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Sentimentalismo filosófico: a noção de comunidade no pensamento de C. S. Peirce

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INSTITUTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS UNIVERSIDADE DO MINHO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO FILOSOFIA 2000 SENTIMENTALISMO FILOSÓFICO:

A NOÇÃO DE COMUNIDADE NO PENSAMENTO DE C. S. PEIRCE

(2)

“(...) yet the most balsamic of all the sweets of sweet philosophy is the lesson that personal existence is an illusion and a practical joke (...) the truth that neither selves nor neighbourselves were anything more than vicinities; while the love they would not entertain was the essence of every scent.” (C.P. 4.68, 1893)

(3)

ÍNDICE

INTRODUÇÃO... 5

CAPÍTULO I - A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMUNIDADE : REALISMO, ANTI-PSICOLOGISMO, ANTI-INTUICIONISMO. ... 13

1. INTRODUÇÃO... 13

2.ANTI-INTUICIONISMO: O PENSAMENTO COMO INTERPRETAÇÃO. ... 20

2.1. O PRIMEIRO ARTIGO: “QUESTÕES ACERCA DE CERTAS FACULDADES ATRIBUÍDAS AO HOMEM” (C.P. 5.213-263; W2 .193-211)... 20

2.2. O SEGUNDO ARTIGO: ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO INCAPACIDADES. (C.P.5.264-317; W2.211-242) ... 36

2.3. O TERCEIRO ARTIGO: FUNDAMENTOS DA VALIDADE DAS LEIS DA LÓGICA: OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO INCAPACIDADES (C.P.5.318-357; W2.242-272) ... 48

3. REALISMO: “A EDIÇÃO DE FRASER DAS OBRAS DE GEORGE BERKELEY” (C.P.8.7-38) ... 56

4.CONCLUSÃO ... 61

CAPÍTULO II - A TEORIA DO INQUÉRITO. ... 65

1.INTRODUÇÃO... 65

2. A DIMENSÃO NORMATIVA DO MÉTODO CIENTÍFICO ... 68

3. A MÁXIMA PRAGMÁTICA : REAFIRMAÇÃO DO REALISMO. ... 81

4. OS TRÊS SENTIMENTOS LÓGICOS: FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE. ... 90

(4)

CAPÍTULO III - TEORIA E PRÁTICA, RAZÃO E INSTINTO ... 97

1.INTRODUÇÃO... 97

2.TEORIA E PRÁTICA ... 98

3.UMA TEORIA DO INSTINTO ... 111

4.PEIRCE E HUME :INSTINTO, RAZÃO E HÁBITO. ... 121

5. A TEORIA DA HIPÓTESE ... 133

5.CONCLUSÃO: SENSO COMUM CRÍTICO ... 143

CONCLUSÃO ... 152 BIBLIOGRAFIA ... 158 Primária ... 158 Secundária ... 159 a) artigos ... 159 b) obras... 165

(5)

INTRODUÇÃO

Charles Sanders Peirce é um autor de difícil acesso. Muita desta dificuldade tem a ver com a forma da sua obra, um conjunto vasto, e ainda não totalmente publicado, de artigos, entradas de dicionário, recensões de livros, cartas, planos de obras, versando os mais variados assuntos filosóficos e científicos1. Esta dispersão é, no entanto, o trabalho de um autor que se vê a si próprio como um filósofo sistemático, assumindo a intenção arquitectónica definida por Kant na Crítica da Razão Pura2. Assim, uma outra dificuldade resulta da publicação em oito volumes3 de apenas uma parte desta produção, onde os editores “sistematizaram” os textos de Peirce, dividindo-os, muitas vezes truncando e desmembrando, em tópicos que permitissem visualizar essa intenção sistemática, mas esquecendo a cronologia dos textos4. E esta

1

Para uma articulação entre este carácter da obra de Peirce e a sua biografia, ver Brent, J., Charles Sanders Peirce. A Life, Bloomington, Indiana University Press, 1993.

2

No seu estudo já clássico sobre Peirce, Murray G. Murphey reconstrói quatro diferentes sistemas resultantes da evolução do pensamento de Peirce. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993.

3

The Collected Papers of C.S. Peirce, vols. 1-6, Harsthorne, C. e Weiss, P., eds., Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1931-1935, vols. 7-8, Burks, A., ed., Cambridge Mass, Harvard University Press, 1958. Neste trabalho será adoptada a forma convencional de citação das obras de Peirce: número do volume,ponto, número do parágrafo; ex. C.P.5.278. A tradução das citações é da responsabilidade da autora.

4

Encontra-se em publicação uma edição cronológica dos textos de Peirce, a que será feita referência, e da qual acaba de publicar-se o sexto volume. Writings of Charles S. Peirce, vols.1,2,4 e 5, Kloesel C.J.W. ed., Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, vol.1-1982, vol.2 – 1984, vol.4 –1986, vol.5-1993. Esta edição será citada de forma

(6)

é relevante até porque Peirce é um autor em constante auto-revisão e que, como diz Murphey, “preserva a terminologia e o esboço formal geral das doutrinas mesmo quando o seu conteúdo sofreu uma modificação radical.”5

. Ainda assim, isto é, apesar da consensual dificuldade de acesso, Peirce é um autor a quem se tem atribuído importância tanto em áreas específicas, enquanto promotor de uma teoria semiótica ou de avanços significativos no domínio da lógica, como no quadro geral da filosofia contemporânea, sendo reconhecido não apenas como um dos maiores filósofos americanos6, mas principalmente como o fundador daquele que parece ser o contributo americano original para esta, o pragmatismo7.

O pragmatismo de Peirce caracteriza-se por ter o conhecimento científico no centro das suas preocupações, especificamente no que diz respeito a questões metodológicas. A própria filosofia é exortada a seguir o modelo das ciências, o que nos poderia fazer antecipar um Peirce positivista, reconduzindo todas as áreas do saber humano a uma matriz de racionalidade esvaziada de metafísica. Mas também na sua preocupação com a ciência Peirce exibe a sua influência kantiana; o próprio termo “pragmatismo” tê-lo-á Peirce ido buscar a Kant, que intitula a sua última obra

semelhante à utilizada para os Collected Papers: número do volume, ponto, número da página (já que nesta edição não se verifica uma divisão do texto em parágrafos numerados); ex. W.3.120.

5

Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993, p.3.

6

Cf.Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993. Cf. também Dancy, J. E Sosa,E., eds., A Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell, 1992.

7

O que não impede o neo-pragmático Rorty, que prefere William James, de o ver como um “mau pai”, insuficiente, metafísico. Cf. Rorty, R., Conséquences du Pragmatisme, Paris, Éditions du Seuil, 1993.Para um esclarecimento deste ponto, veja-se a distinção entre pragmatismo revisionista e revolucionário apresentada por Susan Haack em Dancy, J. E Sosa,E., eds., A Companion to Epistemology, Oxford, Blackwell, 1992, pp.351-356.

(7)

Antropologia do Ponto de Vista Pragmático8. Aqui, o termo adjectiva um campo de estudo que visa o carácter orientado para fins do comportamento humano, ou a análise de como se realiza no homem “a apropriação da natureza pela liberdade.”9

Tratar-se-ia de resolver a questão da unidade da filosofia ou de encontrar um ponto de passagem entre a filosofia teórica e a filosofia prática, a filosofia da natureza e a da liberdade10. Este tema da continuidade entre diferentes âmbitos da racionalidade humana permite chamar a atenção para uma outra continuidade, histórica, do pragmatismo americano, o de Peirce em particular, com a tradição filosófica europeia. Os estudos sobre o contexto intelectual do nascimento da pragmatismo testemunham suficientemente essa continuidade11, e ela é tanto mais evidente em Peirce quanto ele foi um estudioso atento das grandes figuras do pensamento filosófico ocidental, dos clássicos gregos aos modernos, passando pelos escolásticos medievais. Assim, se de alguma coisa o pragmatismo não pode ser acusado é de ignorância histórica, ao mesmo tempo que não pode pretender atribuir-se a si próprio uma originalidade nativa absoluta12.

Nesta medida, percebemos melhor a relevância das propostas de Peirce se o virmos como tentando pensar um problema da filosofia moderna, tal como se apresenta em

8

Kant, I., Antropologie du Point de Vue Pragmatique, Flammarion, Paris, 1993.

9

ibid., prefácio p.7

10

ibid. prefácio p.6

11

Cf. Faerna, A.M., Introducción a la Teoria Pragmatista del Conocimiento, Madrid, Siglo XXI, 1996. E também Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993. Ou ainda Fisch, M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press, 1986.

12

Esta inscrição na tradição ocidental é, aliás, explicitamente reconhecida pelos autores pragmatistas, tanto por Peirce, que discute directamente autores dessa tradição, como por William James, que dá o seguinte subtítulo ao seu ensaio Pragmatism : “A new name for

(8)

Descartes, na tradição empirista britânica e em Kant, o problema da relação entre uma concepção de racionalidade que vê o conhecimento autêntico como conhecimento do universal e necessário, e os desafios epistemológicos colocados pela moderna ciência da natureza, que exige justificar a sua relação com a experiência e a sua plausibilidade cognitiva. O fundacionalismo cartesiano torna o empreendimento cognitivo dependente da concepção de uma divindade benévola e deixa como legado problemático a questão da relação entre res cogitans e res extensa. Locke e Hume contestam o racionalismo inatista de Descartes à custa da confiança no alcance da razão humana. A síntese kantiana pretende restaurar essa confiança através da estratégia transcendental, cujo resultado é a partição do mundo em fenoménico e numénico e, estranhamente – já que a intenção era salvar a ideia de objectividade -, a preparação para o assalto relativista à racionalidade. Contra esta “prorrogação” do cepticismo que a filosofia transcendental de certo modo representa, Peirce afirma o seu optimismo gnoseológico e epistemológico transformando a atitude naturalista do empirismo à luz do criticismo kantiano e da sua noção de experiência como resultado de actos interpretativos do sujeito13.

A originalidade de Peirce, e do pragmatismo, consiste em ter cortado com uma concepção representacionalista do conhecimento, deste como uma relação especular

some old ways of thinking”. James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York, 1995.

13

Cf. Faerna, A.M., Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, Madrid, Siglo XXI de Espanã Editores, S.A., 1996. Peirce recusa de Kant o transcendentalismo mas aceita o criticismo.

(9)

entre a mente e o mundo, comum aos autores que vêm sendo mencionados14, e em levar mais longe a actividade do sujeito na relação cognitiva. Ou seja, o conhecimento é visto por Peirce como uma forma de acção e não como contraposto à acção: a teoria é uma prática e, como qualquer prática, realiza-se em função de uma finalidade, envolve uma motivação e escolhe o método mais eficaz para se realizar. Esta perspectiva é tanto mais significativa quanto ela permite pensar uma outra questão moderna: a da relação entre racionalidade teórica e racionalidade prática. Neste campo, mesmo Kant, que tentou superar o racionalismo e o empirismo quanto ao conhecimento, não realiza a síntese entre as duas tradições modernas, o racionalismo e o sentimentalismo empirista, e opta claramente por uma ética racionalista: o Imperativo Categórico é o teste formal de um agente plenamente racional que elimina da sua motivação qualquer referência ao sentimento, ao desejo, ao bem-estar, à felicidade. O sentimentalismo15, por seu lado, recusa à razão e a tudo o que é do âmbito cognitivo o acesso a factos éticos imperativos, e naturaliza a ética radicando a motivação na vontade e na projecção de inclinações passionais, identificando a aprovação moral com emoções e não com juízos. Hume representa esta tradição ao defender no campo da ética uma espécie de “educação sentimental” que nos permita compartilhar ou reprovar determinadas preferências16, não havendo

14

Kant, apesar de introduzir uma perspectiva que atribui ao sujeito uma actividade de interpetação, apresenta-o como transcendental, como sendo uma estrutura racional universal, a priori e definitiva.

15

Nem só o empirismo britânico, no entanto, pode ser inscrito nas hostes sentimentalistas. Curiosamente, outra via traz consigo implicações semelhantes, a via filosofico-teológica que discute o papel da razão em relação à fé. Pascal e a sua aposta representam uma recusa do racionalismo tão veemente como o naturalismo humeano.

16

Encontramos um exemplo desta posição de Hume na seguinte passagem de um dos seus ensaios, sobre as virtudes civilizadoras da literatura : “But perhaps I have gone too far in

(10)

maneira de demonstrar se são racionais ou irracionais. Restringida à descrição daquilo que é, a razão não pode prescrever aquilo que deve ser sem abusar dos seus poderes17. A especificidade de Peirce quanto a este ponto consistirá na preservação das exigências normativas presentes em Kant, sem aceitar o racionalismo deste. Isto consegue-o através da integração de uma dimensão de temporalidade associada ao conceito de evolução.

A importância do tempo manifesta-se num conceito central para a compreensão da epistemologia “finalizada” ou teleológica de Peirce: o conceito de comunidade. Ainda que possa ter começado por ser apenas uma expressão do convencionalismo da sua época, acaba por integrar plenamente a teoria da realidade e da verdade daquele autor, contribuindo para uma redefinição não dualista de racionalidade18. Assim, o primeiro capítulo deste trabalho tenta mostrar o modo como este conceito de comunidade surge para superar uma concepção fundacionalista da actividade cognitiva, intimamente ligada a uma determinada concepção do sujeito gnoseológico e de consequências cépticas. A estratégia moderna iniciada com Descartes coloca, de facto, o cepticismo no centro das questões epistemológicas, ao pôr em causa a

saying that a cultivated taste for the polite arts extinguishes the passions, and renders us indifferent to those objects, which are so fondly pursued by the rest of mankind. On farther reflection, I find, that it rather improves our sensibility for all the tender and agreeable passions; at the same time that it renders the mind incapable of the rougher and more boisterous emotions.

Ingenuas didicisse fideliter artes,

Emollit mores, nec sinit esse feros.”.Hume,D. Essays – Moral, Political and Literary, Indianapolis, Liberty Fund, 1985, p.6.

17

Trata-se do problema conhecido como a falácia naturalista.

18

Isto é, uma superação do golfo entre racionalidade teórica e racionalidade prática pela afirmação da dependência da Lógica em relação à Ética. Esta dependência é normativa, e não deve confundir-se com a questão das relações entre teoria ou investigação e prática ou conduta empírica.

(11)

justificação do conhecimento. É uma estratégia que redunda no naturalismo de Hume, onde a justificação cede o passo à descrição e a epistemologia se torna um capítulo da psicologia; e no transcendentalismo de Kant, que nos deixa com o problema da descontinuidade entre natureza e liberdade e do estatuto cognitivo da metafísica. A resposta de Peirce a Descartes, Hume e Kant consistirá, em grande medida, na alteração do quadro epistemológico individualista comum a estes autores, e na introdução do conceito de comunidade, que permite também pôr em causa o egoísmo como base de uma racionalidade prática naturalizada. Logo, um dos resultados desta alteração será a articulação entre Lógica e Ética, expressa sob a forma de sentimentos exigidos por uma actividade cognitiva válida.

O segundo capítulo deste trabalho aborda a adopção, por Peirce, de um tom biologista na sua descrição da actividade lógica como uma forma de comportamento adaptativo. Mais do que uma concessão ao naturalismo humeano, este ponto de vista exibe uma reflexão sobre o evolucionismo onde se tenta preservar o carácter normativo da investigação. A tentativa de mostrar a superioridade do método científico recupera as teorias da verdade e da realidade desenvolvidas nos textos apresentados no primeiro capítulo, tornando mais claro o estatuto epistemológico do conceito de comunidade e impedindo uma sua interpretação nominalista ou empírica, como manifesta a utilização da máxima pragmática. Para este efeito, concorre a reafirmação do pano de fundo sentimental da lógica, como exercício deliberado de uma razão hipotética orientada para fins.

Finalmente, o terceiro capítulo pretende apresentar o esforço de Peirce para evitar a redução da actividade cognitiva, e das suas motivações, às exigências imediatistas

(12)

da prática, sendo que a recondução da racionalidade à categoria da acção visa antes exibir o seu carácter normativo e não a sua utilidade. Ou ainda, trata-se de esclarecer a ideia de sentimentalismo filosófico afirmada por Peirce, e que parece representar a sua específica integração do evolucionismo como estratégia de justificação da actividade cognitiva, o seu “empirismo normativo”.

(13)

CAPÍTULO I - A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMUNIDADE : REALISMO, ANTI-PSICOLOGISMO, ANTI-INTUICIONISMO.

1. INTRODUÇÃO

Há três temas persistentes e articulados entre si nos escritos de Peirce que envolvem a questão da comunidade, tanto na sua vertente epistemológica, como nas suas implicações éticas. São eles, em primeiro lugar, a opção pelo realismo e consequente crítica das posições nominalistas19. Em segundo lugar, a recusa da redução da lógica à psicologia20, como pretendia o associacionismo empirista e a lógica de Mill. E, finalmente, a posição anti-fundacionalista em epistemologia, 21 que se manifesta na crítica da intuição como faculdade cognitiva privilegiada.

19

cf. Fisch, M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press, 1986, pp.186-200, onde se descreve a progressão de Peirce do nominalismo em direcção ao realismo. Esta progressão ilustra, afinal, o carácter procedimental - que resulta em afirmações substantivas - da filosofia peirceana.

20

Sobre a questão da naturalização cf. Hookway, C., Peirce, London, Routledge, 1985, p.2; e também Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, p.222.

21

Como correcção dos impasses do transcendentalismo kantiano, de que é exemplo a cisão númeno / coisa em si, na superação dos extremismos cépticos ou dogmáticos.

(14)

Quanto ao primeiro tema, podemos dizer que Peirce recupera o debate entre nominalistas e realistas fazendo dele o problema da ciência, da metafísica, da ontologia e da lógica modernas, em suma, o terreno onde se decide a sustentabilidade do edifício do saber humano. Na disputa medieval entre nominalistas e realistas, o que está em causa é o estatuto dos universais, daquelas partes do nosso discurso sobre o mundo que não pretendem referir-se a coisas individuais concretas mas atribuem a estas uma comunidade através da predicação, da inclusão de indivíduos em classes. Trata-se de saber se os géneros e espécies se limitam a ser entidades fabricadas pelo discurso e que usamos para falar mais comodamente acerca da realidade, uma “estenografia conceptual” 22

, sendo que as únicas entidades reais são os indivíduos, ou se, pelo contrário, têm uma existência e podem ser ditos reais, independentemente do nosso discurso acerca deles ; ou ainda, trata-se de determinar se há realmente algo em comum entre duas coisas que partilham o mesmo predicado. Peirce descreve as posições face ao problema da seguinte forma num texto de 186623: “Os realistas acreditavam que existe realmente humanidade no homem, animalidade nos animais e assim por diante; enquanto os nominalistas defendiam que a humanidade, a animalidade e termos semelhantes, são apenas palavras que indicam a aplicabilidade a homens, animais, etc., das suas designações de classe.”24. O problema dos universais é crucial quando se pretende, como é o caso de Peirce, dar conta da actividade cognitiva e, mais especificamente, da sua forma científica. É que

22

James, W., Pragmatism, Dover Publications Inc, New York, 1995, p.22.

23

Trata-se aqui de uma descrição de um momento na história da lógica e não ainda de uma tomada de posição sobre o assunto.

(15)

uma tomada de posição quanto ao conhecimento e à ciência acaba por envolver o estatuto das propriedades e relações que atribuimos às coisas do mundo acerca das quais alegamos ou pretendemos obter conhecimento; isto é, põe a questão de decidir se as categorias com as quais operamos são descobertas e têm realidade ou são de alguma forma inventadas e impostas como estratégias apenas subjectivas, sem realidade para além daquela de uma ficção linguística ou resultado de uma abstracção mental. É, afinal, todo o empreendimento científico que está em causa, ou melhor, as leis que a ciência pretende serem as leis do real são reais ou não? Como evitar que o facto de o conhecimento ser nosso nos faça cair no cepticismo ou então num idealismo de tipo absoluto, de qualquer modo sempre formas do subjectivismo moderno inaugurado por Descartes? Como respeitar a articulação entre a observação do mundo externo e a elaboração de hipóteses explicativas sem reduzir aquele a uma mera construção mental remetendo para uma coisa-em-si inacessível? O nosso pensamento diz ou não respeito a objectos reais? Convicto de que as intenções da ciência são as melhores e os seus resultados fiáveis; tendo estudado intensamente a Crítica da Razão Pura de Kant em busca de uma objectividade para além da subjectividade transcendental; tendo desde os seus primeiros textos de relevo tratado da lógica da ciência, incluindo o problema da indução, que depende de uma tomada de posição quanto à questão dos universais, e das categorias, Peirce acabou por, ao estudar os lógicos medievais, entender que tudo estava em jogo nesta decisão filosófica : nominalismo versus realismo. O autor não irá optar pelo realismo

24

“Realists believed that there is really humanity in man, animality in animals, and so forth; while the Nominalists held that humanity, animality and such terms, are merely words indicating the applicability to men, animals, etc., of their class appelations.” (W1.360)

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extremo de Platão25, que afirma a realidade dos universais ante rem e reduz as nossas percepções de coisas individuais a uma ilusão dos sentidos; mas também recusa o extremo nominalista do flattus voci , que consiste em considerar ilusória a imposição de universalidade levada a cabo pelo nosso conhecimento discursivo. O seu optimismo epistemológico levá-lo-á a considerar a resposta de Duns Escoto, um realismo separado do nominalismo “pela espessura de um cabelo”26

, como a mais aceitável. Segundo Escoto, existe uma “distinção formal” entre a existência individual e a essência universal, que consiste numa distinção mental, como queriam os nominalistas, mas com uma base factual. Assim, os universais são de algum modo reais e não simples abstracções. Não existe apenas uma “distinção lógica” entre indivíduos e classes. Mas também não existe uma “distinção real”, in re , como pretendem os defensores de um realismo extremo. A generalidade que as leis da ciência expressam faz parte da nossa experiência das coisas sob a forma de hábitos ou disposições que compõem o sentido dos predicados.

As teses nominalistas que Peirce irá consistentemente recusar são, assim, que a realidade seja composta exclusivamente por existentes individuais27; que, consequentemente, as leis e termos expressando generalidade consistam simplesmente em ficções intelectuais, por mais úteis que sejam; a consequente

25

Mais do que substâncias, ou predicados essencializados, interessam-lhe relações ou leis: “general principles are really operative in nature” (C.P.5.101). Cf. Almeder, R., The Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.160-183. E também Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993, pp.126ss.

26

C.P.8.12

27

O progressivo realismo de Peirce irá aceitar finalmente a realidade dos indivíduos; numa fase adiantada da sua filosofia, procede a um desenvolvimento da sua categoria da Secondness ligado à noção de haecceitas.

(17)

concepção de uma discrepância fundamental entre o nosso discurso, que emprega termos universais e descreve os “indivíduos” através de leis, e a realidade, com base na oposição entre o individual e o geral e seus diferentes estatutos ontológicos28. O que nos traz ao segundo tema referido no início, o anti-psicologismo quanto à lógica. O nominalismo parece ter como consequência uma naturalização da lógica que consiste em vê-la como uma parte da psicologia, descrevendo o modo como de facto pensamos, isto é, como a partir da experiência do individual criamos aquela ilusão de universalidade e necessidade que caracterizam o discurso, e que nos leva a falar em termos de leis, com estatuto meramente convencional, contingente, subjectivo. Segundo o próprio Peirce29, o século XIX tentou fazer da psicologia a chave para a filosofia, submetendo as questões de validade lógica à factualidade de operações mentais empíricas. Toda a investigação lógica e metodológica em Peirce conduz, pelo contrário, a uma concepção daquela como independente dos sujeitos empíricos e da sua diversidade psicológica : a lógica não é uma descrição do modo como de facto pensamos mas sim a disciplina das regras segundo as quais devemos pensar30, sendo que este nós é normativo também, corresponde àquilo que Peirce designa como “inteligência científica” e não é exclusivo dos humanos e da sua configuração fisiológica, não depende do facto de termos um cérebro31. A visão anti-psicologista da lógica, a sua normatividade, liga-se estreitamente àquele aspecto do

28

De que a distinção kantiana entre fenómeno e númeno será um exemplo e que presume que a cognição é um efeito de uma realidade incognoscível que de algum modo afecta o sujeito.

29 Cf. C.P. 8.167

30

Cf. C.P. 2.7

31

Cf. C.P. 4.550. E cf. Fann,K.T., Peirce’s Theory of Abduction, The Hague, Martinus Nijhoff, 1970, p.38ss, sobre a lógica como ciência normativa.

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pensamento de Peirce que mais o celebrizou, a semiótica. É que a lógica “formalista”

32

opera não com actos e faculdades mentais pressupostos mas com aquilo que é directamente observável: os produtos do pensamento expressos na linguagem, em proposições e argumentos, isto é, com signos e a sua operatividade específica. A opção é, então, pela lógica como teoria geral dos signos e das leis da sua transformação, pelo que o que há a ter em conta, enquanto é a lógica o método subjacente à actividade cognitiva, são os aspectos externalizáveis, partilháveis e susceptíveis de controlo deliberado. A psicologia não é capaz de fornecer a justificação teórica das leis da lógica e qualquer naturalismo neste sentido é recusado por Peirce33.

A posição realista e o estatuto da lógica sustentam-se, finalmente, na recusa de uma pretensão epistemológica comum a racionalistas e empiristas, aquela que diz respeito a uma faculdade de intuição especial permitindo o acesso a um momento inicial, fundador, do processo cognitivo, seja ele a apreensão imediata de ideias ou de dados dos sentidos, funcionando como premissas últimas numa dedução conducente a um conhecimento absolutamente certo. O que equivale a afirmar uma relação imediata, de justificação problemática, entre o sujeito e o mundo, traduzida no

32

cf. C. Hookway, Peirce, London, Routledge, 1985, p.15ss.

33

A falar de naturalismo em Peirce, e penso que em certa medida poderemos fazê-lo, este resulta do empirismo de Peirce, que é um empirismo com uma epistemologia transformada : não fundacionalista, não nominalista, não individualista. Cf. H. Putnam in Peirce, C.S., Reasoning and the Logic of Things, Ketner, K.L., ed., Cambridge, Mass., Harvard University Presss, 1992, p.79, acerca da metafísica revisível de Peirce; cf. também C.J. Dougherty, “C.S. Peirce’s Critique of Psychologism” in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.86-93. Cf. ainda Almeder, R., The Philosophy of Charles S. Peirce, Oxford, Basil Blackwell, 1980; e Ayer, A.J., The Origins of Pragmatism, London, Macmillan, 1968. E também, mais uma vez, Skagestad,P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981, p.222.

(19)

discurso e exterior a ele, autorizando-o, ao mesmo tempo que o torna suspeito na sua função de instância mediadora: a intuição implica uma tomada de posição nominalista na medida em que subordina as generalizações discursivas a uma relação entre indivíduos. Em Peirce, tratar-se-á de levar a sério o carácter mediador do discurso, e assim compreender em que consiste a sua natureza representativa: o pensamento é uma actividade de interpretação de signos e não um receptáculo de materiais heterogéneos; essa actividade é o objecto de estudo da lógica, que se preocupa com as condições da sua validade; pensar consiste, sempre e inevitavelmente, em fazer inferências e pensar correctamente é fazer inferências válidas. Aquilo que Peirce nos fornece, e que começa a ser visto como um contributo pertinente para questões da actual Filosofia da Mente34, é uma nova visão do mental, compatível com uma epistemologia falibilista e com instâncias normativas que preservam as pretensões metafísicas da filosofia sem a dissociar definitivamente da ciência.

O que se fará em seguida é apresentar um conjunto de três textos de Peirce de finais da década de 6035 do século XIX, onde realismo, psicologismo e

34

Cf. E.J. Crombie, “Peirce on our Knowledge of Mind: a Neglected Third Approach” in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp. 77-85; e também Chauviré,C., Peirce et la Signification, Paris, PUF, 1995. E ainda Tiercelin,C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993.

35

Estes textos de 1868 foram publicados no Journal of Speculative Philosophy, a primeira publicação americana regular consagrada a questões técnicas da filosofia. Segundo Max Fisch, num artigo intitulado “Peirce’s progress from nominalism to realism” e já referido, constituem o primeiro passo de Peirce em direcção ao realismo, a partir de uma posição anterior declaradamente nominalista, cuja afirmação terá levado o realista e hegeliano W.T. Harris, editor da revista, a desafiar Peirce a explicar a validade das leis da lógica. Fisch,M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press, 1986, pp.186-200.

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intuicionismo conduzem a um quadro epistemológico de onde se destaca a noção de comunidade. Faz todo o sentido ver estes três artigos como um tríptico onde, para enfrentar a questão da possibilidade do conhecimento, Peirce propõe uma concepção da mente e da realidade em alternativa àquilo a que chama o “espírito do cartesianismo”36

. Assim, o tratamento da questão da validade das leis da lógica e, especificamente, o problema da indução, é preparado pela crítica da intuição levada a cabo no primeiro artigo, e pelo desenvolvimento da concepção da actividade mental vista como inferência levado a cabo no segundo, acompanhado por uma redefinição da concepção de realidade. O resultado destes três artigos contém a afirmação da comunidade como essencial para o processo cognitivo e estabelece a dependência da lógica em relação à ética.

2.ANTI-INTUICIONISMO: O PENSAMENTO COMO INTERPRETAÇÃO.

2.1. O PRIMEIRO ARTIGO: “QUESTÕES ACERCA DE CERTAS FACULDADES ATRIBUÍDAS AO HOMEM” (C.P. 5.213-263; W2 .193-211)37

Vários autores38 têm chamado a atenção para a forma escolástica deste texto: são definidas sete questões e apresentados argumentos positivos e negativos quanto a

36

C.P. 5.264.

37

Este texto, cujo título no original inglês é “Questions Concerning certain Faculties claimed for Man”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla: QFM.

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cada uma delas. Não será certamente apenas uma curiosidade estilística esta adopção de um esquema argumentativo que parte de um exame de respostas disponíveis para uma questão e não de uma suspensão do juízo típica da metodologia cartesiana. Ela indica desde logo que é com estes materiais - razões, argumentos, provas, crenças, hipóteses - que a razão lida; e que, assim, a hipótese cartesiana é uma entre outras e tem que ser provada - e que é e que tem de ser este o seu ponto de partida. Esta é aliás uma prática cuja enunciação clara e justificação serão objecto do artigo seguinte. Assim, à questão genérica “como funciona a mente?”, Peirce responde subdividindo-a em sete questões acerca de “faculdades atribuídas ao homem”, isto é, definindo problemas manejáveis face aos factos e teorias disponíveis, e seguindo como preceito metodológico a Navalha de Ockham. No caso presente, trata-se de determinar a admissibilidade de cada hipótese colocada a propósito de cada questão, com base na sua pertinência e necessidade explicativa: se os factos podem ser explicados sem recurso a uma dada hipótese e se esta até aumenta a obscuridade de uma questão postulando entidades ou capacidades misteriosas, então não precisamos dessa hipótese, ela não serve o seu propósito explicativo - não explica e aumenta o número de coisas a explicar - e acaba por remeter para uma qualquer inexplicabilidade : um apriorismo, um fundamento axiomático, uma autoridade, um limite à possibilidade de inquérito.

38

Cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993. Cf. também Skagestad, P., The Road of Inquiry, New York, Columbia University Press, 1981.

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A primeira das sete questões, ou a primeira hipótese a verificar, diz respeito a uma faculdade fundamental no quadro da psicologia e da epistemologia cartesianas39: trata-se de saber se, perante a hipótese de uma faculdade intuitiva, somos capazes de reconhecer intuitivamente que uma dada cognição é uma intuição, isto é, um conhecimento não mediado por uma cognição prévia. A forma como a questão é colocada é significativa. Ela revela o ponto de vista de Peirce quanto ao funcionamento mental afastando-o de uma problemática simplesmente psicológica e aproximando-o de uma outra, lógica e epistemológica. Assim, a questão é formulada em termos cognitivos: “Se, pela simples contemplação de uma cognição, indepedentemente de qualquer conhecimento anterior e sem raciocínio a partir de signos, nos é possível ajuizar correctamente se tal cognição foi determinada por uma cognição prévia ou se se refere imediatamente ao seu objecto.”40

. A intuição é definida como “ uma cognição não determinda por uma cognição prévia do mesmo objecto e, consequntemente, determinada por algo exterior à consciência” ou ainda, “uma premissa que não é, ela própria, uma conclusão”41

. Trata-se, então, de saber que tipo de relação existe entre mente e mundo e à qual damos o nome de

39

Mas não só. Como já tem sido referido, tanto a tradição racionalista como a tradição empirista modernas são aqui postas em causa. Segundo Murphey, muitos dos escritos de Peirce deste período podem ser vistos como respostas directas a Hume e a todo o empirismo britânico, que afinal partilha com o racionalismo uma concepção do mental e uma concepção de realidade cf. Murphey, M.G., The Development of Peirce’s Philosophy, Cambridge, Hackett, 1993. Também Hookway,C., Peirce, London, Routledge, 1992.

40

“Whether by the simple contemplation of a cognition, independently of any previous knowledge and without reasoning from signs, we are enabled rightly to judge whether that cognition has been determined by a previous cognition or whether it refers immediately to its object.” C.P. 5.213; W 2.193.

41“a cognition not determined by a previous cognition of the same object, and therefore so

determined by something out of consciousness”; “a premiss not itself a conclusion” (C.P. 5.213; W 2.193).

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conhecimento, ou qual o fundamento das nossas representações. Como diz Claudine Tiercelin, “aquí, e menos a intuição como faculdade que está em causa, que a pretensa necessidade de recorrer a ela para fundar a ciência.”42 Ou seja, racionalistas e empiristas reclamam uma faculdade fundadora, a intuição, postulando a necessidade de um momento da cadeia cognitiva em que há um contacto imediato com o objecto da cognição e onde uma operação cognitiva especial, não discursiva, não da natureza de um argumento, fornece o ponto de apoio da discursividade, seja ele uma ideia da razão ou os dados dos sentidos.43 A questão começa então , reflexivamente, por ser aquela que diz respeito à própria possibilidade de determinar o carácter intuitivo de uma intuição. Isto é, trata-se de saber se o tipo de determinação de uma cognição, imediatamente por um “objecto transcendental” (intuição) ou mediatamente por uma outra cognição (conhecimento discursivo ou inferência) é dado também na ou faz parte da cognição em causa, se estão invariavelmente ligadas e são dissociáveis apenas no pensamento, de modo a podermos sempre distinguir uma intuição de uma não-intuição. Se for o caso que o tipo de determinação faz parte da cognição, então estaremos perante uma faculdade ou poder intuitivo de distinguir uma intuição de outra cognição e fica provada a

42

Tiercelin, C., La Pensée-Signe, Nîmes, Éditions Jacqueline Chambon, 1993, p.13.

43

J. Chenu faz notar que há um sentido, a que podemos chamar fenomenológico, da capacidade de intuição que Peirce aceita, como se pode ver no parágrafo seguinte,: “Every cognition, as something present, is, of course, an intuition of itself.” (C.P. 5.214; W2.194) Assim, os dois sentidos em que se pode compreender a capacidade de intuição e que estão presentes na filosofia escolástica, em Sto Anselmo por exemplo, estariam também presentes em Peirce.cf. também C.P.5.213 n1. Peirce, Textes Anti-Cartésiens, trad. e int. Joseph Chenu, Paris, Aubier, 1984, pp.92-93.

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hipótese de uma faculdade intuitiva ou de um contacto imediato como base do nosso conhecimento dos “objectos transcendentais”.

Que provas temos então desta faculdade ? Qual a evidência da intuição? “Parece que sentimos tê-la.”44. Mas recorrer ao testemunho de uma sensação ou sentimento é circular ou remete até para uma regressão infinita: “será este sentimento infalível? E será este juízo acerca dela infalível, e assim por diante, ad infinitum?”45. Se este sentimento, esta “fé”, fosse tudo o que é necessário, qualquer investigação do que quer que fosse - enquanto é uma busca de provas - seria desnecessária. Um homem completamente satisfeito com os seus “sentimentos” seria “impermeável à verdade” e à prova de prova46. Aliás, esta sensação ou convicção individual é desmentida tanto pela história como pela psicologia. Aquilo que uma observação do nosso passado intelectual nos mostra é uma enorme dissensão quanto ao que é considerado intuitivo, e até quanto a qual possa ser a fonte de autoridade da intuição. E o que nos impede de esperar uma denúncia da autoridade moderna - a consciência individual cartesiana - semelhante à que derrubou a autoridade medieval - os textos de certos autores? “E se a nossa autoridade interna tivesse o mesmo destino, na história das opiniões, que aquela autoridade externa?”47

. E da psicologia Peirce apresenta exemplos que permitem colocar genuinamente em dúvida o carácter intuitivo de

44 C.P.5.214 ; W2.194. 45 C.P. 5.214; W2 p.194. 46

Este é um tema importante e que será retomada em pleno no texto de 1878 “The Fixation of Belief” (C.P.5.358-387 ; W3.242-257).

47

“Now what if our internal authority should meet the same fate, in the history of opinions, as that external authority has met ?” (C.P. 5.215; W2 p.195) A questão da autoridade, tal como é tratada aqui, antecipa a questão da comunidade : esta, mais do que uma autoridade absoluta, deve colaborar com o outro requisito do método científico, a verificação experimental.

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qualquer cognição, contra todos os “sentimentos” individuais. Ou, se quisermos, aquilo que suscita dúvidas segundo Peirce é aquilo que resiste à dúvida segundo Descartes. O testemunho das pessoas em situações complexas mostra que é difícil distinguir o que se viu daquilo que se inferiu : “a nossa única garantia, em casos difíceis, está em alguns signos dos quais podemos inferir que um dado facto deve ter sido visto ou deve ter sido inferido”48

. Isto é, é a própria possibilidade da ilusão (o exemplo envolve as nossas percepções de truques de magia) e do erro que está em causa e que mostra a dificuldade em admitir uma faculdade intuitiva. O caso dos sonhos adensa esta dificuldade: a nossa recolecção deles é simultaneamente uma recomposição. Os sonhos, aliás, parecem fornecer o exemplo da distinção entre o que é e o que não é determinado por cognições prévias, distinguindo-se assim da experiência. Mas as diferenças entre sonhos e experiências reais não são decisivas, são quando muito uma questão de grau, mas não, como parece ser o caso para Hume49, de tal modo determinadas que permitam uma identificação inequívoca, e “é frequente acontecer que um sonho é tão nítido que a memória dele é confundida com a memória de um acontecimento real.”50

. As crianças, cujos poderes perceptivos são os mesmos de um adulto, e que poderiam permitir uma avaliação mais “pura” das nossas faculdades mentais, são também incapazes de distinguir entre intuições e cognições determinadas por outras cognições. Mesmo no domínio de experiências mais simples, como é o caso da percepção, não somos capazes de proceder com

48

“(…)our only security in difficult cases is in some signs from which we can infer that a given fact must have been seen or must have been inferred.” (C.P. 5.216; W2 p.196)

49

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facilidade a uma distinção, como terá ficado demonstrado por Berkeley a propósito da terceira dimensão do espaço, cuja percepção resulta de uma inferência e não é intuitiva : “Tínhamos estado a contemplar o objecto desde a criação do homem, mas esta descoberta só foi feita quando começámos a raciocinar sobre ele.”51

A percepção é um processo de interpretação que envolve uma série de inferências inconscientes que permitem preencher descontinuidades empíricas do dado, como é exemplificado no texto pelo caso do ponto cego da retina. Começa a desenhar-se o cerne da substituição peirceana do quadro mental cartesiano: da contemplação, relação estática entre dois pólos, para o raciocínio, que é um tipo de acção que permite uma abordagem do mental em termos de operações - e não de faculdades, receptivas ou não; como um processo e não como uma substância exigindo metáforas espaciais, lugares onde diferentes coisas acontecem. E repare-se também que este exemplo fortalece ou insiste na insuficiência do sentimento subjectivo, desmontável quando começamos a pensar racionalmente, e de qualquer autoridade histórica momentânea.52

50

“(…)not unfrequently a dream is so vivid that the memory of it is mistaken for the memory of an actual occurrence.” (C.P. 5.217; W2 p.196)

51

“We had been contemplating the object since the very creation of man, but this discovery was not made until we began to reason about it.” (C.P. 5.219; W2 p.197).

52

Este é, aliás, um tema central na teoria da verdade de Peirce : o seu carácter complexo combina as concepções de verdade como adequação e verdade como coerência ao erigir como critérios a experiência e o consenso comunitário. Cf H.S. Thayer , “Peirce on Truth” in Caws, P., ed., Two Centuries of Philosophy in America, Oxford, Basil Blackwell, 1980, pp.63-76. O apelo ao sentimento em Peirce nunca cai no individualismo, no subjectivismo ou no irracionalismo, porque o sentimento é controlável/criticável pela razão; e porque é uma característica da espécie e não do indivíduo : é nisto que consiste o Senso-Comum Crítico que Peirce irá enunciar mais tarde.

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A própria fisiologia da percepção e a análise das sensações fornecem razões para duvidar de uma faculdade de intuição, isto é, não a exigem como hipótese explicativa. Temos então “uma variedade de factos, os quais podemos expedientemente explicar com base na suposição segundo a qual não temos qualquer faculdade intuitiva de distinguir entre cognições intuitivas e mediatas.”; e há, assim, “razões fortes para não acreditar na existência desta faculdade”53

. Se retirarmos as consequências disto, teremos ainda mais fortes razões para recusar uma tal faculdade54.

Será que pelo menos a experiência “interna” nos fornece provas a favor da intuição? A segunda das sete questões postas neste texto investiga a possibilidade de uma auto-consciência intuitiva, isto é, pretende saber se tomamos conhecimento de nós próprios através de uma intuição, imediatamente, e não em resultado de uma inferência a partir de cognições prévias; sendo que essa consciência é a auto-consciência privada de cada um e não o eu abstracto (o sujeito epistemológico ou a síntese kantiana da apercepção). Ou ainda, como é que eu sei que eu - o meu eu - existo ? Terei acesso imediato ao meu eu privado? A resposta, negativa, à questão anterior, deixou-nos com a impossibilidade de distinguir intuitivamente uma intuição de outra cognição. Logo, não é de todo evidente que tenhamos acesso intuitivo à auto-consciência: isto tem que ser determinado a partir de provas. Conseguimos

53

C.P.5.224; W2.200.

54

Repare-se que este é o procedimento hipotético-dedutivo-indutivo que, para Peirce, equivale ao funcionamento mental e, simultaneamente, à metodologia da investigação científica e se “resume” na máxima pragmática formulada mais tarde (no artigo “How to Make Our Ideas Clear”, “Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (C.P.5.388-410; W3.257-276): trata-se retirar consequências de uma hipótese para saber o que significa - isto é, determinar a sua validade enquanto hipótese.

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provar ou demonstrar o conhecimento do eu privado sem recurso à hipótese de uma faculdade de intuição especial? Peirce escolhe aquilo a que podemos chamar uma via genética para explicar a tomada de consciência do eu próprio, ou a forma como chegamos a saber que somos um eu55. A auto-consciência parece desde logo ser posterior ao “poder de pensamento”, como atesta a utilização tardia da palavra “eu” nas crianças, e o facto destas pensarem “objectivamente”, isto é, as experiências são tratadas não em termos de faculdades do sujeito (“eu ouço um som”), mas antes em termos de comportamento e atributos dos objectos (“o sino toca”). A relação entre a criança e os objectos exteriores é mediada pelo corpo e não por uma auto-consciência; os estados de consciência são indistintos das disposições “objectivas” dos corpos externos e do corpo próprio. Mesmo a aprendizagem da linguagem é um processo exteriorizado: vai-se estabelecendo uma conexão habitual entre sons e factos - através de experiências, copiando o que se verifica na observação - wittgensteineanamente e contra a versão augustiniana da linguagem como “rotulagem”, os contextos de aprendizagem, o uso, o “treino” explicam a aquisição da linguagem sem dar lugar a significados misteriosos ou entidades e causas mentais subjacentes às palavras. Assim, invertendo a posição cartesiana, o eu próprio é um produto do pensamento, não é prioritário em relação a este e não serve, pois, como instância de confirmação ou autoridade. Há que apresentar outras instâncias de validação.

A aquisição da linguagem permite a descoberta do testemunho dos outros como fonte dos factos, mais forte do que os próprios factos, ou antes, do que o testemunho

55

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individual do próprio: a experiência própria confirma a experiência dos outros criando expectativas credíveis quanto a esta - e cria também a consciência de que a experiência própria é insuficiente, incompleta ou falsa : “Assim, ele toma consciência da ignorância, e é necessário supor um eu próprio a que esta ignorãncia possa pertencer”56

; isto é, faz-se um juízo de atribuição perante uma característica do mundo que se experimentou - mas, primeiro “está” o mundo e os outros, só depois o eu. A possibilidade do erro, da discrepância entre a expectativa própria e o testemunho dos outros, sugere a necessidade de uma hipótese quanto à existência de um eu que é falível - é necessária para a explicação do erro, de uma anomalia observada. O eu não é o resultado de uma intuição, um dado ou uma substância captável por si própria, mas sim uma hipótese, uma teoria com fins explicativos. Esta génese do eu próprio, externalista e inferencial, põe por terra o acesso intuitivo representado pelo cogito ergo sum cartesiano - aquilo que resta quando todo o exterior é suspenso pela dúvida metódica. Também a auto-consciência intuitiva não encontra plausibilidade : pode facilmente ser o resultado de uma inferência, o que introduz na concepção do eu uma dimensão de temporalidade, evolucionista, capaz de melhoramento; e semiótica, em constante actividade de interpretação.

Será que pelo menos temos acesso intuitivo aos elementos subjectivos dos diferentes tipos de cognição? Será que a intuição do elemento subjectivo (aquilo a que hoje se chama atitudes proposicionais - o carácter de uma cognição: crença, desejo, sonho, imaginação, concepção, etc.) de uma cognição acompanha cada

56

“Thus he becomes aware of ignorance, and it is necessary to suppose a self in which this ignorance can inhere.” (C.P. 5.233; W2 .202)

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cognição e é dado imediatamente, conhecido intuitivamente ? Não temos que fazer qualquer inferência para saber de que tipo de cognição se trata? Parece que se não tivessemos este poder de discriminar intuitivamente os elementos subjectivos das cognições, nunca conseguiriamos distinguir entre ver e imaginar, entre aquilo que sonhamos e aquilo que realmente experimentamos, entre uma crença e uma concepção. Mas, mais uma vez, será que precisamos da hipótese de uma faculdade especial para chegar a fazer todas estas distinções? A diferença entre modos de consciência respeitantes à actividade dos sentidos e da imaginação é inferida a partir da diferença entre os objectos imediatos da consciência, assim como a crença se distingue da concepção seja pelo sentimento de convicção que acompanha a primeira e não a segunda, seja pela observação de factos externos, do comportamento de quem acredita, isto de acordo com a definição de crença que Peirce recebe e aceita de Alexander Bain : a crença é uma disposição para agir, a crença afecta visivelmente o comportamento, é um “juízo com base no qual um indivíduo irá agir”57. É, de qualquer modo, sempre suficiente uma explicação inferencial dessa distinção, sem necessidade de postular faculdades adicionais ou formas especiais de intuição. O funcionamento da mente é sempre o mesmo: a inferência.

Da negação da possibilidade de reconhecer intuitivamente, em geral, uma intuição, na resposta à primeira questão, seguiu-se a negação de intuições particulares: do eu e de elementos subjectivos da cognição.

Se até agora se tratou de mostrar que não existe um procedimento mental privilegiado mas que encontramos sempre raciocínio onde acreditávamos ou

57

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sentíamos haver contacto directo com a realidade, trata-se agora, na quarta questão, de saber se a distinção entre o conhecimento que temos do chamado mundo interior e do mundo exterior é logica e epistemologicamente relevante, isto é, se há uma metodologia privilegiada, um modo de acesso diferente ao mental e aos seus fenómenos, se temos um poder de introspecção.

Como no caso das questões anteriores, Peirce começa por avaliar a resposta afirmativa: parece que a introspecção é possível e adequada ao conhecimento dos “fenómenos mentais” ou dos “factos internos”, isto é, da psique entendida como uma res separada. Ainda que não intuídos, parecem estar num determinado lugar - o teatro cartesiano, segundo a expressão do filósofo americano Daniel Dennett - que não necessita de excursos pelo exterior para ser conhecido. As emoções, por exemplo, parecem dizer respeito apenas à mente, e fornecer um ponto de partida para um conhecimento acerca dela independente de qualquer referência a coisas exteriores. O apelo à intuição, já foi visto, não serve para justificar ou demonstrar a existência deste “modo de consciência”. Logo, a única forma de proceder a uma demonstração será, como até aqui, verificando se os factos - o nosso conhecimento de uma emoção, de um “facto mental” como contraposto a um “facto físico” - podem ou não ser explicados sem a sua postulação. Ora, aquilo que a reflexão mostra é que as emoções são predicações e que quando um homem diz “estou zangado”, isto é a consequência de uma circunstância em que algo num objecto determina esse estado emocional e é assim um equivalente de “esta coisa é vil, abominável, etc.”. “Qualquer emoção é

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uma predicação acerca de algum objecto(...)”58. Também a volição, “o sentido do

querer”, pode ser explicada sem recurso a uma faculdade misteriosa de introspecção, isto é, pode ser inferida a partir do conhecimento de factos externos. Assim, mais do que “voltado para dentro”, o eu orienta-se para o exterior e é nesta interacção que surgem e fazem sentido os seus “estados” : exprimem relações com referentes externos. A intencionalidade, e não uma qualquer substancialidade, é a característica específica dos “factos mentais”. Deste modo, não há métodos psicológicos distintos, excepcionais: “A única maneira de investigar uma questão psicológica é através de uma inferência a partir de factos externos.”59

).

A quinta questão é a seguinte: podemos pensar sem signos ? Ou seja, haverá uma causa mental “interna” suposta sob a exteriorização dela numa linguagem ? Aqueles que pretendem responder afirmativamente dizem simplesmente que o pensamento deve preceder qualquer signo, que este é apenas o revestimento público de um pensamento privado a-linguístico, completamente mental. Não existindo um poder de introspecção, temos que proceder a uma argumentação a partir de factos externos, e estes só nos mostram pensamento em signos: uma vez que todo o pensamento é mediação, como foi estabelecido na resposta à primeira questão, qualquer pensamento dado é, por definição, uma interpretação de um pensamento anterior, ou qualquer premissa é uma conclusão a partir de premissas prévias. “O único

58

C.P. 5.247; W2.206. Também a este propósito, Peirce inverte Hume: para este, juízos qualitativos são projecções emocionais; para Peirce, as emoções são inferências.

59

C.P. 5.249; W2.207. Repare-se na importância deste aspecto para a recusa da psicologizacão da lógica: estudar uma questão psicológica exige fazer inferências; a lógica estuda as inferências e a sua forma correcta ou a sua validade; logo, a psicologia como ciência especial depende da lógica como ciência dos métodos.

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pensamento que pode, então, ser conhecido, é pensamento em signos”60. O facto de não explicitarmos completamente todos os passos de um raciocínio quando o expressamos não significa que algum passo misterioso e não exteriorizável - isto é, uma causa mental que não é um signo mas que é significada por ele - tenha ocorrido, mas apenas que há falta de distinção.

O facto de todo o pensamento ter o carácter de um signo implica que todo o pensamento determina um outro, o que equivale a dizer que o pensamento não é um acto instantâneo mas um fluxo contínuo de signos que determinam outros signos, ou seja, tem uma dimensão temporal. É precisamente esta característica que conduz a uma concepção do conhecimento como uma actividade falível, um processo sem garantias absolutas fornecidas por um fundamento intuitivo.

Quanto aos signos, e esta será a questão número seis, podem eles ter algum significado se, por definição, forem signos de algo absolutamente incognoscível? Ou seja, há alguma realidade que o eu possa não vir a conhecer de algum modo, que seja absolutamente inacessível ao conhecimento?61 Mais uma vez, Peirce começa pela resposta afirmativa : as proposições universais e as proposições hipotéticas, uma vez que se referem àquilo que está fora da experiência presente ou possível, parecem

60

C.P.5.251; W2.207.

61

Esta questão é central na medida em que se trata aqui de não abdicar de uma posição realista, e assim cair no nominalismo, pelo facto de termos como hipótese explicativa da acção mental o seu carácter inferencial, ou seja, semiótico. A linguagem não torna o conhecimento numa questão de convenção, não é um filtro entre o sujeito e uma realidade finalmente inacessível. Peirce tem aqui que demarcar-se da tradição nominalista, tanto mais quanto esta dá uma grande importância à linguagem como é exemplo o caso de Locke, que terá até sido o primeiro a usar o termo semiose.

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significar objectos incognoscíveis62. Subjacente à resposta de Peirce está, segundo Corrington63, a opção por um idealismo objectivo e a consequente crença de que o mundo é real e é parte de alguma experiência : “A cognoscibilidade e o ser são não apenas metafisicamente o mesmo, mas são termos sinónimos.”64. Ser é ser objecto de alguma experiência. Para estabelecer isto, a estratégia de Peirce consiste em mostrar que a ideia de incognoscível é auto-contraditória65 e que o prefixo de negação é sincategoremático. Assim, até estruturas infinitas são de alguma forma cognoscíveis, experienciáveis, não directa e plenamente mas através de indução, isto é, inferencialmente. As proposições universais e hipotéticas são cognoscíveis, ainda que indirectamente. Mas isto é, afinal, o que caracteriza o processo de conhecimento, dada a implausibilidade da intuição: ele é sempre um acto de mediação66. Também Esposito vê nestes artigos a confirmação do idealismo de Peirce, que é consequência da rejeição do fundacionalismo cartesiano67 e que permite esclarecer a relação entre inferência probabilística e realidade, ou seja, a questão da validade das leis da lógica ou da possibilidade do conhecimento sintético.

62

Poderia, a este propósito, pôr-se a questão do saber se as condições de possibilidade do conhecimento podem, pors ua vez, ser conhecidas, visto serem os limites da actividade cognitiva. De alguma forma, a teoria social da lógica e o sentimentalismo como condição de possibilidade da lógica, que serão abordados neste trabalho, aparecerão como resposta a este paradoxo: recusa do incognoscível/ conhecer condições de possibilidade.

63

Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce - Philosopher, Semiotician and Ecstatic Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers, inc., 1993,p.83.

64

C.P. 5. 257; W2.208.

65

cf. C.P.5.257

66

cf. C.P.5.284: o pensamento é isomorfo do tempo na medida em que é um processo contínuo e um processo de crescimento. Cf. Esposito,J.L., Evolutionary Metaphysics, Athens Ohio, Ohio University Press, 1980, p.119.

67

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A sétima e última questão pode ser vista como o fechamento de um círculo. É que se o texto começa com uma questão acerca da possibilidade de reconhecer intuitivamente uma intuição definindo esta como conhecimento imediato, isto é, não determinado por outra cognição mas pelo objecto (como acontece para os empiristas no caso da afecção sensorial ou para os racionalistas no caso de certas ideias), ou como uma premissa que não é por sua vez uma conclusão, a sétima questão põe directamente em causa a intuição em geral : “Se existe alguma cognição não determinada por uma cognição prévia.”68

Terá havido um primeiro momento na série das cognições ou o nosso estado cognitivo em qualquer momento é completamente determinado, de acordo com leis lógicas, pelo nosso estado cognitivo em qualquer momento anterior? Como responder a esta alternativa quando parece haver tantas provas a favor de um primeiro momento na série das cognições, isto é, de uma intuição fundadora? Bom, desde logo aplicando as conclusões das questões anteriores que mostraram, em geral e para casos particulares, que “é impossível saber intuitivamente que uma dada cognição não é determinada por uma cognição anterior.”69

, isto é, não distinguimos intuitivamente uma intuição de uma cognição mediata. É, afinal, a presunção de uma intuição ou de uma faculdade intuitiva (e a imagem do conhecimento como contacto imediato e assegurado entre a coisa-mente e a coisa-mundo ) que levanta este problema - e este desaparece juntamente com a presunção de um conhecimento

68

“Whether there is any cognition not determined by a previous cognition”. (C.P. 5.260; W2.209)

69

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intuitivo: deixa de ser o problema. Assim, uma das conclusões deste ataque à intuição, será exactamente o abandono da concepção individualista, internalista, autosuficiente e imediatista do conhecimento, que acompanha os vários fundacionalismos gerados por Descartes, e a sua substituição por um outro conceito epistemológico significativamente diferente, o de comunidade, adequado à insistência no carácter temporal ou processual do pensamento, e ao qual se chega examinando “algumas consequências de quatro incapacidades”.

2.2. O SEGUNDO ARTIGO: ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS DE QUATRO INCAPACIDADES. (C.P.5.264-317; W2.211-242)70

O ataque ao eu substancialista levado a cabo no artigo anterior sob a forma da sua invalidação como hipótese explicativa dos “factos internos” e da cognição faz-nos desembocar em pleno “espírito do cartesianismo”71, cujas características, em oposição à filosofia escolástica que o antecedeu, são, segundo Peirce, as seguintes: a dúvida universal como ponto de partida da filosofia; a consciência individual como teste último da certeza; um fio argumentativo único como estratégia de fundamentação e justificação, frequentemente dependente de “premissas inconspícuas”; e, finalmente, ter como resultado tornar as coisas absolutamente inexplicáveis. Peirce defende exactamente o contrário destas quatro pretensões e isto

70

Este texto, cujo título original é “Some Consequences of Four Incapacities”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla : CFI.

71

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em nome das exigências da ciência e da lógica modernas72. Assim, à dúvida metódica cartesiana opõe a dúvida real, aquela que surge de facto num determinado contexto problemático, e que tanto pode ocorrer na investigação científica como na experiência quotidiana. O que se passa, segundo Peirce, é que nunca estamos realmente num estado de descrença total, nem conseguimos dispensar “com uma máxima”73

todos os preconceitos que constituem, afinal, o nosso ponto de vista, a nossa posição na relação cognitiva com o mundo ; o cepticismo radical é auto-ilusão. A dúvida será, em Peirce, resgatada das suas implicações cépticas e integrada positivamente no método; deixa de ser contraditória ou estéril, passa a produzir resultados substantivos em vez de condenar a filosofia ao formalismo74. Também a certeza individual é um “fundamento” pernicioso. Aliás, já o artigo anterior chamara a atenção para os problemas do sentimento subjectivo e para a forma como a confirmação de expectativas e da nossa própria identidade depende do testemunho dos outros: o conhecimento é um assunto comunitário e a certeza decorre do acordo sobre uma teoria posta à prova por todos aqueles que investigam.. A filosofia deveria, pois, “imitar as ciências de sucesso nos seus métodos”75

e recorrer a múltiplos e variados argumentos: um feixe ou cabo é sempre mais forte do que um único elo. Finalmente, presumir uma inexplicabilidade na base dos fenómenos que se

72 C.P.5.265 73 C.P. 5.265; W2.212 74

cf. Browning, D., “The Limits of the Practical in Peirce’s View of Philosophical Inquiry” in Moore, E.C. e Robin, R.S. eds., From Time and Chance to Consciousness, Oxford / Providence, Berg, 1994, pp.15-29, onde se discutem as ambiguidades da cocepção de dúvida em Peirce.

Este tema é retomado na famosa metáfora do pântano, de 1898, onde Peirce reafirma o seu anti-fundacionalismo : não há um ponto de vista privilegiado e neutro sobre a totalidade, estamos sempre já in media res e na posse de algum conhecimento provisório.

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pretende explicar é perfeitamente injustificado, dado que o objectivo é, precisamente, explicar; é uma forma arbitrária, autoritária de travar o processo de investigação, é uma estabilização artificial.

Como de algum modo aquelas características do cartesianismo se justificam à luz de uma determinada teoria acerca da mente e do conhecimento, a sua refutação e a aceitação concomitante destas contra-propostas ficará estabelecida se continuarmos o processo de demolição desta mesma teoria da mente e do conhecimento. O primeiro dos três artigos aqui em causa, ao responder às sete questões acerca de faculdades reivindicadas para o homem permitira-nos identificar quatro incapacidades : 1) não temos poder de introspecção; 2) não temos poder de intuição; 3) não temos o poder de pensar sem signos; 4) não temos concepção do absolutamente incognoscível. Agora, trata-se de sujeitar a teste estas quatro hipóteses, de retirar consequências delas para delimitar uma alternativa consistente à res cogitans cartesiana e ao nominalismo típico de toda a filosofia moderna.

A primeira proposição implica abandonar a “via” da auto-consciência como modo de acesso cognitivo ao mundo externo (e interno). A descrição da acção mental terá, mais uma vez, o estatuto de uma hipótese que deve ser levada até às suas últimas consequências: “Por outras palavras, devemos, tanto quanto for possível sem hipóteses adicionais, reduzir todos os tipos de acção mental a um tipo geral.”76

. Afastado o conhecimento imediato, a intuição, resta o conhecimento mediato ou discursivo, a inferência; e é esta então a hipótese em causa acerca do funcionamento

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C.P.5.265; W2.213.

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Referências

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