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A dimensão social da família e sua diversidade na contemporaneidade

Cientistas sociais de todas as partes do mundo há muito têm constatado que as formas de organização da família variam muito no tempo e no espaço, havendo múltiplas possibilidades de organização dos laços de consangüinidade e de afinidade entre as pessoas (PARKIN e STONE, 2004).

5 Pesquisas realizadas em Santa Catarina são ilustrativas sobre este ponto. O trabalho de Fernanda Cardo-zo (2006) sobre parentalidades travestis recupera depoimentos de travestis que foram obrigadas a abando-nar a escola por esta razão. As observações de Débora Sayão (2005) sobre jogos e performances infantis na pré-escola mostram que crianças são consideradas “fora de seu gênero” quando não correspondem

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Não há dúvidas, porém, de que com o advento da modernidade nas so-ciedades ocidentais os modelos familiares se transformaram significativamente.

Ao longo do século 20, isto se deu especialmente a partir da difusão crescente de práticas e de valores democráticos relacionados à diminuição da ascendência religiosa sobre a vida mundana e à consolidação de um ideário de identidade individual, o qual faculta aos sujeitos a possibilidade de organizarem suas vidas com base em escolhas pessoais diante de temas como o trabalho, a experiência religiosa, a sexualidade, a política, o lazer e a família, entre tantos outros.

Trata-se de um longo processo estudado por autores como Norbert Elias (1990), Georg Simmel (1988), Michel Foucault (1977), Anthony Giddens (1993) e David Harvey (2006), entre outros, que mostraram como a modernidade trouxe mudanças relativas à constituição de sujeitos que buscam se constituir como in-divíduos autônomos em relação a seus vínculos sociais e familiares. Esse processo está fortemente associado à melhora das condições de saúde e de educação da po-pulação, ao aumento da expectativa de vida, ao ingresso massivo das mulheres no mercado de trabalho, à diminuição das jornadas de trabalho, à maior capacidade de enfrentamento das catástrofes naturais e das epidemias etc.

Neste cenário, viver em família continua sendo um componente básico da vida social, com a diferença significativa de que não existe mais, no interior de uma mesma sociedade, um modelo de família considerado o único válido e acei-tável para todos. Como disse Michelle Perrot (1993), os indivíduos querem li-bertar-se das amarras e dos controles tradicionalmente característicos da família, mas pretendem, ao mesmo tempo, perpetuá-la como espaço de afetividade, de segurança emocional e de compartilhamento de projetos e de expectativas, o que a caracteriza como uma instituição-ninho.

Por outro lado, não se pode esquecer de que, depois de muitas lutas co-mandadas especialmente pelos movimentos feministas e de mulheres, o com-bate ao machismo, à misoginia e à homofobia também tem proporcionado um maior espaço de liberdade para grupos oprimidos, como mulheres, jovens, crianças e homossexuais. Isto significa dizer que as transformações nas relações de gênero e de gerações talvez sejam as principais responsáveis pelas grandes mudanças no âmbito da família, expressas na diminuição do poder de vida e de morte por parte do pai sobre os filhos e as filhas, no questionamento da subordinação das mulheres aos homens no âmbito do casal e na superação do tabu da homossexualidade (GODELIER, 2004).

No Brasil, um exemplo emblemático dessas transformações na esfera da família foi a aprovação, em 1977, depois de anos de tramitação no Congresso Nacional, da lei que facultou às pessoas casadas o direito de se divorciarem, superando as fortes resistências da Igreja Católica e de setores conservadores da sociedade. À época, o que grupos conservadores diziam é que a aprovação do divórcio significaria um abalo profundo na organização da vida em socie-dade, colocando em risco a estabilidade e a coesão social dada em torno da família formada pelo “casal indissolúvel e seus filhos”. O que se observou, no entanto, é que, após a aprovação do divórcio, não diminuiu o valor social do casamento, já que o desejo de casar-se continua integrando os projetos de vida adulta da grande maioria de homens e de mulheres, incluindo gays e lésbicas.

O que se constatou, ao invés do que o pensamento conservador temia, é que se tornou mais freqüente que casais se divorciem depois de alguns anos de casamento e que os ex-cônjuges reconstituam suas vidas a partir de outros casamentos ou da opção pela vida sem cônjuge. São cada vez mais comuns hoje no Brasil, portanto, as chamadas “famílias recompostas”, formadas por indivíduos que constituem novas composições familiares que incluem filhos de casamentos anteriores, os quais passam a conviver com novos irmãos “de sangue” ou “por afinidade”. Ao invés de “acabar com a família”, o divórcio tem propiciado a ampliação do leque de parentesco das crianças filhas de pais separados, com a existência de novos tios, primos e avós de variadas origens.

As famílias recompostas têm dimensões e formatos bastante diversificados, misturando vínculos sangüíneos e de afinidade e inventando relações que ju-ridicamente não existem.

Desta forma, podemos comparar o status atual das crianças filhas de pais e mães gays e lésbicas à situação vivida há não mais de vinte e cinco anos pe-los filhos de mulheres solteiras ou separadas, vistos com desprezo social. Hoje este tipo de discriminação social é praticamente inexistente, especialmente quando consideramos o grande número de crianças que, desde o nascimento, vive apenas com um dos pais (geralmente a mãe) ou que passou a viver com apenas um deles depois de um divórcio não seguido de novo casamento (outra vez, também geralmente com a mãe). Por fim, não é demais lembrar que, até pouco tempo, os filhos tidos fora do casamento legal não podiam ser reco-nhecidos por seus pais – situação que mudou por completo apenas a partir da Constituição Federal de 1988, quando a filiação deixou de estar vinculada ao casamento dos progenitores.

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Orientação sexual e identidade de gênero como