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OS TRÊS SENTIMENTOS LÓGICOS: FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE

CAPÍTULO II A TEORIA DO INQUÉRITO

4. OS TRÊS SENTIMENTOS LÓGICOS: FÉ, ESPERANÇA E CARIDADE

Num terceiro artigo desta série, intitulado “The Doctrine of Chances” (C.P.5.645-668), Peirce discute a questão da probabilidade, das inferências prováveis – aquelas que resultam no aumento do conhecimento. Interessa-nos aquela parte do texto que os editores dos Collected Papers intitularam “Three Logical Sentiments” (C.P.2.652-655), três sentimentos lógicos, porque nela Peirce regressa ao tema da “comunidade ilimitada”200

; porque nele se antecipam razões para a cisão entre teoria e prática que será objecto do próximo capítulo; e, finalmente, porque aqui se estabelece mais uma vez uma relação entre lógica e ética que redundará na concepção da ética como ciência normativa, na questão do auto-controlo racional e no senso- comum crítico.

O texto começa por esclarecer o sentido de “probabilidade”. Esta é uma ideia que essencialmente pertence a um tipo de inferência que se repete indefinidamente sendo que o “facto real” que lhe corresponde, como tinha sido estabelecido em C.P.2.650, é que um dado modo de inferência por vezes mostra ter sucesso e outras vezes não, e isto num ratio em última instância fixo. Assim sendo, só faz sentido falar de probabilidade em relação a um conjunto indefinido de casos e não em relação a um caso único ou individual: este é ou verdadeiro ou falso. É verdade que a consideração da probabilidade pode orientar a decisão empírica, efectiva, a propósito

200

de um único caso, como o exemplo dos baralhos de cartas mostra201. Mas este exemplo mostra também que essa decisão racional não acarreta qualquer tipo de necessidade e que a razão é não tem qualquer valor no que diz respeito aos casos isolados.

Em que medida é que podemos, então, contar com a ideia de probabilidade? A partir de certo número de casos começa a desenhar-se uma proporção no número de sucessos e falhanços e a probabilidade de um modo de argumento fora definida, em C.P.2.650, como “a proporção dos casos em que traz consigo a verdade”. O problema está em que o número de inferências prováveis que um indivíduo faz em toda a sua vida é finito “e ele não pode ter a certeza absoluta de que o resultado médio irá estar de acordo com as probabilidades”202

. Assim, no caso de uma colecção de inferências prováveis finitas, estamos na mesma circunstância que perante uma inferência isolada: sem uma certeza de que não irá falhar. A mortalidade dos indivíduos faz com que o número das suas inferências seja finito e, consequentemente, que o seu resultado médio seja incerto. Como, então, confiar na razão e na sua capacidade inferencial se a ideia de probabilidade se reduzir à incerteza? “Parece que somos levados a isto; que a logicalidade inexoravelmente exige que os nossos interesses não sejam limitados. Eles não devem limitar-se ao nosso próprio destino mas devem abarcar toda a comunidade. E esta comunidade, por sua vez, não deve ser limitada, mas deve estender-se a todas as raças de seres com os quais possamos entrar numa

201

C.P.2.652.

202

relação intelectual imediata ou mediata.”203

Se a ideia de probabilidade envolve uma série indefinida de inferências, ela implica a possibilidade indefinida de realizar inferências, só satisfeita com um sujeito ele próprio indefinido ou ilimitado que deve alcançar, ainda que de forma vaga, “para além desta época geológica, para além de quaisquer limites”. O ponto de vista individual é insuficiente para determinar o resultado das inferências prováveis e é neste sentido ilógico, na medida em que não permite fazer sentido da ideia de probabilidade e derrota qualquer posssibilidade de justificação da indução. A logicalidade implica, assim, o “sacrifício” do ponto de vista individual, do caso isolado, do interesse egoísta associado à existência finita dos indivíduos. “Quem não sacrifique a sua própria alma para salvar o mundo é, tanto quanto me parece, ilógico em todas as suas inferências, colectivamente. A lógica está enraizada no princípio social.”204

A superação do egoísmo é um dos requisitos essenciais da lógica e Peirce estende esta incompatibilidade entre lógica e egoísmo até à rejeição do egoísmo como traço antropológico central, à maneira hobbesiana, fundando uma teoria da moralidade e da decisão. Para isso, mostra-se como a prossecução dos desejos de cada um é diferente do egoísmo. As aparentes manifestações de egoísmo e de possessividade envolvem uma componente “expansiva”, uma preocupação que ultrapassa o imediato, a saber, ou uma identificação com interesses colectivos, ou uma preocupação com o futuro distante.

203

“It seems to me that we are driven to this, that logicality inexorably requires that our interests shall not be limited. They must not stop at our own fate, but must embrace the whole community. This community, again, must not be limited, but must extend to all races of beings with whom we can come into immediate or mediate intellectual relation.” (C.P.2.654)

A base antropológica da logicalidade não é um qualquer extremismo heróico de auto- sacrifício, mas algo de bastante mais corrente e atestado: “que ele seja capaz de reconhecer a possibilidade, seja capaz de perceber que só são lógicas as inferências do homem que o tiver, e deve consequentemente ver as suas próprias como válidas apenas na medida em que seriam aceites pelo nosso herói. Na medida em que ele referir as suas inferências a esse padrão, ele conseguirá identificar-se com uma tal mente.”205

É a realidade desta possibilidade que “torna a logicalidade suficientemente atingível”.

O requisito da lógica é, então, “uma identificação concebível dos interesses de cada um com aqueles de uma comunidade ilimitada”, um sentimento que, dada a impossibilidade de provar, contra ou a favor, que a espécie humana, “ou qualquer raça intelectual”, existirá para sempre, é por Peirce identificado com a “esperança ou desejo calmo e alegre”, de que a comunidade possa durar para lá de qualquer data assinalável.

Assim, são três os sentimentos indispensáveis como requisitos da lógica: “interesse numa comunidade indefinida, reconhecimento da possibilidade deste se tornar no interesse supremo, e esperança na continuação ilimitada da actividade intelectual.”206

O primeiro aliás, o “sentimento social”, era já o que estava em causa na discussão dos métodos de fixação de crença (impulso social). E estes três

204

“He who would not sacrifice his own soul to save the whole world is, as it seems to me, illogical in all his inferences, collectively. Logic is rooted in the social principle.” (C.P.2.654)

205

“(…)that he should recognize the possibility of it, should perceive that only that man’s inferences who has it are really logical, and should consequently regard his own as being only so far valid as they would be accepted by the hero. So far as he thus refers his inferences to that standard, he becomes identified with such a mind” (C.P.2.654).

sentimentos lógicos são aproximados por Peirce aos dotes espirituais afirmados pela religião cristã: Fé, Esperança e Caridade.

O texto termina, então, tornando mais explícito o requisito último da lógica que já tinha sido afirmado em 1868: a esperança. Trata-se de um facto irracional, emocional, sentimental, sem razões contra ou a favor, uma pré-condição que, do ponto de vista cognitivo, parece levantar um paradoxo, porquanto o realismo de Peirce recusa qualquer incognoscível e aqui se afirma como pré-condição do inquérito a continuação infinita e indefinida dele – o que não é cognoscível207.

Para ter confiança na eficácia da indução, temos que supor um número de inferências indefinidamente grande, que só pode ser levado a cabo por uma comunidade sem limites. Quando se baseia na lógica, o indivíduo baseia-se em algo que transcende a sua individualidade e se radica na ideia de uma comunidade indefinida que continuará para sempre a investigar a realidade : é esta a base ética da lógica. Fumagalli208 fala até de uma “redução social” da lógica: através de uma argumentação que parte de premissas probabilísticas, conclui-se que o único modo de fazer escolhas verdadeiramente razoáveis é pôr como sujeito de interesse a comunidade e não o indivíduo. A investigação intelectual só faz sentido do ponto de vista ou na perspectiva de uma comunidade indefinida de investigadores. O indivíduo não tem garantias do sucesso da sua investigação e um empenhamento racional individualista estaria necessariamente sujeito à eventualidade do falhanço. Seria, em

206

C.P.2.655.

207

cf. Thompson, M., The Pragmatic Philosophy of Charles S. Peirce, Chicago, University of Chicago Press, 1963, p.90-91.

208

última análise, praticamente inútil. O critério da convergência ou acordo da comunidade actual de investigadores pode ser entendido como modelo ou como manifestação empírica desta exigência comunitária normativa.

5.CONCLUSÃO

A escolha da perspectiva biológica para abordar o conhecimento científico, fazendo dele uma das actividades de inquérito através das quais um organismo tenta superar a insatisfação da dúvida e fixar uma crença, adaptando-se assim ao seu ambiente, apresenta-se afinal em Peirce mais como uma problematização ou qualificação da atitude naturalista em filosofia, do que como uma sua aceitação justificada pelo evolucionismo. Que o método científico retire a sua superioridade do seu carácter normativo e não da sua eficácia adaptativa, apesar de admitida a possibilidade de ser o resultado de uma evolução orientada pela necessidade de adaptação, é uma questão que exige uma reflexão sobre as relações entre a teoria e a prática ou, se quisermos, sobre o valor epistemológico da utilidade deste tipo de conhecimento. O anti-instrumentalismo da concepção de ciência em Peirce será abordado no capítulo seguinte deste trabalho, mas o que foi dito neste permite desde já evitar qualquer incompatibilidade entre uma concepção anti-instrumentalista da ciência e o pragmatismo peirceano. Tal como este se expressa na máxima pragmática proposta no artigo “Como Tornar as Nossas Ideias Claras”, permite aliás considerar

que, a haver instrumentalidade, esta se dá exactamente a direcção inversa: é a acção que é instrumental para o conhecimento e não o conhecimento para a acção.

Assim, a relação entre lógica e ética mais uma vez afirmada no terceiro texto da série abordada neste capítulo, não significa uma submissão da teoria à prática. Antes decorre de uma concepção de racionalidade não fundacionalista, que opera com probabilidades e não com certezas. O falibilismo evita o cepticismo apelando para sentimentos que permitem sustentar razoavelmente a persistência na aplicação do método científico, mas não demonstram inequivocamente a sua eficácia: o optimismo epistemológico é uma esperança. Este apelo exige, por sua vez, a recusa do individualismo em epistemologia – como aliás no domínio da acção moral se apela ao altruísmo como motivação -, isto é, exige a noção de comunidade. Aquilo que falta esclarecer é o modo como este apelo ao sentimento supera o naturalismo de posições sentimentalistas como a de David Hume, e o seu consequentemente cepticismo.