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CAPÍTULO II A TEORIA DO INQUÉRITO

2. A DIMENSÃO NORMATIVA DO MÉTODO CIENTÍFICO

No primeiro dos dois textos de 1878 , “A Fixação da Crença”(C.P. 5.358- 387)143, encontramos uma das mais celebrizadas afirmações de Peirce, aquela segundo a qual “cada passo importante em ciência é uma lição de lógica”144

. Isto é o mesmo que dizer que a ciência, enquanto projecto de investigação da espécie humana, ou na sua história, evolui ou mede o seu sucesso na medida em que domina, aperfeiçoa, toma consciência da sua vertente metodológica, ou do modo como realiza, válida e eficazmente, inferências explicativas da experiência, deliberadas e auto-controladas. A questão da lógica e do método - e não o fundamento -, é ,assim, o ponto principal da epistemologia de Peirce, e as razões para isto encontram-se desde logo nas conclusões do ataque à epistemologia cartesiana e empirista levado a cabo nos textos de 1868, e na teoria da realidade desenvolvida no texto de 1871 . Ao mesmo tempo que a correcção das inferências ou o método é uma questão central, não ficamos, segundo Peirce, presos numa restrição de tipo transcendental, numa oposição entre aquilo que é conhecimento para nós e o que seria o conhecimento das coisas tal como são independentemente do nosso conhecimento delas. Isto é, o

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O título original deste artigo é “The Fixation of Belief”.

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método não nos afasta, como um filtro, da realidade em si, antes o método é o que nos permitirá eventualmente atingir o real, enquanto a correcção do raciocínio não depende de qualquer sentimento subjectivo de necessidade, mas do facto de que, de premissas verdadeiras, decorre uma conclusão verdadeira: “a questão da validade é smplesmente uma questão de facto e não de pensamento (...) a conclusão verdadeira continuaria a ser verdadeira ainda que não tivéssemos qualquer impulso para aceitá- la; e a conclusão falsa continuaria a ser falsa, embora não fossemos capaze de resistir à tendência para acreditar nela.”145

. A lógica não se limita, pois, a descrever o modo como a mente funciona, mas antes tem como objectivo apresentar as regras segundo as quais a mente deve funcionar para lá das tendências subjectivas: é uma forma de auto-controle, é normativa. Assim, passamos daquilo que já sabemos para aquilo que ainda não sabemos pela acção de um “hábito da mente” que pode ser descrito como um princípio condutor da inferência146, e uma recensão dos mais importantes destes princípios é inestimável quando se trata, não de resolver questões práticas ou rotineiras, mas do aumento justificado do conhecimento, ou da passagem de um estado de dúvida para um estado de crença.

As considerações de Peirce acerca da dúvida como momento importante da investigação começam já nos textos de 1868 e são um dos pontos que o afastam da epistemologia cartesiana. Aqui, o binómio dúvida / crença vai receber uma interpretação biologista que, apesar de usos nominalistas como o de William James, conduzindo à satisfação como critério de verdade e validade, marca a integração do

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“(…)the question of validity is purely one of fact and not of thinking (...) the true conclusion would remain true if we had no impulse to accept it; and the false one would remain false, though we could not resist the tendency to believe in it.” (C.P. 5.365)

evolucionismo na epistemologia e esclarece a posição simultaneamente falibilista e realista de Peirce. A crença distingue-se da dúvida pela sensação que está associada a cada uma delas; por uma “diferença prática” que consiste na presença de um hábito que determina as nossas acções no caso da crença e sua ausência no caso da dúvida147; e, finalmente, por uma diferença nos “efeitos positivos” sobre nós, ou no modo como nos dispõe em relação ao inquérito, como instala ou não a necessidade de procurar explicações e aumentar o conhecimento disponível: a crença é um estado de paz, de calma, em que os hábitos guiam a acção, enquanto que a dúvida é um estado “desconfortável e insatisfeito”148 do qual queremos sair para reencontrar o conforto da crença. O inquérito é, precisamente, “uma luta para atingir um estado de crença” causada pela “irritação da dúvida”149

e o seu único fim é “estabilizar a opinião”150

. A actividade cognitiva é, assim, representada como uma actividade adaptativa, e o melhor método para a levar a cabo será aquele que, em competição com outros, melhor promover a adaptação do investigador ao meio. O índice dessa adaptação é a estabilidade das crenças. Numa descrição deste tipo, então, afirmar que o objectivo é, não simplesmente atingir a crença mas a crença verdadeira, torna-se desnecessário: pensamos que cada uma das nossas crenças é verdadeira, ou não faria sequer sentido dizer que temos uma crença151. Uma das vantagens desta descrição de

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C.P.5.367.

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E aqui encontramos a definição de crença de Alexander Bain, aprendida no Clube Metafísico. Cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993, pp160-163 148 C.P. 5.370-373. 149 C.P. 5.374. 150 C.P.5.375. 151

As dificuldades na interpretação desta passagem para uma teoria da verdade têm em grande parte a ver com a possibilidade de se admitir aqui uma interpretação jamesiana do

inquérito é, segundo Peirce, que ela afasta “várias concepções vagas e erróneas de prova”152. Desde logo, evita as ilusões e a esterilidade associadas às “dúvidas de

papel”, à dúvida metódica de tipo cartesiano, segundo a qual é preciso começar por duvidar de tudo: este é um tema já referido em QFM e cujo efeito mais perverso é conservar, e até fortalecer, o que se pretendeu pôr em dúvida. Por outro lado, retira à filosofia o seu compromisso fundacionalista e a subserviência ao modelo da dedução, uma vez que não se exige, o que seria fútil, começar com “proposições absolutamente indubitáveis” mas apenas com “proposições livres de toda a dúvida de facto”153

. Finalmente, é o próprio sentido da investigação, que assenta na possibilidade de aumentar o conhecimento e que é a causa movente da acção mental, que se identifica com essa passagem de uma dúvida real a uma crença estável.

A questão fundamental do inquérito é, então, como conduzi-lo, como passar da dúvida à crença, e como fazê-lo de modo a que a crença atingida seja o mais estável possível. O resto do texto dedicar-se-á, pois, a recensear diferentes métodos de “fixação de crença”, e a determinar as suas vantagens e desvantagens no que diz respeito à finalidade do inquérito154.

pragmatismo, onde a verdade é uma questão de satisfação individual. Mas o modo como o primeiro método de fixação de crença, onde precisamente se põe em causa a suficiência da satisfação subjectiva, é avaliado deve desde logo impedir esta interpretação. Antes, parece- nos mais correcto interpretar esta passagem como a afirmação da finalidade, ainda que apenas ilusoria ou insatisfatoriamente atingida, de qualquer estado cognitivo e de qualquer crença, que parece ser exactamente a verdade. Mais uma vez, trata-se de chamar a atenção para a descrição do conhecimento como uma actividade finalizada, logo necessariamente contendo dimensões normativas. E trata-se também já de uma aplicação da máxima pragmática ao esclarecimento de conceitos. Para um discussão desta questão, cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985 p.44

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C.P. 5.375.

153

C.P. 5.376.

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Quanto ao critério de escolha dos métodos, Murphey considera que não existe nenhum e a lista é arbirária ou casual: cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy,

O primeiro dos métodos apresentados, o método da tenacidade, consiste numa fidelidade absoluta às crenças que se possui, evitando qualquer perturbação: “Quando uma avestruz enterra a sua cabeça na areia à aproximação do perigo, é bem provável que escolha a solução mais feliz. Esconde o perigo e diz então calmamente que não há perigo; e, se se sente perfeitamente segura de que não há qualquer perigo, porque há-de levantar a sua cabeça para ver?”155. Este é um método estritamente individual e que, do ponto de vista da simples satisfação, é altamente vantajoso. Mas as suas desvantagens são suficientemente fortes para o afastar como o melhor candidato à estabilização eficaz de crenças. Desde logo, “o impulso social está contra ele.”156

. Este seria um método para solipsistas, mas a tenacidade individual encontrará necessariamente discordância no pensamento e sentimento dos outros: este “impulso social”157

, como tendência para admitir a possibilidade de as crenças dos outros serem tão boas ou melhores do que as próprias, instala uma dúvida que atinge não apenas a crença e o seu conteúdo mas o próprio método da sua fixação, na medida em que põe o problema de uma estabilidade que não seja estritamente individual mas que permita afastar diferenças e estabelecer concordância. O problema torna-se no de Cambridge, Hackett, 1993, p164; já Hookway defende que cada um dos métodos significa um aspecto da hipótese da realidade: cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985, p.46; e Thompson relaciona-o com as quatro incapacidades identificadas nos textos de 1868: cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago, University of Chicago Press, 1953, pp.75-76.

155

“When an ostrich buries its head in the sand as danger approaches, it very likely takes the happiest course. It hides the danger, and then calmly says there is no danger; and, if it feels perfectly sure there is none, why should it raise its head to see?” (C.P.5.377)

156

C.P.5.378.

157“This idea that there are non-rational social forces which impel us to rationality was a

central idea in the social philosophy of the Scottish moralists of the eighteenth century, above all of Hume and Smith. The epistemological aplication of this idea (…) was first made by Peirce(…)” Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, p.33.

fixar a crença “não apenas no indivíduo, mas na comunidade.”158

. E para a questão particular da validade, passar de premissas verdadeiras para conclusões verdadeiras ou aumentar o conhecimento, esta exigência de um método que abranja todos e não que funcione apenas para um indivíduo, é crucial. Talvez faça sentido, então, reforçar o pólo da comunidade e instituir um modo oposto ao anterior: em vez da tenacidade individual, a autoridade pública. O método da autoridade159 tem vantagens em relação ao método da tenacidade porque, desde logo, proporciona um sucesso muito maior e grandioso, enquanto realização colectiva. Mas é um método que, por ser excessivamente colectivista, reduz os indivíduos a uma condição de escravos intelectuais160. E, mais ainda, também ele não satisfaz plenamente a exigência do inquérito, que é a fixação estável de crenças. Há sempre a possibilidade de alguns indivíduos conseguirem elevar-se acima dessa condição de escravidão intelectual promovida pelo método da autoridade, e provocar fendas suficientes no grande edifício colectivo para mostrar a fragilidade das suas fundações161, permitindo que a dúvida se instale. Assim, nem o voluntarismo nem a autoridade arbitrária funcionam e também neste caso a dúvida acaba por afectar o próprio método.

Há, no entanto, um terceiro método que parece superar as desvantagens dos anteriores, na medida em que usa o critério daquilo que é agradável à razão, e não a pura autoridade, sem se circunscrever à razão individual mas admitindo que os

158“C.P.5.378. Mesmo nesta versão empírica, repara-se já na importância da dimensão

comunitária ou intersubjectiva na validação ou invalidação das opiniões individuais; este é um tema que retoma a explicação genética do eu apresentada nos textos de 1868.

159

C.P.5.380

160

C.P.5.380

161

cf. Também C.P. 5.386 onde, a propósito das vantagens do método de autoridade, há considerações acerca das massas e do conformisimo.

homens desenvolvam gradualmente as suas crenças “conversando em conjunto e considerando as questões em diferentes perspectivas”162

. A este Peirce chama método a priori e diz que, ainda que superior aos anteriores, na medida em que impõe constrangimentos normativos à fixação de crenças como a coerência ou a consistência, torna o inquérito semelhante ao desenvolvimento do gosto. E, como tal, falha, como os outros falharam, devido ao seu inevitável relativismo. Chegará um momento de dúvida acerca da determinação das crenças alcançadas por este método : “Para satisfazer as nossas dúvidas, então, é necessário encontrar um método através do qual as nossas crenças possam ser determinadas não por algo humano, mas antes por uma permanência externa – por algo sobre o qual o nosso pensamento não tenha qualquer efeito.”163

O que significa dizer que o critério intersubjectivo não é suficiente, dado que ele arrisca revestir um carácter meramente contingente, convencional, nominalista. E, tal como os outros, não apresenta garantias de estabilidade no longo prazo. A insuficiência destes três primeiros métodos terá a ver com aquilo que é, afinal, comum a todos eles: a relevância dada, na relação cognitiva, ao pólo subjectivo, seja individual, seja colectivamente. E aquilo que, precisamente, é distintivo do método científico, é um apelo ao realismo: a garantia da estabilidade de uma crença está na sua coincidência com uma realidade externa acessível ao conhecimento humano sob a forma de leis, de tal modo que “a conclusão final de cada homem será a mesma.”164

.

162

C.P.5.382.

163

“To satisfy our doubts, therefore, it is necessary that a method should be found by which our beliefs may be determined by nothing human, but by some external permanency - by something upon which our thinking has no effect.” (C.P.5.384)

164

A defesa da superioridade do método científico começa, então, com a afirmação da sua “hipótese fundamental”: “Há Coisas Reais, cujas características são totalmente independentes das nossas opiniões acerca delas; esses Reais afectam os nossos sentidos segundo leis regulares e, embora as nossas sensações sejam tão diferentes quanto as nossas relações com os objectos, tirando partido das leis da percepção podemos determinar através do raciocínio como as coisas são real e verdadeiramente; e qualquer homem, se tiver suficiente experiência e se raciocinar suficientemente acerca dela, será conduzido à única conclusão Verdadeira. A nova concepção aqui envolvida é a de Realidade.”165

Esta é uma hipótese que permite dar conta de um constrangimento externo sobre as nossas crenças que as torna resistentes à dúvida instalada pelo “impulso social” e manifesta no inevitável relativismo e impasse a que conduzem os três primeiros métodos. O facto de Peirce começar a sua defesa do método da ciência com uma hipótese é significativo: ele não poderia começar com afirmações absolutas ou fundamentos últimos dada a sua rejeição da possibilidade destes nos textos de 1868 que se mantém na sua descrição do inquérito como passagem da dúvida à crença. Assim, a hipótese é o ponto de partida provisório e testável que, segundo Peirce, dá conta do nosso estado cognitivo actual e constitui a única possibilidade de começar e prosseguir o inquérito, isto é, de superar o impasse céptico a que as posições fundacionalistas conduzem. Como sugere Anderson, “O projecto de Peirce não é provar demonstrativamente que o raciocínio sintético é

165

“There are Real Things, whose characters are entirely independent of our opinions about them; those Reals affect our senses according to regular laws, and, though our sensations are as different as are our relations to the objects, yet, by taking advantage of the laws of perception, we can ascertain by reasoning how things really and truly are; and any man, if he

válido, mas sim mostrar como poderia funcionar se fosse considerado efectivo”166

. A resposta que Peirce dá a uma objecção possível de que se apercebe, a da circularidade implicada no uso de uma ontologia para fundar uma epistemologia – fazer depender a validade do método científico da hipótese da realidade – é esclarecedora deste procedimento falibilista, daquilo a que o mesmo Anderson chama uma “abdução transcendental”167

em curso neste texto. Peirce não opta por identificar um fundamento, estabelecendo a partir daí uma cadeia dedutiva necessária. Antes fornece um conjunto de razões, à primeira vista heteróclitas, mas que decorrem daquilo que insistentemente é afirmado acerca da actividade cognitiva: esta não começa a partir do zero ou no vazio; é um processo em que, do conhecimento disponível, passamos para conhecimento novo; e um exame dos factos acerca deste processo é o que nos permite colocar a própria questão da sua possibilidade e avançar com uma hipótese explicativa.

Peirce divide a sua resposta em quatro momentos : em primeiro lugar, “se a investigação não pode ser considerada como capaz de provar que há coisas Reais, pelo menos não conduz à conclusão contrária.”168

; isto é, o método e a sua hipótese não se põem necessariamente a si próprios em causa. “Nenhumas dúvidas acerca do método, então, surgem necessariamente da sua prática, como acontece com todos os outros.”169

Isto esclarece-se com a segunda razão, que tem a ver com a própria natureza da dúvida. O sentimento de insatisfação associado a esta é, exactamente, have sufficient experience and he reason enough about it, will be led to the one True conclusion. The new conception here involved is that of Reality.” (C.P.5.384).

166

Anderson, D., Strands of System, Indiana, Purdue University Press, 1995, p.109.

167

id., p.112.

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consistente com a hipótese que suporta o método científico, segundo a qual existem coisas reais. Isto porque a insatisfação que motiva qualquer inquérito , quando uma crença é desafiada por uma crença concorrente incompatível, contém uma “ vaga concessão de que há uma coisa individual que a proposição deve representar”170

. Enquanto que os outros métodos criam um impasse na medida em que a dúvida os atinge também, esta hipótese e o método sustentado por ela mantêm-se pelo simples facto de existir dúvida: a hipótese da realidade é mesmo a condição da própria dúvida. “Esta é, pois, uma hipótese que qualquer mente admite”171

e o impulso social não a põe em causa. Este ponto é reforçado pela terceira razão avançada: “toda a gente usa o método científico a propósito de muitas coisas”172

. E, finalmente, uma razão pragmática, ligada aos efeitos do método, é apresentada: “a investigação científica teve os mais espantosos triunfos no que diz respeito ao estabelecimento das opiniões.”173

Estas são, para Peirce, as razões para que não haja qualquer “dúvida viva” acerca do método ou da hipótese que o sustenta – e sem uma “dúvida viva” estamos num estado de “indubitabilidade prática” que nos permite prosseguir, até ao momento em que uma “dúvida viva” se instale.

Para além desta primeira superioridade, a sua isenção em relação à dúvida, o método científico distingue-se ainda por ser o único com carácter normativo : “este é o único dos quatro métodos que fornece uma distinção entre o certo e o errado”174

e é assim o único que leva a sério a questão lógica, a questão da validade, e para o qual o 169 C.P.5.384. 170 C.P.5.384. 171 C.P.5.384. 172 C.P.5.384. 173 C.P.5.384.

critério não é uma estrita eficácia prática ou a satisfação subjectiva, mas a verdade. Para o método da tenacidade, tudo é necessário desde que afirmado como tal. O método da autoridade tem como único critério “aquilo que o Estado pensa”. No método a priori seguimos as inclinações da razão sem qualquer outro constrangimento. Já com o método científico as exigências são mais elevadas: “o teste para determinar se estou realmente a seguir o método não é um apelo imediato aos meus sentimentos e propósitos, mas, pelo contrário, implica ele próprio a aplicação do método.”175

Esta irrupção no texto da questão da verdade, depois de ter sido descartada como trivial, é, no mínimo, desconcertante. Segundo Skagestad176, estamos perante um abandono tácito da perspectiva psico-biológica inicialmente introduzida por Peirce, onde se tratava de seleccionar o método mais eficaz na fixação da crença; assim, “A Fixação da Crença” conteria simultaneamente “uma história causal, evolucionista acerca da ascensão e queda dos três métodos pré-científicos, e uma história normativa acerca da superioridade do método científico”. Ou seja, Peirce não põe já, a propósito do método científico, a questão da eficácia adaptativa; antes baseia a sua superioridade na capacidade que este método tem de corrigir as suas próprias conclusões aproximando-nos assim gradualmente da verdade. Esta surge já não como o equivalente de uma convicção psicológica, sendo por isso fútil distingui-la do conceito de crença, mas como um ideal normativo do inquérito. A perspectiva 174 C.P.5.385. 175 C.P.5.385. 176

Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981 pp35- 41.

psicológica dá lugar à normativa a partir do momento em que se exige não simplesmente estabilidade, mas estabilidade no longo prazo , o que implica, como diz ainda Skagestad, que “no curto prazo, então, não devemos ter qualquer esperança numa crença estável e devemos estar prontos a aceitar qualquer quantidade de dúvida e incertiza como meios para uma estabilidade de longo prazo.” 177

A superioridade do método científico não é, afinal, adaptativa, mas antes normativa178. E talvez aquilo que o texto pretenda esclarecer, mais do que uma eventual radicação biológica da investigação científica, seja o conteúdo do termo “verdade” : “Ao longo dos seus escritos, Peirce insiste em que nós não podemos especificar o objectivo ds nossos inquéritos simplemente como ‘a verdade’, Em 1877, ele chama a atenção para isto ao afirmar que, com efeito, quando acreditamos em alguma coisa, acreditamos que é verdadeira. O conselho ‘acredita apenas naquilo que penses ser verdadeiro’ é