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3. EXPERIMENTAÇÕES DA SUPERVIVÊNCIA

3.1. Unidade caso I: Festival Baixo Centro

Figura 9. Que cidade quero ser? Festival Baixo Centro.

Fonte: baixocentro.org, 2013.

Na lei (e ao redor dela) existe o exercício. O fazer das coisas.

O que pensar delas é jurisprudência, dizem. É a média de poucas medidas. Outros chamam de sabedoria popular.

Como escolhemos fazer é que traduz o common, o comum entre o manifestar-se e o conviver. É assim como a importância do bem feito quando alguém escolher fazer bonito.

Vira caso, vira impulso.

A rua existe como uma contradição: quem caminha, quem pedala, quem passa, quem dirige, quem sinaliza, quem lê. Ao mesmo tempo em que todos *têm* a rua para si, poucos entendem que cada um ali a tem. Ao mesmo tempo e num mesmo espaço!

[...] Multiplique as origens | Aceite interferências | Confunda os gêneros | Valorize as polifonias | Exagere paradoxos

Pois é. Mas como a realidade é muito menos sonhada do que tentada, só reagida... proponha antes de tudo.

Logicamente, depois de aprender os passos para a dança (e a firmeza que todos temos que ter ao propor alguma ação para o espaço público), é tempo de improvisar a dança (Manifesto Baixo Centro, 2013).

A região central e o cenário das últimas décadas

As dinâmicas ocorridas no centro da cidade de São Paulo, indagando-se sobre sua inserção no debate público, evidenciam uma complexidade na leitura de seu território. Suas múltiplas formas de ocupação provenientes de diferentes classes sociais ao longo do tempo o transformaram em um complexo palimpsesto. Essa característica não é uma exclusividade da metrópole, senão, um aspecto comum às grandes capitais brasileiras. O abandono histórico das elites locais e a ausência do Estado, diversas vezes de forma intencional, desfavoreceu as regiões centrais enquanto centralidades, tornando-as suscetíveis a processos de reajuste de renda fundiária às exigências contemporâneas de mercado, sobretudo turísticas (MARICATO, 2011, VILLAÇA, 2012). Desde as primeiras intervenções urbanas no Brasil a partir da década de 1920, pode-se observar disputas entre Estado, mercado imobiliário e população, pela permanência ou pela reordenação urbana das áreas centrais, que são brevemente discutidas neste capítulo.

Os centros urbanos das grandes capitais, via de regra, se mantiveram como referências de trabalho, de equipamentos culturais e de consumo de grande parte da população, ofertando enorme variedade de comércios e serviços. Isso se deu principalmente pela estruturação morfológica das cidades, que foram construídas historicamente em pontos de melhor acessibilidade, passíveis de atender grande parte das cidades, apesar de seu crescimento (BONDUKI, 2008; LAMAS, 2004). A política contemporânea do mercado imobiliário neoliberal, vale-se da acessibilidade, da oferta de infraestrutura e das dinâmicas econômicas presentes nessas regiões. A comercialização e especulação dos espaços públicos buscam rentabilidade econômica a partir da construção de imagens e a apropriação de regiões de interesse histórico. Segundo Bassani (2010), essa estratégia econômica fatalmente vem acompanhada da expulsão das classes já instaladas, predominantemente populares, propondo que os espaços sejam convertidos a estimuladores de consumo das classes de mais alta renda.

Esse processo pôde ser identificado na cidade de São Paulo desde sua urbanização, no final do século XIX, quando foi iniciado um processo ininterrupto de crescimento urbano, estruturado e desenvolvido basicamente em decorrência da produção e comércio cafeicultor. Sua posição estratégica, entre importantes territórios produtores de café no interior do Estado e o porto de Santos, favoreceu o rápido desenvolvimento da região central da cidade como centro político-administrativo, comercial e cultural da região (LANGENBUCH, 1971). A construção da rede ferroviária foi fundamental neste processo,

principalmente com a industrialização da produção, inaugurando em 1865 a São Paulo Railway e dez anos mais tarde a Sorocabana. Fundamental também para favorecer um intenso fluxo imigratório e, consequentemente, a expansão da cidade.

Invertia-se, portanto, a polarização da cidade. O que havia sido a sua porta de entrada, local de habitação do governador e das famílias mais abastadas, na parte leste da colina, transformava-se agora em zona industrial. O lado oposto, que durante séculos foi considerado o quintal da cidade, o Vale do Anhangabaú, transformou-se no ponto central da cidade, no seu cartão de visitas, a partir do qual se tinha acesso, pela Avenida São João e pelos seus viadutos, aos bairros residenciais de alta renda (REIS FILHO, 1994, p.49).

Assim, a região central passou a ser ocupada majoritariamente por operários e trabalhadores, o que impulsionou o desenvolvimento de novos bairros de caráter aristocrático e exclusivamente residenciais fora deste perímetro. Surgiram assim, os bairros Campos Elíseos e Higienópolis (Fig.10), além da abertura da Avenida Paulista, em 1891.

Figura 10. Edifício Vila Penteado no bairro Higienópolis.

Fonte: jornaldocampus.usp.br, 2008.

Essas diretrizes urbanas foram a princípio estimuladas pelo poder municipal, por meio da isenção de impostos durante os primeiros anos (REIS FILHO, 1994). Essa transferência de valor agregado ao território criou uma nova centralidade, ainda que muito próxima, claramente ligada às transformações econômicas que ocorreram na passagem do

século. Iniciou-se assim o processo de especulação que ordenou toda a lógica de ocupação sócioespacial da metrópole (ARANTES et. al., 2009). Em meados do século XX, a expansão do centro histórico atendeu à polarização das centralidades econômicas, seguindo um percurso evidente em direção ao quadrante sudoeste da cidade. As regiões ao longo deste eixo foram caracterizadas por uma intensa exploração do território pelo mercado imobiliário (VILLAÇA, 2012).

Pulou da Rua do Arouche/Barão de Itapetininga para a Rua Augusta/Avenida Paulista; a partir da década de 1970, para a Avenida Faria Lima; e depois para a Marginal Pinheiros/Berrini – assumindo a forma de uma enorme e descontínua área central, entremeada de bairros residenciais das camadas da elite. Apesar de difícil delimitação geográfica, essa área existe, indiscutivelmente (VILLAÇA, 2012, p.133).

Ao passo que as centralidades de movimentação econômica mais substanciais saíram do perímetro central da cidade, a região foi caracterizada pela ausência de investimentos na implantação ou manutenção de infraestrutura pública. Esse processo foi caracterizado pela valorização da região enquanto importante núcleo de comércio varejista e de oferta de serviços, privilegiado pelo maior abastecimento de equipamentos de mobilidade pública da cidade, abrangendo grande parte dos serviços de órgãos públicos. Além de caracterizar-se fortemente pela presença popular e pelo comércio informal (Fig. 11), em meados do século XX, essa dinâmica foi acompanhada de um período de significativa verticalização e grande adensamento restritivo ao horário comercial. A concentração de empregos na região central totaliza cerca de um terço de todos os empregos formais da cidade (FIPE, 2016), mantendo-a com importante participação na oferta de empregos e no retorno econômico ao Estado pelo faturamento absoluto (ARANTES et. al., 2009).

Figura 11. Comércio informal no Viaduto Santa Ifigênia.

Foto: Adri Felden(argosfoto.photoshelter.com), 2013.

Processo esse que contribuiu também para a redução significativa da população moradora entre as décadas de 1970 e 2000, como pode ser observado abaixo (Quadro 2):

Quadro 2. Taxas de Crescimento do Município de São Paulo. Taxas de Crescimento

Município de São Paulo, Subprefeituras e Distritos Municipais 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010 Unidades Territoriais Taxas de Crescimento 1950/60 1960/70 1970/80 1980/91 1991/00 2000/10 MSP 5,48 4,91 3,67 1,16 0,88 0,76 2,12 0,28 1,69 -1,24 -2,24 1,43 Bela Vista 2,16 1,21 2,82 -1,56 -1,41 0,95 Bom Retiro 1,62 -1,64 0,41 -2,47 -3,35 2,45 Cambuci 1,15 -0,02 1,22 -1,72 -2,80 2,55 Consolação 3,16 1,51 2,47 -1,35 -2,20 0,51 Liberdade 2,08 0,47 1,44 -0,71 -2,29 1,11 República 2,99 0,41 1,94 -0,49 -2,11 1,79 Santa Cecília 2,42 0,31 1,30 -0,88 -2,06 1,64 0,75 -0,90 1,10 -1,74 -3,29 1,63

Fonte: IBGE - Censos Demográficos, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000, 2010. Elaboração: Secretaria Municipal de Desenvolvimento - Departamento de Estatística e Produção de informação.

Essa vacância habitacional foi preenchida aos poucos por uma ocupação que a demandava: predominantemente de classes populares em situação encortiçada, vivendo em cômodos precários pelos quais paga-se um valor exorbitante por metro quadrado (NAKANO

et. al., 2004). Kowarick (2013) aponta que enquanto no mercado formal o valor mensal do

aluguel representa cerca de 0,8% do valor total do imóvel, nos cortiços o mercado informal chega a arrecadar mensalmente um índice de até 3,35%. De acordo com a pesquisa do autor, realizada em 92 cortiços na região da Luz entre os períodos de 1998 a 2012, foi levantado que residiam 765 famílias com o valor médio de locação de R$13,20 por metro quadrado, valor que representava mais do que 200% do valor de moradias unifamiliares com boas condições de habitabilidade localizadas também no perímetro central da cidade.

Uma análise sobre a relação custo - benefício dos cortiços, que apresentam área média de 12 metros quadrados por família, este valor representa um dos mais altos da cidade de São Paulo. No entanto, a moradia coletiva precária de aluguel na região central ainda consiste em uma alternativa habitacional concreta para a população trabalhadora de baixos salários (faixa entre um e três salários mínimos), que aponta as vantagens de proximidade ao emprego e de redução do custo de transporte (NAKANO et. al., 2004).

Os dados censitários do período 2000-2010 (Quadro 2) revelaram uma dinâmica díspare entre as taxas de crescimento do Município de São Paulo em relação aos 13 distritos da subprefeitura da Sé. Revelou-se em dados o que era possível observar nas ruas: uma inversão da perspectiva de leitura e de ocupação da região, sobretudo no que diz respeito à tendência de perda de população. Esse processo iniciou-se principalmente a partir dos anos 1980 com a atuação das organizações de movimentos sociais de luta por moradia, decorrente do agravamento da crise econômica na época e do aumento do número de cortiços e suas condições de precariedade. No período entre 1983 e 1986, aconteceram as primeiras experiências de mutirões, quando o governo oferecia terra e material de construção e as famílias construíam suas casas no regime de autoconstrução (MIAGUSKO, 2008).

No final dos anos 1980, os movimentos se articulam em torno da proposta dos mutirões de autogestão, transformados em política pública e consolidados na gestão de Luiza Erundina (1989-1993), quando foram produzidas mais de 10.500 unidades habitacionais neste regime. Criou-se uma parceria direta entre as associações e movimentos organizados, de forma que os moradores tivessem autonomia para gerir e decidir sobre os trabalhos que realizavam. Segundo Bloch (2007), para além da concretização das moradias, os mutirões representaram experiências potentes, que

fortaleceram muito os movimentos sociais. Nos anos seguintes, aproximadamente entre 1991 e 1997, a pauta se concentrou nos casos de despejos e de violência contra a população encortiçada, e iniciou um movimento de ocupação de edifícios vazios como principal forma de resistência (Fig. 12).

Figura 12. Ocupação na Avenida São João, no centro de São Paulo.

Fonte: ruivolopes.blogspot.com.br, 2015.

Em geral, esses edifícios pertencem a massas falidas, a órgãos públicos ou a proprietários particulares com altas dívidas de impostos ou documentação irregular. Segundo Bloch (2007), a ULC - Unificação das Lutas de Cortiços (1991) pode ser considerada a matriz dos movimentos dos sem-teto da região central da cidade de São Paulo. Como dissidência da ULC, surgiu o Fórum dos Cortiços (1993), entidade aglutinadora das organizações articuladas pela mesma causa.

Sua expressão foi significativa: em pouco mais de uma década o Condomínio “Pirineus” na Santa Cecilia, edifício habitacional destinado à população encortiçada, o Projeto “Hotel São Paulo” no Vale de Anhangabaú e o edifício Maria Paula foram transformados em apartamentos de habitação de interesse social, alguns deles a partir da iniciativa PAR (Programa de Arrendamento Residencial), apresentada adiante. Após um período de interrupção dos projetos de habitação na região central surgiram muitos outros movimentos articulados, como o MNLM - Movimento Nacional de Luta por Moradia e a FLM – Frente de Luta por Moradia.

A retomada da pauta habitacional na região liderada majoritariamente por movimentos sociais de ocupação de edifícios vazios despertou o interesse de iniciativas privadas do mercado imobiliário. Seguindo a mesma conjuntura político-econômica neoliberal presente nas questões urbanas, do discurso de falta de recursos públicos aliado ao interesse de associar-se ao setor construtivo de iniciativa privada, culminaram novamente no surgimento de mecanismos de flexibilização da legislação urbana (SILVA, 2014). Assim, promulgou-se em 1997 a Operação Urbana Centro, visando o adensamento da região. Esperava-se uma atuação mais livre do mercado imobiliário para a valorização da área e uma consequente expulsão das classes de baixa renda instaladas no local. A Operação Urbana Centro inaugurou índices recordes nos Coeficientes de Aproveitamento, variando de 6,0 a 12,0, ainda que o índice máximo na cidade fosse 4,0. Contudo, naquela época ainda não havia grande interesse da iniciativa privada em investir na área central. E, das 101 propostas aprovadas na Operação durante os sete anos de vigência, apenas 33 efetivamente se referiam à compra de potencial construtivo (FERREIRA, 2003).

Se o período entre 1999 e 2005 foram os anos de consolidação da prática de ocupação de edifícios vazios no centro da cidade, o período imediatamente posterior, entre os anos 2005 e 2012, foi marcado por uma forte repressão aos movimentos de moradia, com o cumprimento imediato dos processos de reintegração de posse dos edifícios ocupados, ao mesmo tempo em que ocorria a paralização dos programas habitacionais desenvolvidos nas gestões anteriores e a redução significativa da quantidade de ocupações. Em oposição à tais iniciativas, há outras perspectivas de atuação urbanística no centro da cidade de São Paulo, que defendem a necessidade de garantir espaço para a população de baixa renda instalada na região, principalmente com a criação de programas habitacionais e programas de geração de empregos e renda (BONDUKI, 2000). Nos últimos trinta anos, foram elaborados seis planos que resultaram na formação do PROCENTRO - Programa de Requalificação Urbana e Funcional da Área Central, que em 2001, junto com a Administração Regional da Sé desenvolveu o chamado Plano Reconstruir o Centro, considerando reformas de acessibilidade e a subutilização de edifícios e terrenos. Esse plano investia na diversidade funcional e social da região, procurando enfatizar planos de ação de oito programas básicos: Andar no Centro, Morar no Centro, Trabalhar no Centro, Descobrir o Centro, Preservar o Centro, Investir no Centro, Cuidar do Centro e Governar o Centro. Muitos deles eram projetos de conscientização acerca da importância da valorização e da devida manutenção do patrimônio histórico (NOBRE, 2009).

Em 2003, a Emurb - Empresa Municipal de Urbanização deu continuidade às tentativas de obter financiamento do BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento iniciadas com esse intuito já em 1996. Baseada nos princípios de estruturação do PROCENTRO, acrescidos de determinadas exigências da instituição, angariou-se um empréstimo de US$ 150 milhões de dólares para desenvolver o programa. Cinco linhas de ação delineavam o programa: reversão da desvalorização imobiliária e recuperação da função residencial; melhorias do perfil econômico e social da população residente; recuperação do ambiente urbano, transporte e circulação; e o fortalecimento institucional do Município. Dentro do primeiro plano de ação foi implantado o PAR – Programa de Arrendamento Residencial, associado à investimentos da Caixa Econômica Federal, que previa a reforma ou construção de unidades residenciais de interesse social, para famílias com renda de até três salários mínimos. Os edifícios Riskallah Jorge, Maria Paula, Celso Garcia, Brigadeiro Tobias, Ipiranga, Joaquim Carlos e Hotel São Paulo participaram em diferentes escalas do programa (NOBRE, 2009; PMSP, 2005).

Em relação às perspectivas de melhorias do perfil econômico e social da população residente, foram criadas leis de incentivo seletivo de isenção fiscal para atração de novos investimentos. Este plano de ação também abrangia o controle e fiscalização do comércio de rua e um programa de requalificação de ruas comerciais. E, na recuperação do ambiente urbano, foram implantados projetos de restauro de patrimônio histórico como a Galeria Olido e o Mercado Municipal, além da isenção de IPTU por dez anos para a recuperação da fachada de outros patrimônios e transferência de potencial construtivo (NOBRE, 2009). Observou-se que a falta de um plano urbanístico que estruturasse efetivamente as ações pontuais de intervenção urbana faz com que seus resultados ficassem restritos aos lotes ou ao entorno imediato, sem que houvesse transformações significativas no espaço urbano. Gradualmente, edifícios ociosos na região central da cidade tornaram-se novamente atrativos por uma promissora rentabilidade proveniente de iniciativas de reurbanização e outros tipos de investimento, seja do poder público ou de iniciativa privada (VILLAÇA, 2012, BONDUKI, 2000, KOWARICK, 2007).

Neste contexto, inseriu-se o Projeto Nova Luz (2005 - 2013), de autoria e responsabilidade da Secretaria Municipal de Planejamento. Ainda que a licitação devesse cumprir um plano urbanístico aprovado previamente pelo Poder Público Municipal, pressupunha-se um consórcio, ou seja, novamente a implementação de um mecanismo de flexibilização da atuação do setor imobiliário. Em relação às desapropriações, por exemplo, tido como instrumento legal instituído para ser usado em caso da utilidade pública ou

interesse social, o contato com as famílias, o pagamento de indenizações e a demolição foram de competência exclusiva de responsabilidade da concessionária que realizava a seleção dos imóveis.

Neste caso, os parcelamentos do solo em lotes residenciais de menor dimensão e múltiplas propriedades passariam a ser um loteamento de grande potencial construtivo e que poderia ser usado em favor da concessionária, de acordo com seus interesses. O que diferenciaria o antigo do novo proprietário desses imóveis na região da Luz seria, portanto, seu poder de compra.

Ilha reluzente em plena Cracolândia, uma das áreas mais degradadas da cidade, a Sala São Paulo parece ser a expressão acabada e atual desse disparate chamado Brasil [...] A justaposição ostensiva entre luxo e lixo talvez a torne, para alguns, escandalosa e intolerável. Contudo, ela representa a regra e não a exceção de uma “sociabilidade” com a qual já nos acostumamos a conviver, como se fosse uma segunda natureza. Se o contraste entre a Sala e seu entorno repõe conhecidas figuras contraditórias da experiência brasileira, como a superposição de vanguarda e atraso, a novidade, neste caso, consiste em não mais escamotear o caráter revanchista do processo em curso (FIX, 2000, p.8).

Os terrenos ou imóveis privados permaneceriam de propriedade privada, porém seriam monopolizados pela concessionária e teriam valorização mais rápida do que o normal, por estarem dentro do plano urbanístico do consórcio. O governo municipal já havia recebido do consórcio responsável pelo estudo urbanístico o mapa preliminar das desapropriações e o estudo de viabilidade econômica do projeto, mas ainda não estavam claramente explícitos quais seriam os benefícios públicos desse investimento (FERREIRA, 2003). Os dados publicados na apresentação do projeto indicavam a necessidade de desapropriar e demolir, no início de sua implantação, ao menos 89 imóveis: três estacionamentos, 27 prédios e 59 galpões ou lojas. Esses imóveis corresponderiam aos calçadões, ciclovias e parques previstos no projeto de reurbanização (Fig. 13).

Figura 13. Rua Vitória ilustrada no Projeto Nova Luz.

Fonte: prefeitura.sp.gov.br, 2010.

Apesar de todos os questionamentos do projeto, foi aprovado pela Câmara Municipal em 2005, ano em que as desapropriações e demolições foram iniciadas, embora tenha sido somente em 2010 que a Prefeitura tenha apresentado o projeto urbanístico preliminar com as diretrizes básicas para a região delimitada no bairro da Luz. Os dados sobre o projeto ficaram disponíveis por cerca de dois meses para consulta pública e esclarecimento das ações de projeto para a população no site da prefeitura e em um posto de atendimento na Rua General Couto de Magalhães, único edifício mantido em dois quarteirões vizinhos por suas condições de tombamento, entre a Sala São Paulo (1) e a Estação da Luz (2). O projeto foi definitivamente interrompido em 2014 por pressão social, questões políticas e inviabilidade econômica, mas as demolições e as ruínas de diversas edificações ainda permanecem (Fig. 14). Ou seja, ainda que não tenha sido implantada, a proposta provocou significativas alterações no uso, nas formas de apropriação e reforçou a dominação do território pela dinâmica imobiliária.

Figura 14. Quarteirões devastados na Rua General Couto de Magalhães.

Fonte: Imagem satélite modificada pela autora e fotos do acervo pessoal da autora, 2014.

Recentemente, uma das ações fundamentais a favor do redimensionamento dessa lógica de produção do espaço urbano foi a promoção de audiências públicas envolvendo vereadores, técnicos e articulações da sociedade para a formulação do PDE - Plano Diretor Estratégico em 2014. Foram incluídas diretrizes para a desconcentração territorial, mobilidade urbana, limitações do tamanho das unidades habitacionais e do número de garagens em eixos de mobilidade, a fim de estimular o uso dos corredores de ônibus, regimes de outorga e classificação das Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), entre outros dispositivos (SÃO PAULO, 2014).

Também foi estabelecido um horizonte de planejamento até 2029 e criou-se um marco regulatório inédito em São Paulo, com grande contribuição de políticas lúdicas, entre elas o projeto Centro Aberto (Fig. 15, 16 e 17) e a abertura de 20 ruas e avenidas para

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