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As origens históricas do processo de descentralização na França remontam a 1789, com a criação dos Departamentos e Comunas pelas leis de 14 e 22 de dezembro do mesmo ano. Mas esta iniciativa de descentralização em meio ao contexto da Revolução Francesa ainda não é efetiva e somente a partir de 1830 o debate sobre a democracia local ganha contornos efetivos, com sua concretização a partir do reconhecimento das coletividades territoriais e do princípio de subsidiariedade na Constituição de 1946, e pelas leis de descentralização dos anos 1980 (VERPEAUX, 2005).

Atualmente, aproximadamente 36.000 comunas estão associadas a 100 Departamentos e 26 Regiões, que formam as coletividades territoriais, cujas atribuições são determinadas com o processo de descentralização dos poderes do Estado ao âmbito local. As Comunas e Departamentos são instituídos em 1789 no período da Revolução Francesa, e as regiões apenas a partir do Século XX.

A partir de 1982, a Região, antes simples intermediária entre o Estado e a intenção de gerir os departamentos em temas específicos, também ganha status de administração vinculada a um Conselho eleito, e da mesma forma, os Departamentos e Comunas passam a ter suas eleições orientadas pela mesma lei de descentralização (VERPEAUX, 2005).

A descentralização francesa é considerada inacabada, uma vez que há sempre a reivindicação de melhores condições para a execução dos serviços transferidos do Estado para as coletividades territoriais (Região, Departamentos e Comunas), bem como observam-se superposições de papéis devido, principalmente, a fragilidades econômicas que dificultam a determinadas coletividades cumprirem suas funções40. Marceau (2005) afirma que com a transferência de responsabilidades e respectivos recursos para geri-las, surgem também questões de desvio de verbas e mau uso dos recursos públicos em nível local, como consequência do processo de descentralização, o que obriga a um maior controle local das ações das coletividades territoriais. Para o autor, as coletividades territoriais não estão subordinadas umas às outras, o que requer do Estado um papel de coordenação das mais variadas ações locais sobre as quais este não tem mais o papel de decisor único.

No campo ambiental, as Regiões têm como responsabilidade a proteção do meio ambiente e a manutenção da qualidade de vida, participando do processo de planejamento e gestão do meio ambiente e das águas dentro da elaboração de seus respectivos planos regionais; enquanto os Departamentos respondem pela conservação dos espaços naturais sensíveis, sua manutenção e controle do acesso público, e ainda pela disposição adequada dos resíduos sólidos (BÉCET, 2005). As comunas, por sua vez, são responsáveis pelo abastecimento de água e saneamento, pela coleta e tratamento de resíduos sólidos e pela qualidade do ar e da proteção do litoral. A partir da primeira legislação de águas, que data de 1898, até hoje, as comunas são as responsáveis pelo fornecimento de água e saneamento sob a tutela técnica e financeira do Ministério do Interior (COSANDEY et al, 2003).

Na década de 80, em meio às leis de descentralização, aproximadamente 90% das comunas eram rurais, com menos de 2000 habitantes, o que caracteriza a sua dificuldade de gestão financeira e garantir os serviços básicos às suas populações (NOVARINA & MARTIN, 1998). Estas dificuldades são enfrentadas por meio de variadas formas de cooperação inter-comunal, como por exemplo no campo de abastecimento de água e tratamento de águas residuais (DEMAZIÉRE, 2005). Os dirigentes das comunas chegam a ser re-eleitos pela boa gestão da água que desempenharam em seus mandatos (TAVERNIER, 1999).

40 Barraqué (1995) afirma que não só os dirigentes das comunas não têm se demonstrado comprometidos com a questão ambiental em seu território mediante o controle e regulamentação por parte do Estado, como não dispõem de recursos para sustentar a transferência de atribuições do Estado para o poder local, tendo o Departamento importante papel no apoio às responsabilidades das comunas.

O Estado começa a transferir o controle da gestão das águas para as coletividades territoriais a partir da década de 60, iniciando um processo de gestão em nível regional (GHIOTTI, 2005). Para a autora esta passagem é compreendida em três momentos: nos Séculos XVIII e XIX a água faz parte do processo de apropriação e organização comunitária do espaço; após a Segunda Guerra, os usos da água se intensificam pelas demandas do desenvolvimento nacional gerando conflitos de uso entre agricultura, abastecimento e indústria; esta exploração dos cursos d’água se torna insustentável no Século XX e requer um controle e ordenamento ativos do Estado frente às reivindicações pela qualidade de vida das populações locais e associações de meio ambiente, gerando uma contradição ao processo de descentralização.

Para Cosandey et al (2003), o gerenciamento das águas francesas, antes da Lei 64- 1245, era marcado pelo controle do Estado e pela setorização dos principais usos da água. Esta setorização conduziu a uma gestão fragmentada com base na água apenas como recurso sem uma visão integrada da bacia em suas múltiplas dimensões, desconsiderando os espaços naturais e as funções ecológicas dos corpos d’água (GHIOTTI, 2005).

De fato, é com a Lei de Águas de 1964 que a gestão das águas passa a contar com organismos de deliberação e concertação – os Comitês de Bacia, e agências executivas (Agências de Bacia) que atuam em grandes unidades territoriais: as 6 grandes bacias hidrográficas, a saber: Rhône-Mediterranée-Corse, Rhin-Meuse, Seine-Normandie, Artois- Picardie, Loire-Bretagne e Adour-Garonne. Esta lei tem como seus fundamentos a solidariedade entre os usuários; a gestão integrada do recurso água nos ecossistemas; o reconhecimento de seu valor econômico e o controle dos eventos hidrológicos de risco à população (COSANDEY et al, 2003).

Historicamente, o Departamento esteve associado ao processo de planejamento e gestão territorial, como representante do poder do Estado e intermediário do controle estatal nos espaços locais. Anteriormente ao processo de descentralização, as comunas, mesmo responsáveis pelo abastecimento e saneamento, eram consideradas pelo Estado como inoperantes e susceptíveis aos particularismos locais (GHIOTTI, 2005), contribuindo para manter a gestão submetida ao controle estatal. A Lei de 1964 cria espaços inter-regionais de gestão, por meio da figura dos comitês, espaços deliberativos envolvendo governo, coletividades territoriais e usuários.

Os usuários que participam nos Comitês de Bacia – considerando o processo de regulamentação por decretos e despachos posteriores à Lei de 64 – se constituem em representantes dos consumidores industriais, agricultores e até as associações de pescadores, de proteção da natureza e de defesa do consumidor. Esta estrutura de representação considera a bacia vertente como unidade de planejamento, efetivando o princípio poluidor-pagador por meio de um dispositivo de cobrança com o objetivo de controlar a poluição hídrica e fixar objetivos de qualidade da água, que segundo Ghiotti (2005), permaneceu inconstitucional até 2001.

Na esteira do processo de descentralização e na necessidade de aperfeiçoar os instrumentos de gestão das águas, a política de águas francesa ganha novos contornos com a Lei n° 92-3 de 3 de janeiro de 1992. A nova lei considera a água bem como os meios aquáticos um patrimônio nacional, dando maior importância ao seu equilíbrio natural e continuidade ao processo desencadeado a partir da lei de 1964, priorizando a otimização dos usos por setores e seus respectivos usuários.

Como na Lei de 1964, são revistas algumas legislações referentes ao domínio da água como, por exemplo, o Código de Saúde Pública e o Código de Mineração, e é estabelecida uma relação com legislações voltadas para a proteção do meio ambiente. Como afirma Barraqué (1995), os dispositivos legais no âmbito da água se resumem em poucas leis e diversos decretos, além das circulares do Ministério da Ecologia e Desenvolvimento Sustentável (MEDD), que não serão, no seu conjunto, abordados aqui.

Também são criados dois novos instrumentos de gestão: o Esquema Diretor de Ordenamento e Gestão das Águas41 (SDAGE) para o território das grandes bacias hidrográficas, e o Esquema de Ordenamento e Gestão das Águas (SAGE) em nível local sob a intervenção das Comissões Locais de Água (CLE). Mas Ghiotti (2005) destaca que a proposta original trazia apenas o SAGE como instrumento, mas para não comprometer o papel exercido pelas Agências em âmbito regional, o SDAGE foi introduzido como intermediador dos interesses de gestão. De acordo com Barraqué (1995) houve receio da incompatibilidade entre os interesses da gestão integrada previstos na lei com a fragilidade dos processos locais mais voltados para o desenvolvimento segundo uma visão imediatista, o que de certa forma contraria os princípios da descentralização pelo intuito de reafirmação do papel do Estado.

41 Aproveitando a tradução de Fernanda Oliveira para Schéma Directeur d’Aménagement et de Gestion des Eaux em Barraqué (1995).

O SDAGE é um plano estratégico de ordenamento e gestão que dispõe de orientações para o uso equilibrado da água fixando metas para sua quantidade e qualidade na bacia, respeitando as áreas naturais e definindo os limites de sub-bacias para a elaboração dos SAGE, que são elaborados em concordância com as orientações do respectivo SDAGE (Lei 92- 3/1992)

As Regiões estão envolvidas mais diretamente com o SDAGE, enquanto os Departamentos além de assegurar o cumprimento do SDAGE envolvem-se diretamente nos SAGE apoiando ainda as comunas no abastecimento de água potável e no tratamento de águas usadas. O representante do Estado na Região, particularmente aquela em que esta situada a sede do Comitê de Bacia, é responsável pela iniciativa de elaboração destes planos, devidamente aprovada e com sua realização à cargo dos Comitês42 e com a participação dos Conselhos Regionais e Departamentais.

Com a consolidação da região como espaço de representação do Estado na solução dos problemas de disparidade entre áreas geográficas, os Departamentos buscaram ir mais além nas funções desempenhadas no campo ambiental, como é o caso do Departamento de Hérault, na Bacia do Rio Ródano e Mediterrânea. Entre outros, o seu Departamento de Águas mantém uma Direção de Água e Meios Aquáticos responsável por apoiar, além dos serviços de abastecimento e saneamento, a gestão da água e suas estruturas associadas, entre elas as barragens de âmbito departamental.

Mas são as Agências de Água que tornam a gestão possível, arrecadando por vezes mais de 0,1% da riqueza nacional por ano (TAVERNIER, 1999). Inicialmente denominadas Agências de Bacia, elas foram criadas a partir de Lei de 1964 juntamente com os comitês. Primam pelo uso racional da água pelos serviços públicos locais e atuam na luta contra a poluição, não pela ação direta, mas por meio de auxílios financeiros aos atores do sistema, como usuários e mesmo aos Departamentos, frutos da tarificação (redevances) e sob orientação do SDAGE concernente (BOURDIN, 1998).

O Ministério do Meio Ambiente francês estabelece as diretrizes para elaboração de programas de ação plurianuais (5 anos) pelas Agências, submetidos também ao processo de concertação local (MEDD, 2004). Segundo Dubosc (2001), o Estado mantém-se presente na gestão das águas, mas desempenha um papel distante.

4.2 O QUADRO DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO SISTEMA FRANCÊS DE GESTÃO