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O TERCEIRO ARTIGO: FUNDAMENTOS DA VALIDADE DAS LEIS DA

CAPÍTULO I A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMUNIDADE : REALISMO,

1. INTRODUÇÃO

2.3. O TERCEIRO ARTIGO: FUNDAMENTOS DA VALIDADE DAS LEIS DA

(C.P.5.318-357; W2.242-272)104

Este terceiro artigo, estabelecida uma teoria semiótica da mente e afirmada uma posição realista no anterior, pretende explicar a validade das leis da lógica, especialmente no caso dos raciocínios prováveis. Trata-se de saber como é possível passar de um conhecimento do passado para um conhecimento do futuro, da parte para o todo, como é possível conhecer o que não foi experimentado105. Isto é, recusado um modelo do mental que exige um momento fundador inicial, um contacto directo com a realidade que se erige como critério de certeza, mas aceitando-se ainda assim a possibilidade do conhecimento e do conhecimento verdadeiro acerca do real, como se justifica esta última? A “faculdade” de conhecer pode até encontrar uma explicação biológica, empírica: a sobrevivência da espécie atestaria simplesmente a sua existência. Mas o problema agora é explicar a sua possibilidade a partir da sua constatação (tal como Kant fizera com a ciência newtoniana na Crítica da Razão Pura), dado que não podemos contar com qualquer intuição intelectual como explicação e fundamento. “O que poderá permitir à mente conhecer coisas físicas que

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Este artigo, cujo título original é “Grounds of Validity of the Laws of Logic – Further Consequences of Four Incapacities”, será a partir de agora identificado com a seguinte sigla: GVL.

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“How magical is it that by examining a part of a class we can know what is true of the whole class, and by study of the past we can know the future; in short, that we can know what we have not experienced!” C.P.5.341.

não a influenciam fisicamente e que ela não influencia?”106

Esta é uma questão que equivale àquela acerca da possibilidade da indução e da hipótese, isto é, das inferências prováveis. E é uma questão tanto mais importante quanto não se deixa resolver por qualquer presunção de regularidade na natureza.: “É verdade que as leis especiais e as regularidades são inúmeras; mas ninguém considera as irregularidades, que são infinitamente mais frequentes. Qualquer facto verdadeiro acerca de qualquer coisa particular no universo está relacionado com qualquer facto verdadeiro acerca de qualquer outra coisa. Mas a imensa maioria destas relações são fortuitas e irregulares. Um homem na China comprou uma vaca três dias e cinco minutos depois de um natural da Gronelândia ter espirrado. Estará esta circunstância abstracta relacionada com qualquer tipo de regularidade?”107

Ainda que houvesse alguma ordem na natureza (como “proporção”) e ainda que ela pudesse ser conhecida, isto não explicaria o aumento do conhecimento, serviria apenas como base para a dedução enquanto princípio geral108. O nosso conhecimento não é simplesmente o espelho de uma suposta “ordem das coisas” mas o resultado de um processo cuja validade é o que está aqui em causa. E, mais ainda, a questão da validade ficaria comprometida se a sua base fosse uma qualquer correspondência com uma ordem das coisas, isto porque se tornaria relativa a essa mesma ordem das coisas, “dependente de uma

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“What could enable the mind to know physical things which do not physically influence it and which it does not influence?” (C.P. 5.342; W 2.264).

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“It is true that the special laws and regularities are innumerable; but nobody thinks of the irregularities, which are infinitely more frequent. Every fact true of any one thing in the universe is related to every fact true of every other. But the immense majority of these relations are fortuitous and irregular. A man in China bought a cow three days and five minutes after a Greenlander has sneezed. Is that abstract circumstance connected with any regularity whatever?” (C.P. 5.344).

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constituição particular do universo”109

e o que importa é justificá-la de modo a operar na passagem daquilo que conhecemos para aquilo que ainda não conhecemos. “Assim, parece que somos conduzidos a este ponto. Por um lado, nenhuma determinação das coisas, nenhum facto, pode ter como resultado a validade dos argumentos de probabilidade; nem, por outro lado, podem tais argumentos ser reduzidos a uma forma correcta, sejam os factos o que forem. Isto parece-se bastante com a redução ao absurdo da validade de um tal raciocínio; e um paradoxo da maior dificuldade apresenta-se como solução.”110. Este é, então, o problema do aumento justificado do conhecimento, ou do raciocínio sintético, e é “a fechadura na porta da filosofia”111

. A resposta a esta questão, e aquilo de que a validade das inferências prováveis depende, está na noção de no longo prazo - ou, se quisermos, depende da direcção da investigação, do facto de se partir de um estado fragmentário tendo em vista um estado completo, da parte para o todo, tem a ver com aquele estado de informação completa que é a finalidade da investigação. “Qualquer inferência provável, seja ela uma indução ou uma hipótese, é uma inferência que vai das partes para o todo. É, pois, essencialmente semelhante à inferência estatística. Se, de um saco de feijões pretos e brancos, tirarmos algumas mãos cheias, podemos, a partir desta amostra, fazer um juízo aproximado acerca da proporção de feijões pretos e brancos em relação à totalidade. Isto é semelhante ao que se passa na indução. Agora

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C.P.5.345.

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“Thus we seem to be driven to this point. On the one hand, no determination of things, no fact, can result in the validity of probable argument; nor, on the other hand, is such argument reducible to that form which holds good, however the facts may be. This seems very much like a reduction to absurdity of the validity of such reasoning; and a paradox of the greatest difficulty is presented for solution.” (C.P.5.347)

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sabemos de que depende a validade desta inferência. Depende do facto de que, no longo prazo, qualquer um dos feijões seria retirado tão frequentemente como qualquer outro.”112

Ou, como diz Hookway, a estratégia de Peirce consiste em argumentar que, de acordo com a noção de realidade apresentada, a inferência por amostra, como relação parte/todo, como é o caso da indução e da hipótese, cumprem um critério defensável de correcção lógica. Isto tem como consequência o carácter aproximativo da indução113. Por um lado, então, a validade da indução depende da noção de realidade tal como fora apresentada no artigo anterior. Mas, por outro, põe- se também a questão de saber porque é que os homens não estão sempre condenados a fazer quelas induções que são altamente enganadoras, visto que o longo prazo não se verifica aqui e agora, isto é, não fornece um suporte para a validade de curto prazo da indução. Este é um tema desenvolvido com a teoria da hipótese ou abdução, que será apresentada num capítulo posterior deste trabalho, mas que recebe já aqui uma resposta significativa: “A resposta a esta questão pode ser colocada de uma forma geral e abstracta, ou detalhada e especial. Se os homens não fossem capazes de aprender através da indução, deveria ser porque, regra geral, quando fizeram essa indução, a ordem das coisas (tal como elas aparecem na experiência), sofreria então uma revolução. É exactamente nisto que consistiria a irrealidade de um tal universo; nomeadamente, em que a ordem do universo dependeria da quantidade de

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“All probable inference, whether induction or hypothesis, is inference from the parts to the whole. It is essentially the same, therefore, as statistical inference. Out of a bag of black and white beans I take a few handfuls, and from this sample I can judge approximately the proportions of black and white in the whole. This is identical with induction. Now we know upon what the validity of this inference depends. It depends upon the fact that in the long run, any one bean would be taken out as often as any other.” (C.P.5.349).

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conhecimento que os homens tivesem dele. Mas esta regra geral poderia ser ela própria descoberta através da indução; e deveria então ser uma lei desse universo que, quando fosse descoberta uma lei, ela deixaria de operar. Mas esta segunda lei seria ela própria passível de ser descoberta. E assim, num tal universo, não poderia haver nada que não pudesse mais tarde ou mais cedo ser conhecido; e teria uma ordem passível de ser descoberta por um curso suficientemente longo de raciocínio. Mas isto é contrário à hipótese, logo, essa hipótese é absurda. Esta é a resposta particular. Mas também podemos dizer,em geral, que se não existe nada que seja real, então, uma vez que cada questão supõe que algo existe – já que afirma a sua própria urgência – supõe apenas que apenas existe uma ilusão. Mas até a existência de uma ilusão é uma realidade; pois uma ilusão ou afecta todos os homens ou não afecta. No primeiro caso, é uma realidade segundo a nossa teoria da realidade; no segundo caso, é independente dos estados mentais de quaisquer indivíduos excepto daqueles a quem de facto afecta. Assim, a resposta à questão ‘Porque é o que quer que seja real?’ é esta: a questão significa,’supondo que existe o que quer que seja, porque é que algo qualquer é real?’ A resposta é que essa mesma existência é a realidade por definição.”114

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“The answer to this question may be put into a general and abstract, or a special detailed form. If men were not to be able to learn from induction, it must be because as a general rule, when they had made an induction, the order of things (as they appear in experience), would then undergo a revolution. Just herein would the unreality of such a universe consist; namely, that the order of the universe should depend on how much men should know of it. But this general rule would be capable of being itself discovered by induction; and so it must be a law of such a universe, that when this was discovered it would cease to operate. But this second law would itself be capable of discovery. And so in such a universe there would be nothing which would not sooner or later be known; and it would have an order capable of discovery by a sufficiently long course of reasoning. But this is contrary to the hypothesis, and therefore that hypothesis is absurd. This is the particular answer. But we

Esta identificação do longo prazo e do estado ideal de informação completa como aquilo de que depende a validade da indução ou do raciocínio sintético, tem implicações éticas. Prosseguindo a posição anti-individualista dos artigos anteriores, associa à lógica certas “virtudes” e “sentimentos” que irão compor a sua normatividade específica e que desembocarão mais tarde na teoria do auto-controle deliberado, do instinto e do sentimentalismo filosófico. Dada a definição de realidade como o acordo final de todos os homens, ou como o objecto da opinião que a comunidade para sempre afirmará, e sendo que uma indução válida é aquela que se aproxima, no longo prazo, deste estado, nenhuma inferência individual está alguma vez absolutamente fundada, mas apenas relativa e provisoriamente. Daqui se segue “que a lógica requer estritamente, antes de tudo o resto, que nenhum facto determinado, nada do que possa acontecer ao eu próprio de um indivíduo, possa ser de maior importância para ele do que tudo o resto. Aquele que não sacrificasse a sua própria alma para salvar o mundo todo, seria ilógico em todas as suas inferências, colectivamente. Assim, o princípio social está intrinsecamente enraizado na lógica.”115

Ou seja, o interesse individual sobreposto ao carácter indefinidamente may also say, in general, that if nothing real exists, then, since every question supposes that something exists – for it maintains its own urgency – it supposes only an illusion to exist. But the existence even of an illusion is a reality; for an illusion affects all men, or it does not. In the former case, it is a reality according to our theory of reality; in the latter case, it is independent of the state of mind of any individuals except those whom it happens to affect. So, the answer to the question, Why is anything real? Is this: That question means, ‘supposing anything to exist, why is something real?’ The answer is, that that very existence is reality by definition.” (C.P.5.352).

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“(…)that logic rigidly requires, before all else, that no determinate fact, nothing which can happen to a man’s self, should be of more consequence to him than everything else. He who would not sacrifice his own soul to save the whole world, is illogical in all his inferences, collectively. So the social principle is rooted intrinsically in logic.” (C.P.5.354).

aproximativo do conhecimento humano contraria aquilo sobre que repousa a validade das inferências sintéticas. Logo, a lógica parece requerer uma virtude de auto- sacrifício cujo “poder servirá para redimir a logicalidade de todos os homens”116

, confirmada pelos factos, apesar de a opinião corrente afirmar que os homens só agem tendo em vista o seu próprio prazer e a satisfação imediata. Num único parágrafo, Peirce põe em causa a tendência moderna para descrever a racionalidade como um cálculo de utilidades ao serviço da preservação ou satisfação individual, acrescentando assim à recusa da soberania epistemológica do sujeito uma descrição moral da lógica como necessariamente altruista, ou, se quisermos, denuncia o caracter ilógico de uma concepção “egoísta” ou individualista do conhecimento. Só sendo anti-utilitarista se preserva a “logicalidade”. A marca da “logicalidade” de um indivíduo é a sua capacidade para ultrapassar o ponto de vista individual, reconhecendo “a necessidade lógica de uma completa identificação dos interesses próprios de cada um com os interesses da comunidade”117

, tendo assim uma base para a validade das suas inferências cujo sinal maior é que “assim, considera como válidas as suas próprias inferências apenas na medida em que elas seriam aceites por aquele homem”118

. O que pode ser interpretado como a aplicação ao domínio da lógica da exigência de universalidade representada pelo imperativo categórico kantiano no domínio da prática. Encontramos a razão pura e a razão prática kantianas unidas 119 numa concepção da lógica que exige como pressuposto da sua

116 C.P. 5.355. 117 C.P. 5.356. 118 C.P. 5.356. 119

cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles Sanders Peirce, Chicago, University of Chicago Press, 1953, p.62.

racionalidade a esperança (hope) do sucesso, o que significa aqui a esperança num estado ideal de completa informação na posse de uma comunidade ideal de investigação. Isto é, para além de uma evidência da posição francamente optimista de Peirce, a afirmação de que a condição última de possibilidade do conhecimento, dado o seu carácter discursivo, inferencial e falível, não é estritamente racional, é um sentimento - é uma atitude moral, o que é reconhecido pelo próprio Peirce em C.P.5.357. De algum modo, a concepção de identidade pessoal contida nestes primeiros textos, como algo móvel e construído ao longo do tempo, capaz de aperfeiçoamento por interacção com os outros e o mundo exterior, exige um ponto de vista teleológico que se manifesta na noção de auto-controlo deliberado - e é nisto que consiste usar um método - que por sua vez exige um ideal, uma expectativa motivadora e um padrão.

Parece seguro dizer-se que o pensamento subsequente de Peirce será dedicado a abrir esta porta, a desenvolver a “teoria social da lógica”120

que, no final deste texto, é, apenas, esboçada. Mais uma vez, o tema da comunidade ressurge como condição de possibilidade da validade das inferências e do aumento do conhecimento, e sustentando as noções de realidade e verdade. E, ainda contra o cartesianismo, a certeza absoluta num fundamento inicial é substituida por um outro “sentimento” exigido pela lógica: “o único pressuposto sobre o qual podemos agir racionalmente é a esperança no sucesso.”121

Tal como no plano teórico a racionalidade de um procedimento depende da sua orientação para um estado futuro, ou seja, a

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Esta expressão não é do próprio Peirce, mas sim dos editores dos Collected Papers, que a usam para intitular uma das secções em que dividiram este texto.

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justificação encontra-se na finalidade e não no fundamento, também no plano prático a motivação tem a ver com a consideração daquilo que transcende o sujeito e a sua situação actual, é uma finalidade e não uma causa eficiente.

3. REALISMO: “A EDIÇÃO DE FRASER DAS OBRAS DE GEORGE