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2. CONCEITOS E REFLEXÕES

2.2. A DIMENSÃO PÚBLICA DO ESPAÇO

A liberdade não é a liberdade moderna privada, da não-interferência, mas sim da liberdade política, de participação democrática que exige um espaço próprio: o espaço público da palavra e da livre ação (ABRAHÃO, 2008, p.23).

Espaço público e a urbanidade contemporânea

A amplitude de campos semânticos que o conceito de público tangencia, segundo Lavalle (2005), dificulta consideravelmente uma plena assimilação da pluralidade de seus sentidos (p.34). Apesar de sua origem advinda do conceito de privado ou de propriedade privada ser clara, ao longo dos últimos seis séculos, foram empregados e extinguidos diversos significados ao conceito. Sua abrangência pressupõe três grandes dimensões: i) público em oposição à privacidade, onde a vida pública se expõe com amplo acesso para a sociedade e

a privacidade se manifesta com um caráter doméstico, em uma esfera íntima e restrita; ii) público em objeção à propriedade privada, a qual volta-se para interesses particulares, eventualmente relacionada ao valor de uso, mas de forma geral, restrita aos moldes ideológicos do sistema capitalista, discutidos no primeiro capítulo; e iii) público como o que é exposto à luz pública, de sentido recente e associado à noção de publicidade, em contraposição ao privado como a informação não difundida, que se mantém de conhecimento particular ou módico.

Evidentemente que as três dimensões apontadas pelo autor refletem transformações históricas demandadas ao longo do tempo. É importante ainda apontar que os sentidos não se sobrepõem, senão acrescem uns aos outros, sendo necessária a conjugação de todos para constituir categoricamente um fenômeno público autêntico. Perspectiva essa, que subsidia a reflexão do espaço público sob um panorama consideravelmente abrangente. As demandas contemporâneas desencadeiam novas tipologias de espacialidade contidas entre público e privado: representam um conceito ampliado de espaço coletivo, onde se introduzem mecanismos de gestão privada de espaços públicos ou usos coletivos de espaços privados (Sansão, 2013).

Milton Santos (1996) sugere que qualquer espécie de prática espacial vivida em público seja analisada independentemente da definição de propriedade do espaço, pois sua natureza abrange duas instâncias indissociáveis: os componentes inerciais, representados pela materialidade e forma física e os componentes dinâmicos, as ações sociais espacializadas. O espaço, dessa forma, é parte integrante da dialética social que compõe a sociedade, da mesma maneira como a dialética social se realiza não sobre, mas sim em conjunto com o espaço, em uma confluência de inúmeras atuações: do Estado, do mercado e da articulação política da sociedade civil.

Neste contexto, a urbanidade é entendida como o conjunto de atributos materiais e imateriais que caracterizam a ordem urbana. Sendo uma representação física, o espaço público é um indicativo do que a sociedade representa (BORJA, 2013). Assim, utilizado como instrumento de análise e intervenção, o espaço público proporciona sua história particular e suas microdinâmicas entre agentes e espaços simultâneos a da própria cidade, representando uma relação intrínseca entre a dimensão local e a ampliada (SANSÃO, 2013).

Entendo, de um modo ampliado, que o conceito de urbanidade seja inerente à arquitetura do espaço público, de um modo geral. Refiro-me à urbanidade inerente às diferentes escalas do espaço público, desde o desenho do

corrimão da escadaria da praça, que em algum momento vai dar guarida à mão do velho, passando pela largura da calçada, chegando até à definições sobre o desenho de ruas, quarteirões e bairros inteiros. Cada um desses elementos, vindos de diferentes escalas, tem a sua contribuição à condição de urbanidade, na medida em que cada um deles tem uma qualidade arquitetônica intrínseca que vem da adequação, melhor ou pior, da sua forma ao corpo, individual e coletivo (AGUIAR, 2012, p.2).

Aguiar (2016), por sua vez, vincula os atributos qualitativos da constituição do espaço em três dimensões baseadas nos conceitos de legibilidade e funcionalidade, já explorados de diferentes formas por autores como Jacobs (1961), Lynch (1960), Gehl (1987), entre outros. Assim, a dimensão local é associada à arquitetura urbana, vista e entendida com mais facilidade na escala do pedestre. É a visualização um trecho de rua ou uma praça, “tudo o que o habitante urbano tem, via de regra, à sua disposição para localizar-se, ainda que a informação ali existente possa pouco mostrar, visualmente, do que ocorre no quarteirão vizinho” (AGUIAR, 2012, p.5). É definida em primeiro momento pela sua condição e características espaciais evidentes na forma e desenho urbano. No momento seguinte se manifesta na funcionalidade, que não implica necessariamente na presença de segurança ou conforto na relação do corpo com a cidade.

Já a escala local pressupõe uma simultaneidade à vivência de escala global, pois a condição de urbanidade resulta da sinergia entre as duas dimensões. Uma configuração espacial local, por exemplo, se duplicada para outro contexto global, terá exatamente a mesma conformação espacial, mas apresentará distinta condição de atividades e movimento de pessoas. A sinergia entre as duas dimensões resulta em um atributo imaterial do espaço: a percepção subjetiva das pessoas em uma dimensão simbólica e cognitiva do espaço urbano como fator de qualidade espacial. É o que Aguiar (2012; 2016) denomina como a sensação de acolhimento e o que Sansão (2013) designa como o conceito de amabilidade urbana, ambos associados à cidade como abrigo, a forma como a comodidade e o conforto das pessoas é alterado de acordo com determinada relação entre as dimensões global e local.

A presença de atributos físicos de qualidade como mobiliário urbano, arborização ou abrigo para intempéries, por exemplo, podem ser catalizadores potenciais de atividade e presença humana em um determinado espaço público na escala local. Porém, a falta de acessibilidade ou a fragilidade de segurança do mesmo espaço, características da dimensão global de uma cidade podem, pelo contrário, ocasionar em seu esvaziamento. Evidencia-se, assim, uma relação intrínseca entre características materiais do espaço,

sejam elas mais flexíveis ou rígidas, e a percepção do espaço pelas pessoas e a apropriação.

Sansão (2013) alerta ainda sobre as especificidades que a urbanidade foi adquirindo ao longo do processo de desenvolvimento urbano: o estímulo pela individualização e privacidade contribuíram para o esvaziamento (ou formas de privações de acessibilidade) dos espaços da cidade. Tido como inseguros e desprotegidos à grande parcela da população, os espaços públicos vivenciam mais distanciamento, isolamento e medo do que a livre apropriação. Com as ruas e espaços públicos vazios, a vigilância natural produzida pela presença das próprias pessoas, os olhos da rua de Jacobs, tende a ser substituída. Surge, assim, uma necessidade de segurança assimilada muitas vezes ao ideal de privatização (BORJA, 2013). A obsessão contemporânea em demarcar fronteiras, segundo Bauman (2009), deriva de uma construída sensação de medo que se retroalimenta, que “já tem vida própria” (p. 54). É o desejo de recortar para si um lugar seguro e acolhedor capaz de resistir a um mundo imprevisível e incessantemente em tensão.

A arquitetura do medo e da intimidação espalha-se pelos espaços públicos das cidades, transformando-a sem cessar – embora furtivamente – em áreas extremamente vigiadas, dia e noite (...) o espaço público foi a primeira vítima colateral de uma cidade que perde a árdua luta enfrentada para resistir ao avanço inexorável da globalização (BAUMAN, 2009, p.63-66).

Justamente por haver essa demarcação de fronteiras progressiva, entretanto, é que repentinamente afloram novas diferenças de que ainda não se tinham consciência, de forma a tornar esse processo interminável. As habitações são construídas cada vez mais para proteger seus moradores do que para integrá-las a um projeto mais amplo da cidade a que pertencem. O confronto com o desconhecido, dessa forma, se torna progressivamente mais raro e intimidador. Viver nas cidades é uma contraditória experiência, onde os mesmos aspectos da vida urbana que atraem as pessoas são, alternadamente, os causadores de sua repulsão (BAUMAN, 2009). Assim, a potencialidade do espaço público como lugar das trocas é muitas vezes negado pela ausência, por falta de investimentos, pela fragmentação das cidades e pelas limitações de apropriação, que impulsionam uma descredibilidade à realidade urbana (SCHULZ, 2006).

São Paulo só é metrópole do capitalismo global nas redes cibernéticas, nos restaurantes e boutiques de luxo, nas pequenas ilhas de afluência guardadas por cães, seguranças e toda uma arquitetura de campo de

concentração que protege seus felizes prisioneiros. O resto é o que ninguém quer ver e todos se esforçam por ignorar (SANTOS, 2002, p.111).

Observamos, segundo Bauman (2009), a contraposição entre implantação de políticas urbanas cada vez mais específicas à escala local, em descompasso com um momento de processos essencialmente estruturados em escala global. Ações que só fazem estagnar, historicamente, a condição urbana: como se conquista ou se preserva ter o direito a ter direitos.

O direito à cidade

[...] certos direitos abrem caminho, direitos que definem a civilização (na, porém frequentemente contra a sociedade - pela, porém frequentemente contra a “cultura”). Esses direitos mal reconhecidos tornam-se pouco a pouco costumeiros antes de se inscreverem nos códigos formalizados. Mudariam a realidade se entrassem para a prática social: direito ao trabalho, à instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida. Entre esses direitos em formação figura o direito à cidade (não à cidade arcaica mas à vida urbana, à centralidade renovada, aos locais de encontro e de trocas, aos ritmos de vida e empregos do tempo que permitem o uso pleno e inteiro desses momentos e locais, etc.) (LEFEBVRE, 1969, p. 143).

Henri Lefebvre, em A Revolução Urbana (1969) questionou os processos de urbanização funcionalista e a produção do espaço visada prioritariamente a garantir rentabilidade, desassociada da dimensão real de vivência nas cidades. Contribuiu também para a discussão da urbanização como processo essencial de sobrevivência do capitalismo enquanto meio de absorção de excedentes de capital, condicionada a testemunhar uma ininterrupta luta política e de classes. Introduziu-se neste momento o questionamento da morte da cidade enquanto formação histórica e objeto de consumo cultural e de esteticismo, bem como a persistência do urbano, que pressupõe a origem de um novo homem, decorrente necessariamente de uma nova práxis urbana. Dentre os instrumentos intelectuais levantados pelo autor para a realização deste processo está a utopia experimental, que observa na prática suas implicações e consequências.

Quais são, quais serão os locais que socialmente terão sucesso? Como detectá-los? Segundo que critérios? Quais tempos, quais ritmos de vida cotidiana se inscrevem, se escrevem, se prescrevem nesses espaços ‘bem- sucedidos’, isto é, nesses espaços favoráveis à felicidade? É isso que interessa. (LEFEBVRE, 2001, p.110).

Para Lefebvre, a sociedade urbana pressupõe necessidades sociais e necessidades específicas, as primeiras satisfeitas por produtos, bens materiais consumíveis,

equipamentos comerciais e culturais; e as segundas carentes de atividade criadora: “vive e sobrevive um desejo fundamental, do qual o jogo, a sexualidade, os atos corporais tais como o esporte, a atividade criadora, a arte e o conhecimento são manifestações particulares e momentos que superam a divisão parcelar dos trabalhos” (2001, p. 105). Apenas a força social pode se encarregar de iniciativas revolucionárias no decorrer de uma longa experiência política, sua atividade criadora, sendo a realização de um programa de sociedade urbana e a cidade renovada, suas obras. Ainda que não aja por si, sem ela não haveria um processo real de desconstrução das estratégias de segregação dominantes, pois são intrínsecas a sua existência.

A integração sem ela não tem sentido (...) quando a classe operária se cala, quando ela não age e quando não pode realizar aquilo que a teoria define como sendo sua “missão histórica”, é então que faltam “sujeito” e o “objeto”. (LEFEBVRE, 2001, p.110).

A Revolução Urbana também introduziu, e pela primeira vez, o conceito de direito à cidade, que, muito além do que ter acesso aos recursos urbanos, é ter o direito à vida urbana e de conduzir o desenvolvimento da cidade e seus habitantes, de forma efetivamente democrática. Significa conscientizar os cidadãos, consumidores dos recursos urbanos, a importância de expressarem suas necessidades por atividades criativas de experimentação urbana. Significa criar processos de capacitação para produção de práticas coletivas, para participação pública, para acessar e influenciar decisões que produzem efetivamente o espaço urbano. Da mesma forma como acessar a materialização desta participação, que incluam o livre acesso e o apropriação de um novo espaço.

Para Lefebvre o direito à cidade manifesta-se como a forma superior dos direitos, enquanto direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e à habitação. Nesse sentido, segundo o autor, acabar-se-ia com a separação cotidianidade/lazer, vida cotidiana/festa e, justapondo-se na cidade os espaços do trabalho produtivo, da obra e do lazer. A cidade seria, nesta direção, a obra perpétua dos seus habitantes, contrária à ideia de receptáculo passivo da produção e das políticas de planejamento (CARLOS, 2007, p.117).

Manifesta-se, assim, como uma espécie de síntese dos direitos, representando diversos outros: à liberdade, à individualização, à habitação e à habitabilidade da cidade. Ou seja, compreender o habitar manifesto em diversas escalas: da casa, vizinhança, rua, bairro ou cidade, pela liberdade plena do uso. O direito à obra (atividade participante) e o direito à

apropriação (bem distinto da propriedade) transformaria a vida urbana em uma obra perpétua de seus habitantes.

Segundo o autor essa transformação deve ocorrer na escala local, ou ordem próxima para Lefebvre, oposta à escala global ou ordem distante, imposta de forma opressora na realidade cotidiana. É na ordem próxima, portanto, que se reproduzem as relações de produção e de coexistência, propriedade da vida imediata; que as pessoas podem se privilegiar de outra realidade urbana. Em oposição ao método analítico dos planos urbanos técnicos, é na realidade do experimentar a vida urbana na escala local que identificam-se as demandas verdadeiramente.

Harvey (2008), por sua vez, coloca o direito à cidade como um dos direitos humanos mais preciosos e ao mesmo tempo mais negligenciados, porque as ações urbanas locais, ditadas muitas vezes internacionalmente, fragmentam em diversas partes a prática sócio espacial urbana e dificultam o entendimento do que de fato está realizando-se nas cidades. Afirma ainda que o direito à cidade é muito mais do que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito coletivo, que depende do exercício de um poder social para remodelar os processos de urbanização, um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade.

Os rumos da cidade, assim, dependem também e não menos de se desfazerem as hierarquias que oprimem as relações sociais e espaciais entre as pessoas que compõem a sociedade. “Orientar o crescimento na direção do desenvolvimento, portanto na direção da sociedade urbana, isso quer dizer antes de mais nada: prospectar as novas necessidades [...] e propor o que não preexiste como objetos” (LEFEBVRE, 1969, p.115).

Estão construindo-se cada vez mais sujeitos de nova imagem, cujas atitudes de resistência buscam experiências urbanas cada vez mais alternativas. No mundo de hoje, os espaços públicos, privados, coletivos e virtuais interpenetram-se no sentido de articular identidades cada vez mais plurais. E se, de alguma forma, elas vierem a se unir?

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