afasta pessoas que poderiam de alguma forma pensar diferente e estabelecer um debate plural de ideias. As consequências disso são redes organizadas em grupos privados de interesse comum que pouco ou quase nada interagem entre si. São os chamados “filtros-bolha” da internet (PARISER, 2011).

A polarização observada nas três eleições citadas pode ser uma expressão do isolamento dos grupos em suas redes sociais e sua aversão ao contraditório, criando um terreno fértil para a disseminação de notícias falsas e extinguindo qualquer possibilidade de um debate plural de ideias. Todo este processo vai na contramão do estabelecimento de uma esfera pública, porque:

1. Fere o “princípio da inclusão”: A esfera pública exige um caráter público, plural e universal, diferente das redes sociais, que priorizam o espaço privado e organizam- se por interesses em comum.

2. Fere o “princípio da participação”: A esfera pública implica em um espaço inclusivo e de livre discurso, onde todos os sujeitos possuem igual direito de parti- cipação independentemente de suas convicções ideológicas, particulares etc. A rede social, com seus grupos privados, não só torna a participação seletiva, como também não apresenta grande pluralidade, uma vez que seu foco individualista promove o isolamento dos sujeitos em “bolhas” que unicamente reforçam seus valores indivi- duais e convicções.

10 https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/2018/10/25/fake-news-pelo-whatsapp-e-

Capítulo 2. Democracia 53

3. Fere o “princípio da comunicação livre de violência e coação”: A ação comunicativa necessita de um ambiente livre de influências externas e internas, o que é de dificílimo controle nas redes sociais. A disseminação das fake news, bots, perfis falsos, entre outros instrumentos de manipulação, mostram uma força poderosíssima de coação e muito difícil de ser controlada e investigada.

A apropriação dos ambientes de formação da opinião pública pelas mídias sociais é um processo em franca expansão nas democracias atuais. Porém, a ausência de intermediação da informação e o caráter mercadológico não favorecem seu uso quando o que se deseja é propiciar um ambiente de debate democrático e de formação da opinião pública. Por este motivo, urge a necessidade de criação de novos modelos de participação política no mundo virtual, uma vez que a virtualização da vida real é um caminho sem ponto de retorno.

O modelo de rede social possui vantagens ao propiciar espaços de debate e dar os mesmos direitos e oportunidades de participação a todos conectados à web, apro- ximando novamente o cidadão dos negócios públicos. Porém, fica clara a necessidade de desenvolvimento de mecanismos de intermediação da informação, como formas de com- bater as fake news e garantir um debate plural de ideias e propostas que favoreça a construção do consenso sem que os mais variados grupos (em especial as minorias) dei- xem de ser ouvidos e tenham seus desejos e anseios também debatidos e atendidos como demandam os processos democráticos.

A presente tese pretende contribuir com a construção de tecnologia para esta nova democracia que está surgindo em um mundo cada vez mais globalizado e virtua- lizado, dando um primeiro passo para reflexão sobre qual democracia queremos daqui para a frente. O fundamento está na teoria da democracia deliberativa e duas contri- buições são esperadas: em primeiro lugar, pretende-se lançar sementes para a criação de uma plataforma virtual de participação política mais próxima da ideia de esfera pública, reconhecendo as vantagens de uma rede social, porém propondo soluções para as suas li- mitações. Em segundo lugar, pretende-se contribuir com o desenvolvimento de algoritmos de inteligência artificial que auxiliem na tarefa de construção da opinião pública plural, sem que a voz da maioria se sobreponha às demandas das minorias, garantindo que todos os atores sociais possam ser ouvidos e representados no cenário democrático.