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A MÁXIMA PRAGMÁTICA : REAFIRMAÇÃO DO REALISMO

CAPÍTULO II A TEORIA DO INQUÉRITO

3. A MÁXIMA PRAGMÁTICA : REAFIRMAÇÃO DO REALISMO

O texto seguinte desta série, “Como Tornar as Nossas Ideias Claras” (C.P. 5.388- 410)185, afronta dois problemas fundamentais e intimamente ligados : o problema da definição e o da sua pertinência cognitiva. Ou, dito de outro modo, como ver nas nossas ideias acerca das coisas reflexos de uma actividade de conhecimento bem orientada. Ou ainda, qual é a lógica da descoberta que nos permite obter conhecimento. Desde logo, pois, a discussão da definição será instalada numa teoria do conhecimento ou das condições da operatividade cognitiva e numa epistemologia, ou discurso acerca das condições de validação de um conhecimento que se pretende científico, que foram sendo estabelecidas nos textos anteriores apresentados.

Não é por acaso que a discussão da clareza das nossas ideias começa com uma referência directa aos critérios cartesianos da clareza e distinção. Descartes, a filosofia do cogito e a metodologia da dúvida são, também neste texto, o alvo a abater. O pragmatismo ergue-se fundamentalmente, como já foi visto, contra uma

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C.P.5.386. 185

filosofia fundada num sujeito auto-contido e auto-suficiente, com capacidades assombrosas de introspecção e acesso privilegiado e intuitivo ao mundo através de uma observação de ideias dadas no espaço mental interior. Este individualismo metodológico reflecte-se nos defeitos dos critérios da clareza e distinção. Uma ideia clara, de acordo com o que foi estabelecido por Descartes, define-se como uma ideia que é de tal modo apreendida que será reconhecida onde quer que deparemos com ela e de tal forma que não se confunde com nenhuma outra. Isto implicaria uma tal decisão e fortaleza de espírito, uma inteligência de tal modo capaz de se elevar acima de qualquer ambiguidade, “um prodígio de força e clareza intelectual muito difícil de encontrar neste mundo.”186

E, mais ainda, este é afinal um critério que apenas descreve um sentimento de familiaridade com uma ideia : ser capaz de a reconhecer sem hesitação, não merece o nome de clareza, já que não é senão um sentimento subjectivo de domínio que não oferece garantias de sustentação. Podemos muito bem estar completamente enganados ao mesmo tempo que nos sentimos completamente seguros.

Este é um critério que, porque particular, individual, subjectivo, não nos garante nada; não oferece meios para a sua validação. E tanto assim é que um segundo critério lhe é acrescentado como suplementação. Para além de clara, uma boa ideia, uma na qual a nossa actividade mental possa encontrar um bom fundamento, deve ser distinta. Isto significa que uma ideia não deve conter nada que não seja claro. Atingir a distinção de uma ideia consiste, assim, em analisar os seus conteúdos e dar dela uma definição precisa em termos abstractos. Estes critérios remetem um para o outro

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e deixam-nos num plano de análise lógica abstracta187 que não autoriza qualquer desenvolvimento. É preciso formular um método para atingir uma clareza de pensamento mais perfeita, que dê conta do problema do aumento do conhecimento. Segundo Peirce, Descartes, empenhado como estava em afastar a autoridade escolástica e substitui-la, enquanto fundamento e ponto de partida seguro, pela mente humana, não reflectiu sobre a distinção entre uma ideia parecer clara e sê-lo efectivamente. O novo e mais perfeito método de esclarecimento de ideias deve permitir proceder a esta distinção e abandonar o terreno da pura subjectividade. Também Leibniz terá reproduzido este carácter acrítico da evidência cartesiana, esquecendo-se de que “aceitar proposições que nos parecem ser perfeitamente evidentes é algo que, seja lógico ou não, não conseguimos evitar fazer.”188

É com ideias claras que podemos garantir a vitalidade do pensamento e estabelecer as condições para a obtenção de conhecimento. O problema basilar destes critérios de definição, para além da sua insuficiência em termos de garantia de validade é, então, a sua desadequação em relação à actividade mental entendida como descoberta : “a maquinaria da mente é capaz apenas de transformar conhecimento, mas nunca de lhe dar origem, a não ser que seja alimentado com factos da observação.”189

Os critérios cartesianos remetem-nos, quando muito, para uma prática analítica que não responde à necessidade de justificação do aumento do conhecimento: “Não se consegue

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Para além de alimentar confusões como as que enredaram a ontologia clássica sintetizada por Wolf e já denunciadas por Kant na Crítica da Razão Pura a propósito do argumento ontológico.

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aprender nada de novo através da análise de definições.”190

E, ainda que sirvam à necessidade de ordem que um bom funcionamento mental exige, estes critérios manifestam graus inferiores de clareza. Há que exigir, e legitimamente, da lógica um meio de atingir um terceiro grau de clareza das nossas ideias que dê conta de um funcionamento correcto do pensamento na sua actividade de descoberta. Uma lógica que dê conta do crescimento do conhecimento

Para fornecer o critério para um terceiro grau de clareza, Peirce retoma a descrição da actividade mental desenvolvida no artigo anterior: “a acção do pensamento é excitada pela irritação da dúvida e cessa quando se atinge a crença; de modo que a produção de crença é a única função do pensamento.”191

Dúvida e crença são estádios da actividade mental que se caracterizam, respectivamente, por uma hesitação ou indecisão surgida numa dada circunstância, e por uma resolução do problema que essa circunstância levantou e que nos permite saber como agir. De facto, e esta é uma das bases do pragmatismo, a noção de crença define-se como “aquilo a partir do qual um homem está preparado para agir.” Aquilo a que assistimos através da escolha desta terminologia é à recusa do modelo grego e cartesiano do pensamento como visão espacial (o olho da mente) e da específica construção cartesiana da consciência como um lugar, uma zona espacial (o recinto interior mental onde as ideias aparecem e são vistas) e a sua substituição por imagens ligadas à acção. Reforça-se deste modo a descrição externalista e compartilhável da actividade mental que nos afasta do terreno movediço da introspecção.

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C.P.5.392.

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A crença como ponto de chegada da actividade mental, e seu ponto de partida também, dada a sua aplicação, tem três características :1) é algo de que temos consciência 2) acalma a irritação da dúvida 3) implica o estabelecimento na nossa natureza de uma regra de acção ou hábito. Desta descrição decorre a primeira formulação do critério do terceiro grau de clareza: “A essência da crença é o estabelecimento de um hábito; e crenças diferentes distinguem-se pelos diferentes modos de acção a que dão origem.”192

Passa-se, assim, de critérios baseados nas características internas de um conceito para um critério baseado na observação das suas consequências.

Enquanto estabelecendo um hábito, a crença instala procedimentos inferenciais, caracteriza-se por ser uma base de expectativas. Ter uma ideia equivale à enunciação de um conjunto de condicionais expressáveis pela fórmula “se...então”. Espera-se que, dadas certas condições, se sigam certas consequências. A observação destas previsões condicionais é o que permite distinguir crenças aparentemente iguais e identificar crenças aparentemente diferentes.

Daí, a segunda formulação do critério : “Para desenvolver o seu significado temos , então, apenas que determinar que hábitos produz, já que aquilo que uma coisa significa é simplesmente o hábito que ela implica. (…) Assim, chegamos àquilo que é tangível e concebivelmente prático, como raíz de qualquer distinção real de pensamento(…); e qualquer distinção de significado, por mais subtil que seja,

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“The essence of belief is the establishment of a habit; and different beliefs are distinguished by the different modes of action to which they give rise.” (C.P.5.398)

consiste simplesmente numa possível distinção na prática.”193 O conteúdo das nossas ideias equivale, assim, ao hábito que delas decorre, e o hábito é uma disposição para agir, não apenas sob circunstâncias prováveis, mas sob todas as circunstâncias possíveis. Não há qualquer restrição a uma observação de facto, sendo que o critério contempla condicionais contrafactuais.

Uma ideia deve ser verificável para poder vir a ter um sentido determinado; qualquer outro critério incorre num risco de confusão linguística ou de certeza puramente subjectiva: “A nossa ideia seja do que for é a nossa ideia dos seus efeitos sensíveis; e se imaginamos que temos outra, enganamo-nos a nós mesmos e confundimos uma simples sensação que acompanha o pensamento com uma parte do próprio pensamento.”194 Os “efeitos sensíveis” de uma concepção, o que nelas é “tangível e concebivelmente prático” instalam-nos num ambiente discursivo cuja exigência é a da verificação experimental pública e compartilhável. A máxima pragmática propriamente dita enuncia-se, assim, da seguinte forma : “Consideremos que efeitos, que possam concebivelmente ter consequências práticas, concebemos que o objecto da nossa concepção tem, então, a nossa concepção desses efeitos é a totalidade da nossa concepção do objecto.”195

Esta é uma máxima que, dado o seu

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“To develop its meaning we have, therefore, simply to determine what habit it produces, for what a thing means is simply the habit it involves. (…) Thus we come down to what is tangible and conceivably practical, as the root of every real distinction of thought(…); and there is no distinction of meaning so fine as to consist in anything but a possible difference of practice.” (C.P.5.400)

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“Our idea of anything is our idea of its sensible effects; and if we fancy we have any other we deceive ourselves and mistake a mere sensation accompanying the thought for a part of the thought itself.” (C.P.5.401)

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“Consider what effects, that might conceivably have practical bearings,we conceive the object of our conception to have, then, our conception of these effects is the whole of our conception of the object.” (C.P.5.402)

funcionamento externalista, parece dissolver um problema persistente na teoria da definição e irritante para a questão do sentido: a dualidade essência/acidente. A “fenomenalização” pragmatista recusa identificar a definição/sentido de uma coisa com uma essência qualitativa, não mediada, apreendida intuitivamente e da qual decorreria a explicação do comportamento dessa coisa como derivado, acidental, contingente, circunstancial. A essa concepção isolacionista do sentido, Peirce opõe uma concepção relacional, exteriorizada, que não ignora as mediações linguísticas entre sujeito e objecto e faz depender da nossa observação, de facto ou concebível, do seu comportamento e dos seus efeitos sobre o nosso, uma sua definição196. Nem temos outro modo de fazer sentido que não seja estabelecer um regime de equivalências deste tipo.

Vejamos como funciona a máxima pragmática em relação a um dos exemplos apresentados por Peirce no texto, e que é um desenvolvimento ou reafirmação da sua teoria da realidade e do seu realismo. Este exemplo é, para além disto, interessante na medida em que permite aferir o funcionamento da máxima relativamente a um conceito suficientemente vasto e metafisicamente conotado para que não sejamos tentados a vê-la como a afirmação de um experimentalismo banal de aplicação curta a objectos físicos ou propriedades sujeitáveis a medição instrumental. A máxima serve para esclarecer “palavras difíceis” para além de uma evidência subjectiva, deve poder alcançar conceitos abstractos como o conceito de “realidade”.

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O que certamente se relaciona com a exclusividade concedida classicamente à forma proposicional ‘s é p’ ,denunciada por Peirce e que o levou a fundar um ramo vital da lógica contemporânea, a lógica dos relativos.

Peirce começa por sujeitar o conceito aos graus de clareza expostos. Para o critério de familiaridade, o conceito de realidade é o mais claro. “Qualquer criança o usa com perfeita confiança, nunca sequer sonhando que não o compreende.”197 Já o segundo grau de clareza parece ser menos evidente. Como dar uma definição abstracta de “realidade”? Ainda assim, poderíamos alcançá-la contrapondo as ideias de “realidade” e “ficção” e chegar a uma definição como “aquilo cujas características são independentes do que seja quem for possa pnsar que elas são.”198

Apliquemos a regra do terceiro grau de clareza e verifiquemos se podemos aperfeiçoar a clareza desta ideia. Como qualquer outra qualidade, a realidade deverá consistir nos efeitos sensíveis peculiares que as coisas ditas reais produzem. O único efeito que as coisas reais têm é causar crença, já que todas as sensações que elas excitam emergem na consciência sob a forma de crenças. A questão é, pois, saber como é que a crença verdadeira (ou crença no real) se distingue da crença falsa (ou crença na ficção). As ideias de verdade e falsidade pertencem exclusivamente ao método experimental de estabelecer opinião ou crença. Existe, assim, uma associação entre real e verdadeiro, o primeiro dizendo respeito ao objecto da crença e o segundo à própria crença. Se um dos “resultados sensíveis”, dos efeitos práticos do real é o carácter verdadeiro da crença, dada a determinação do que significa ser verdadeiro teremos uma determinação do que significa ser real. A investigação científica, que é um dos métodos de obtenção e fixação da crença, é o método através do qual as nossas crenças não são determinadas por nada de humano, mas por uma permanência

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externa, por algo sobre o qual o nosso pensamento não tem qualquer efeito. O critério desta exterioridade, aquilo que faz com que não se confunda com a mera alucinação individual, é o seu carácter partilhado e público, comunitário. O progresso da investigação, porque é sobre o real, força os investigadores a uma só e mesma conclusão. “A opinião que está destinada a ser finalmente objecto de acordo por parte de todos aqueles que investigam, é aquilo que queremos dizer com a verdade, e o objecto representado nesta opinião verdadeira é o real.”199 O resultado da investigação levada suficientemente longe, independentemente de opiniões individuais é o que queremos dizer quando dizemos “real” e “verdadeiro”.

É necessário chamar a atenção para o facto de que Peirce não difere, idealisticamente, o real para um momento futuro e produzido, nem faz depender a realidade do nosso conhecimento dela e do seu transporte numa crença verdadeira. Na medida em que agem sobre nós e nos constrangem, as coisas são reais, mas o que delas se nos dá é necessariamente mediado em crenças, em estados mentais que determinam o nosso modo de acção futuro e que são corrigíveis, aperfeiçoáveis pela subsequente interacção com as coisas que levanta novas dúvidas e suscita novas crenças. Das coisas não apreendemos intuitivamente uma essência mas formamos discursivamente interpretações. Assim, a máxima pragmática articula-se com a teoria semiótica de Peirce segundo a qual o pensamento é actividade sígnica, um processo ilimitado de interpretação: o sentido é virtual e a sua determinação completa encontra-se no futuro, quando nos for dado ter uma opinião verdadeira.

199“The opinion which is fated to be ultimately agreed to by all who investigate, is what we

mean by the truth, and the object represented in this true opinion is the real.” (C.P.5.407) O termo “comunidade” éaqui substituído pela expressão “todos aqueles que investigam”.

4. OS TRÊS SENTIMENTOS LÓGICOS: FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE.

Num terceiro artigo desta série, intitulado “The Doctrine of Chances” (C.P.5.645-668), Peirce discute a questão da probabilidade, das inferências prováveis – aquelas que resultam no aumento do conhecimento. Interessa-nos aquela parte do texto que os editores dos Collected Papers intitularam “Three Logical Sentiments” (C.P.2.652-655), três sentimentos lógicos, porque nela Peirce regressa ao tema da “comunidade ilimitada”200

; porque nele se antecipam razões para a cisão entre teoria e prática que será objecto do próximo capítulo; e, finalmente, porque aqui se estabelece mais uma vez uma relação entre lógica e ética que redundará na concepção da ética como ciência normativa, na questão do auto-controlo racional e no senso- comum crítico.

O texto começa por esclarecer o sentido de “probabilidade”. Esta é uma ideia que essencialmente pertence a um tipo de inferência que se repete indefinidamente sendo que o “facto real” que lhe corresponde, como tinha sido estabelecido em C.P.2.650, é que um dado modo de inferência por vezes mostra ter sucesso e outras vezes não, e isto num ratio em última instância fixo. Assim sendo, só faz sentido falar de probabilidade em relação a um conjunto indefinido de casos e não em relação a um caso único ou individual: este é ou verdadeiro ou falso. É verdade que a consideração da probabilidade pode orientar a decisão empírica, efectiva, a propósito

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