• Nenhum resultado encontrado

REALISMO: “A EDIÇÃO DE FRASER DAS OBRAS DE GEORGE BERKELEY”

CAPÍTULO I A EMERGÊNCIA DO CONCEITO DE COMUNIDADE : REALISMO,

3. REALISMO: “A EDIÇÃO DE FRASER DAS OBRAS DE GEORGE BERKELEY”

Segundo Max Fisch123, neste texto Peirce dá o seu segundo passo decisivo em direcção ao realismo. A necessidade de afirmar o realismo e que a ciência é realista está, evidentemente, ligada à questão da objectividade: afinal, uma teoria da cognição hipotética, falibilista e semiótica como a apresentada, sem a base intuitiva do dado como fundamento, requer uma teoria da realidade que a afaste do convencionalismo, do subjectivismo ou do idealismo absoluto. A afirmação segundo a qual o real é o resultado do processo de conhecimento não deve confundir-se com aquela segundo a qual a realidade é uma ficção subjectiva, social ou histórica.

O pretexto deste artigo é uma edição das obras completas de Berkeley e nele Peirce oferece-nos uma apreciação de todo um modo de fazer filosofia que é o da tradição britânica, com a sua tendência para o nominalismo. Esta tradição, empirista,

122

Publicado na North American Review em 1871, com o título original “Fraser’s Edition of the Works of George Berkeley”. Cf. Corrington, R.S., An Introduction to C.S. Peirce - Philosopher, Semiotician and Ecstatic Naturalist, Boston, Rowman & Littlefield Publishers, inc., 1993. p.33.

123

Fisch,M., Peirce, Semeiotic and Pragmatism, Bloomington, Indiana University Press, 1986.

e a sua psicologia associacionista, era já visada nos textos anti-cartesianos de 1868. E também já nestes a teoria da cognição era a base para uma teoria da realidade que, fundamentalmente, recusava a existência de uma realidade incognoscível e afirmava que o real é o objecto de uma opinião verdadeira resultando no longo prazo da investigação levada a cabo por uma comunidade “destinada” a encontrá-la. Neste texto, Peirce traça a linhagem da filosofia empirista britânica situando na metafísica medieval, principalmente na controvérsia em torno dos universais, a origem daquilo a que chama as “fortes tendências nominalistas”124

dos filósofos britânicos. A controvérsia consiste, segundo Peirce, na seguinte questão : Os universais são reais?. Para compreender que problema está aqui em causa, há que esclarecer o que se entende por “real”. O critério que permite distinguir “ficções” ou “sonhos” de “realidades” é o seguinte : “Os primeiros são aqueles que existem apenas na medida em que tu ou eu ou qualquer homem os imagina; as últimas são aquelas que têm uma existência independente da tua mente ou da de qualquer número de pessoas. O real é aquilo que não é o que quer que aconteça pensarmos que seja, mas que não é afectado por aquilo que possamos pensar acerca dele.”125

Obtém-se assim a seguinte descrição: “A questão é, então, se homem, cavalo e outras designações de classes naturais, correspondem a algo que todos os homens, ou cavalos, têm realmente em comum, independentemente do nosso pensamento, ou se estas classes são

124

C.P.8.10

125

“The former are those which exist only inasmuch as you or I or some man imagines them; the latter are those which have an existence independent of your mind or that of any number of persons. The real is that which is not whatever we happen to think it, but is unaffected by what we may think of it.” (C.P.8.12). Já nos textos de 1868 é esta a concepção de real assumida por Peirce.

constituidas simplesmente com base numa semelhança no modo como as nossas mentes são afectadas pelos objectos individuais que não têm neles mesmos qualquer semelhança ou relação.”126

Ora, esta definição de realidade como “algo exterior” e, consequentemente, a questão dos universais, admite dois “pontos de vista muito distantes”, o nominalista, para o qual o real é uma coisa fora da mente que influencia directamente a sensação e através desta o pensamento; e o realista, para o qual o real é o objecto da opinião final, eliminados gradualmente os erros, arbitrariedades, acidentes, limitações de uma investigação individual, empírica, dados a informação e o tempo suficiente, tendendo a opinião humana universalmente no longo prazo para uma forma definida que é a verdade. Como consequência desta concepção de realidade, temos a recusa de coisas em si, não relativas “à concepção que a mente tem delas”127

, e incognoscíveis, de que as sensações seriam efeitos; e a concepção das aparências dos sentidos como sinais das realidades concebidas como “númenos, ou concepções inteligíveis que são os produtos finais da acção mental desencadeada pela sensação”128

, atestando o carácter lógico, inferencial da acção mental tal como tinha sido descrito nos textos de 1868 em oposição ao intuicionismo cartesiano. A realidade, enquanto objecto da “opinião verdadeira”, é o resultado de uma investigação em relação à qual “a matéria da sensação é completamente acidental”129

.

126

“The question, therefore, is whether man, horse, and other names of natural classes, correspond with anything which all men, or all horses, really have in common, independent of our thought, or whether these classes are constituted simply by a likeness in the way in which our minds are affected by individual objects which have in themselves no resemblance or relationship whatsoever.” (C.P.8.12).

127 C.P.8.13. 128 C.P.8.13. 129 C.P.8.13.

A afecção sensorial propriamente dita não é relevante no que respeita ao conteúdo cognitivo da experiência, à informação a tratar logicamente, sendo que outras mentes com aparelhos sensoriais completamente distintos dos humanos participariam também, segundo Peirce, no “consentimento católico que constitui a verdade”130

. Uma outra consequência é que, segundo Peirce, esta teoria da realidade favorece a crença em realidades externas, isto se entendermos por “externo” não o em-si absolutamente estranho à mente e assim incognoscível, mas “aquilo que é independente do fenómeno que está imediatamente presente, ou seja, de como podemos pensar ou sentir.”131

. Isto impede, desde logo, que a insistência no carácter comunitário da investigação e na comunidade ideal como “lugar” onde a opinião verdadeira será finalmente alcançada e a realidade conhecida, seja entendida como uma opção por uma teoria da verdade como consenso com implicações precisamente nominalistas ou convencionalistas, como a única forma de verdade disponível dado o carácter em última análise incognoscível da realidade vista como um em si. A verdade como consenso funciona em Peirce porque se baseia numa teoria da verdade como correspondência: há uma convergência entre investigadores porque o conhecimento se aproxima cada vez mais do seu objecto.

Esta teoria, que identifica então o real com o objecto de uma opinião verdadeira, é realista no sentido em que, enquanto juízo, a opinião verdadeira contém necessariamente concepções gerais: “consequentemente, uma coisa geral é tão real como uma coisa concreta.”132

Vejamos como o próprio Peirce descreve a sua teoria 130 C.P.8.13. 131 C.P.8.13. 132 C.P.8.14.

da realidade: “Esta teoria implica um fenomenalismo. Mas é o fenomenalismo de Kant e não o de Hume. De facto, aquilo a que Kant chama o seu passo copernicano consistiu precisamente na passagem da perspectiva noinalista para a perspectiva realista acerca da realidade. A essência da sua filosofia estava em considerar o objecto real como sendo determinado pela mente. Isto não é mais do que considerar cada concepção e intuição que necessariamente entra na experiência de um objecto, e que não seja transitória e acidental, como tendo validade objectiva. Em suma, consistiu em considerar a realidade como o produto normal da acção mental e não como a causa incognoscível dela.”133

.

O texto termina com uma breve consideração acerca da importância do debate entre nominalista e realistas para a ciência e filosofia contemporâneas. Ou ainda, são enunciadas as consequências éticas de uma concepção da ciência e da filosofia em espírito nominalista. Peirce associa ao nominalismo certas doutrinas “com uma tendência moral degradante (...) , sensacionismo, fenomenalismo, individualismo e materialismo”, e é preciso enfrentar a questão da aceptabilidade destas consequências dado que a ciência procura a verdade, e que o que é verdadeiro “é bom acreditar e mau rejeitar”: como perceber que seja a própria ciência a sugerir aquelas posições?

133

“This theory involves a phenomenalism. But it is the phenomenalism of Kant, and not that of Hume. Indeed, what Kant called his Copernican step was precisely the passage from the nominalistic to the realistic view of reality. It was the essence of his philosophy to regard the real object as determined by the mind. That was nothing else than to consider every conception and intuition which enters necessarily into the experience of an object, and which is not transitory and accidental, as having objective validity. In short, it was to regard the reality as the normal product of mental action, and not as the incognizable cause of it.” (C.P.8.15). Esta identificação da teoria da realidade de Peirce com o fenomenalismo de Kant deve ser completada com a recusa da distinção entre fenómeno e númeno. Cf. C.P.8.13, onde Peirce diz explicitamente que a sua teoria da realidade é “instantly fatal to the idea of a thing in itself – a thing existing independent of all relation to the mind’s conception of it.”

A convicção de Peirce é que a ciência “tal como existe é certamente muito menos nominalista do que os nominalistas pensam que ela é”, tal como os homens são menos guiados pelo interesse egoísta do que parece. A demonstração do carácter realista da ciência exigiria investigação árdua em matemática: “a questão do realismo e do nominalismo tem as suas raízes nas especificidades técnicas da lógica.” Mas as suas implicações ultrapassam o domínio da pura investigação, são de ordem “vital”, ética: “A questão de saber se o genus homo tem alguma existência para além dos indivíduos, é a questão de saber se existe algo com mais dignidade, valor e importância do que a felicidade individual, as aspirações individuais e a vida individual. Se os homens têm ou não alguma coisa em comum, de modo a que a comunidade possa ser considerada um fim em si mesma, e, se for esse o caso, qual é o valor relativo dos dois factores, é a questão prática mais fundamental no que respeita a qualquer instituição pública cuja constituição está em nosso poder influenciar.”134

É uma questão que diz respeito ou afecta a relação entre o indivíduo e a comunidade e entre indivíduos.

4.CONCLUSÃO

134

“The question whether the genus homo has any existence except as individuals, is the question whether there is anything of any more dignity, worth, and importance than individual happiness, individual aspirations, and individual life. Whether men really have anything in common, so that the community is to be considered as an end in itself, and if so, what the relative value of the two factors is, is the most fundamental practical question in regard to every public institution the constitution of which we have it in our power to influence.” (C.P.8.38).

A redefinição da noção de realidade e de actividade mental levada a cabo nos textos até aqui apresentados conduz à exigência de uma comunidade de investigadores na medida em que repousa na assunção fundamental segundo a qual o conhecimento, essa relação entre a mente e a realidade, envolve necessariamente tempo e, consequentemente, recebe uma das características da temporalidade, o seu carácter assimétrico, e é assim capaz de crescimento. O terceiro artigo de 1868 identifica especificamente a base da validade das leis da lógica com a possibilidade indefinida desse crescimento, e a noção de comunidade está assim ligada à necessidade de um inquérito que se prolonga indefinidamente, dado que a temporalidade do sujeito individual não coincide com essa necessidade. A comunidade parece então surgir, em primeiro lugar, como um agregado sucessivo de mentes, suprindo as exigências temporais do inquérito: é necessária dada a finitude dos indivíduos. Mas, e este é um aspecto decisivo, a relevância epistemológica da noção de comunidade ultrapassa esta circunstância empírica, esta desproporção entre o indivíduo e a espécie, e não se esgota num problema quantitativo. Dito de outro modo, a comunidade não é simplesmente uma versão alargada do sujeito transcendental; antes a própria subjectividade gnoseológica é concebida à imagem de uma comunidade: a verdade de uma qualquer teoria não se funda nunca numa certeza individual, ainda que o indivíduo fosse imortal e capaz de levar a cabo indefinidamente a investigação, mas na possibilidade de confirmação partilhada, na avaliação pública dessa mesma teoria, na sua pertinência explicativa face à experiência representada pela possiblidade de convergência entre todos aqueles que

investigam135. A noção de comunidade é, assim, tanto mais importante quanto se mostrou a implausibilidade da intuição sem se cair num cepticismo radical: nela está contido o optimismo gnoseológico de Peirce, que prescinde da postura fundacionalista e adopta uma atitude falibilista. A convergência serve, então, para dissipar a suspeita de uma distorção da realidade como resultado da aplicação de um processo inferencial cujo contacto com essa mesma realidade não esteja garantido absolutamente, por uma intuição das premissas ou pelo efeito de uma harmonia pré- estabelecida postulada. O facto de a investigação ser um assunto comunitário permite, pelo menos, superar o perigo das ilusões individuais e, ainda que subsista a possibilidade de uma ilusão sistemática afectando toda a espécie humana, então a definição de realidade avançada por Peirce resolve esta dificuldade: se todos vierem a concordar com esta ilusão como sendo aquilo que querem dizer quando dizem “realidade”, então é isto que se deve entender como sendo a realidade, o objecto da opinião sustentada pela comunidade dadas suficientes condições de investigação, falível mas aperfeiçoável no longo prazo136. Também de assinalar é a posição de Peirce face ao indivíduo no processo de conhecimento. Ele é identificado como o lugar do erro e da ignorância, mas uma vez que o pensamento é considerado como tendo um carácter autocorrectivo, essa negatividade associada ao indivíduo é redimível. O erro não é, aliás, para Peirce, um absoluto, como terá ficado estabelecido no tratamento dado à questão das falácias.

135

Esta função da noção de comunidade será aliás desenvolvida e esclarecida a propósito da descrição dos diferentes modos de fixação de crença nos textos de 1878, e que serão objecto do próximo capítulo deste trabalho.

136

Entretanto, Peirce, como sublinha Esposito137, começa a procurar uma garantia mais forte de que a comunidade esteja em contacto com a realidade, ou seja, de que o empreendimento cognitivo seja plausível apesar da sua dependência em relação a uma temporalidade indefinida e da sua garantia apenas estatística. É precisamente a este propósito que Peirce irá integrar na sua epistemologia uma perspectiva biologista do conhecimento, contendo a noção de evolução, o que faz tanto mais sentido quanto nestes primeiros textos o pensamento foi descrito como uma forma de acção, um comportamento, tendo como característica nuclear o seu carácter temporal. Por outro lado, a perspectiva evolucionista permitirá avançar com uma concepção teleológica da comunidade de investigação, fortalecendo-se a esperança no empreendimento cognitivo com a assunção de uma continuidade entre a vida orgânica e a vida mental cujo resultado será uma naturalização não reducionista das normas, ou a explicação da emergência da dimensão normativa da realidade.

137

Esposito, J.L., Evolutionary Metaphysics, Athens Ohio, Ohio University Press, 1980, p.120-121.