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A proposta de desenvolvimento da Ágora está fundamentada no conceito de esfera pública, a qual consiste no espaço de publicidade da opinião pública, ou seja, no local de geração e emanação dos desejos e anseios de uma comunidade, além de ser uma interface de pressão da vontade popular sobre os processos deliberativos.

Para que a esfera pública desempenhe seu papel adequadamente, três princípios devem nortear o processo de construção da opinião pública: o primeiro enuncia que todo e qualquer cidadão capaz de se expressar (e que poderá ser afetado pelas decisões ali tomadas) deve ter igual direito de participação; o segundo enuncia que todo e qualquer cidadão tem o direito de se expressar livremente, podendo problematizar, argumentar, expressar suas ideias, sugestões e convicções; e o terceiro princípio concebe que nenhum cidadão pode ser impedido, por forças internas, externas ou manipulações, de fazer uso pleno e consciente de seus direitos. Além disso, a esfera pública deve se apresentar como um espaço plural, inclusivo e universal onde o debate racional, orientado para o consenso, seja a principal diretriz de formação da opinião pública.

Ora, a esfera pública tal como definida por Habermas se vincula a um conceito ideal, senão utópico, de um ambiente de participação política. Nas sociedades democrá- ticas contemporâneas, os espaços de construção da opinião pública quase sempre falham em algum aspecto dos princípios fundamentais:

∙ No princípio da inclusão: os espaços de participação política só são realmente universais (nos países de democracia madura) nos processos de eleição, seja para escolha de representantes, quanto em plebiscitos e referendos. Os espaços de forma- ção da opinião pública, em sua maioria, não comportam a participação igualitária de todos os sujeitos que serão afetados pelas decisões ali tomadas, seja por restri- ções espaço-temporais ou pela dificuldade em se estabelecer um debate orientado ao consenso com grandes multidões.

Capítulo 4. Projeto e-Ágora: a Ágora e a Metodologia da Ação Comunicativa 81

∙ No princípio da participação: a participação igualitária e livre em um ambiente de debate é menos garantida quanto maior for a quantidade de sujeitos. O conceito de representação visa superar este problema ao concentrar o poder de expressão de uma comunidade em um único representante. Porém, nem sempre (ou quase nunca) se pode garantir que este representante de fato defenderá os reais anseios populares. Este fato está por de trás de um dos principais problemas das democracias contemporâneas: a crise da representatividade. Desta forma, a esfera pública não alcança seu objetivo de universalização, ou seja, de aproximar o debate político de cada cidadão e não apenas de seus representantes.

∙ No princípio da coação: a existência de forças de coação é notada nos espaços de construção da opinião pública, em especial na imprensa e na mídia, as quais Habermas aponta como principais representantes da vontade popular. Ele alerta para a presença do que chama de “ativismo jornalístico”, uma manipulação da informação por meio de interesses comerciais, partidários ou de grupos privados (HABERMAS, 2003a).

Atualmente, novos espaços têm se configurado como ambientes de formação da opinião pública, competindo com aqueles já bem estabelecidos na sociedade, como a imprensa e a mídia. Estes espaços, nascidos no ambiente virtual, têm se aproximado mais adequadamente do conceito de esfera pública do que outros bem estabelecidos e considerados representantes da vontade popular. O mundo virtual, com a popularização do acesso à internet, facilita o aparecimento de ambientes que superam as restrições espaço-temporais e possibilitam uma participação ampla e mais igualitária da população no processo de formação da opinião pública. Este fenômeno pode ser observado nas redes sociais, em que milhares de usuários se reúnem em grupos (seja de interesse temático, como grupos de Facebook, seja de temas livres como em grupos de WhatsApp) e, num processo de livre debate, produzem opiniões que extrapolam as fronteiras da rede e influenciam e pressionam as decisões políticas, tal como deve ser uma esfera pública.

O poder das redes sociais em organizar e estabelecer espaços plurais, de partici- pação massiva e direta das pessoas, pôde ser observada recentemente em alguns processos democráticos como a votação do Brexit e as eleições estadunidenses em 2016 e as eleições brasileiras em 2018.

Se, por um lado, as redes sociais mostram a sua capacidade de organizar espa- ços de formação da opinião pública de maneira mais consoante com o conceito de esfera pública, especialmente pela sua capacidade de participação igualitária e massiva devido a virtualização, por outro lado, este modelo têm se apresentado (perigosamente) ineficiente no que diz respeito à presença de forças de coação e manipulação da vontade popular. Cito três condições para isto:

∙ Anonimato da rede: apesar de as redes sociais, como o Facebook, prezarem pela veracidade dos perfis, possibilitando a denúncia de conteúdos falsos e frequente- mente excluindo-os, a influência de perfis suspeitos que se aproveitam do anonimato para manipular, coagir e até ameaçar pessoas é quase uma constante, especialmente em grandes grupos formadores de opinião. Outra ameaça à integridade das opi- niões formadas nesses ambientes são os bots, robôs programados para manipular a informação curtindo excessivamente opiniões de interesse e comentando inadequa- damente em conteúdos específicos. A presença de bots é especialmente marcante no Twitter. Segundo levantamento do Instituto InternetLab1, nas eleições brasileiras

de 2018, 38% dos perfis do Twitter que seguiam os candidatos à presidência eram formados por bots tentado promover hashtags a favor de determinados candidatos. ∙ Interesses comerciais: as redes sociais não são apenas estruturas compostas por

pessoas que compartilham valores e interesses em comum, mas também são produ- tos submetidos às regras do mercado. A propaganda, coletiva ou dirigida, constan- temente influencia o comportamento do usuário na rede, tornando-o também um produto do ambiente virtual. Este fato vai na contramão do princípio da coação, o qual enuncia que a genuína opinião pública deve ser formada sem que haja qualquer grau de manipulação.

∙ Conteúdos falsos (fake news): um dos mais marcantes fenômenos nas redes sociais quando serviram como um espaço de debate político e formação da opinião foi a disseminação de mensagens falsas, as fake news. A influência deste fenômeno nos processos eleitorais a favor de candidatos específicos foi de tamanha impacto que chamou a atenção de autoridades mundiais como a ONU2 e a OEA3. O uso

de notícias falsas não só interfere no debate racional de ideias, como também, ao reforçar convicções do usuário, gera uma grande polarização e exclui a essencial presença do contraditório no processo de formação da opinião pública. O resultado é uma perigosa manipulação da vontade popular que pode até mesmo ameaçar a existência da própria democracia (GAUGHAN, 2016).

Os três pontos levantados mostram que as redes sociais usurpam o real con- ceito de esfera pública e carregam em si elementos contraditórios para formação da genuína opinião pública. No entanto, apresentam elementos organizacionais, oriundos da virtua- lização, muito positivos, que superam algumas das limitações dos espaços clássicos de emanação da vontade popular.

1 http://www.internetlab.org.br/pt/informacao-e-politica/bot-ou-nao-quem-segue-os-candidatos-

presidente/

2 https://news.un.org/pt/audio/2017/03/1199311

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Considerando estes aspectos, o conceito proposto para o desenvolvimento da Ágora procura reunir os elementos organizacionais das redes sociais com algumas soluções para as problemáticas do seu uso no estabelecimento de uma esfera pública. Assim, a Ágora origina-se como uma plataforma virtual:

∙ De consulta da opinião pública - ao ser desenhada para formação coletiva da opinião pública segundo os preceitos da teoria da democracia deliberativa.

∙ Organizada e implementada nos modelos de uma rede social - onde os usuários podem livremente debater em um espaço virtual e participar de enquetes e votações.

∙ De ocorrência do agir comunicativo - ao possuir ferramentas e métodos que possibilitam o debate racional de ideias segundo as diretrizes da teoria habermasi- ana.

∙ De participação não anônima - evitando o surgimento de bots e conteúdos que violem os princípios éticos de um debate racional de ideias. O não anonimato deve ser garantido por ferramentas de cadastro que confirmem a autenticação do usuário por meios de assinaturas virtuais.

∙ Suportada por métodos de inteligência artificial - que facilitem a síntese do conteúdo debatido e apresentem as ideias representantes da opinião de forma plural, sem que ideias majoritárias prevaleçam ou eclipsem as ideias minoritárias.

∙ De livre participação - porém com conteúdo intermediado para evitar a prolife- ração de fake news.

∙ Inclusiva - ao estar adaptada ao mais popular instrumento de acesso à internet: os smartphones.

Uma vez definido o escopo, a etapa seguinte consistiu em projetar e imple- mentar a plataforma virtual. O processo de construção da Ágora seguiu as diretrizes do desenvolvimento de sistemas web segundo os conhecimentos de engenharia web. O pró- ximo tópico abordará este tema.