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É indiscutível que o ambiente escolar ainda é uma arena de muitos pre-conceitos e de discriminações contra filhos e filhas de gays e lésbicas, vistos como potencialmente perigosos para as outras crianças, particularmente em escolas

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giosas. Os três setores que compõem as instituições escolares – alunado, professo-rado e setor administrativo – parecem ainda não estar prepaprofesso-rados para lidar com a diferença e com a diversidade no campo da organização familiar e da sexualidade.

Na escola, estudantes que vêm de estruturas familiares não-convencionais ge-ralmente são submetidos a situações embaraçosas, para não dizer constrangedoras e mesmo aterrorizadoras. Alia-se a estes preconceitos o fato de que muitas vezes a família da criança omite da escola, por temor de discriminação, que é uma família homoparental. Nestes casos, o risco é que a criança se veja esmagada entre a des-truição identitária decorrente do segredo de suas origens e assédio moral e psicoló-gico derivado da homofobia dirigida a seus pais e mães.

Por outro lado, quando pais e mães homossexuais procuram claramente si-tuar diretores e professores de seus filhos e filhas sobre o universo familiar em que vivem, isso também não lhes assegura acolhimento e compreensão automáticos. Os preconceitos que atingirão seus filhos e filhas podem ser antecipadamente dirigidos a eles próprios, sob o argumento de que “Deus”, a “natureza”, a “sociedade” ou a “lei”

não reconhecem como legítimos seus vínculos afetivo-sexuais. O próprio ambiente familiar em que a criança vive é então condenado, considerado moralmente insa-lubre e socialmente inadequado. Às vezes, sob aparente aceitação, educadores reifi-cam preconceitos, excluindo estas crianças e suas famílias de atividades coletivas da escola, com a alegação de “protegê-las” do preconceito e da discriminação. Apesar das mudanças sociais, a ainda presente sacralidade da família pode contribuir para o estranhamento da sua conjugação com homossexualidade (FONSECA, 2005).

Como pode a escola contribuir para maior aceitação social das famílias com-postas por pessoas homossexuais, solteiras ou em situação de conjugalidade?

Inicialmente, criando condições para que estas famílias sejam visíveis no contexto da escola. Para isto é importante que os formulários com informações sobre a família sejam amplos e permitam que casais do mesmo sexo possam preencher dados sobre paternidade e maternidade. Itens como nome da mãe e do pai devem contemplar a possibilidade de inclusão de outras pessoas que “cuidem” da criança, até mesmo nos casos de monoparentalidade, como avós e tios. Em segundo lugar, facultando a possibilidade de parceiros do mesmo sexo, na medida de seu interesse e disponibilidade, participem das reuniões de pais e mestres e sejam reconhecidos enquanto um casal homopa-rental, inclusive nas tradicionais festas de dias das mães e dos pais, datas nas quais geralmente quem não tem vínculo biológico fica ausente das comemorações esco-lares. Em terceiro lugar, incluindo a temática da homossexualidade e das famílias homoparentais no conteúdo das disciplinas da escola.

No que diz respeito ao primeiro item – a criação de condições de visibilidade das famílias homoparentais na escola –, é importante que haja um conhecimento maior por parte do corpo docente da farta literatura científica,13 especialmente nos campos da psicologia e da antropologia, a respeito do fato de uma criança ser so-cializada (por dois pais, duas mães, um pai e uma mãe, apenas um pai, apenas uma mãe, nenhum pai e nenhuma mãe e tantos outros arranjos parentais) pode impactar sua vida psíquica e história pessoal. No âmbito específico das investigações sobre o desenvolvimento psicossocial de crianças socializadas por gays e lésbicas solteiros ou por casais de pessoas do mesmo sexo, prevalece o entendimento praticamente con-sensual de que não há evidências científicas de que estas crianças possuam qualquer característica de personalidade ou de comportamento que as coloque em situação de desvantagem social quando comparadas às crianças socializadas por indivíduos ou por casais heterossexuais (KLEBER et al., 1986; CADORET, 2002; NADAUD, 2002; TASKER e GOLOMBOK, 2002; GROSS, 2002).

Muitas variáveis influenciam o processo de socialização de uma criança (classe social, nível de escolaridade e idade dos pais, local de moradia, religião, nacionalidade, entre outros), sendo a orientação sexual dos pais apenas uma a mais, e seguramente não a mais fundamental, sobretudo quando pensamos na importância central do tipo de vínculo que une o casal e na qualidade da relação que os pais estabelecem com os filhos. Uma das falsas premissas psicológicas utilizadas contra as famílias homopa-rentais seria a “falta de referenciais femininos ou masculinos”. Nos estudos realizados com crianças socializadas por um casal de homens ou de mulheres, lembra-se que funções paternas e maternas igualmente podem ser cumpridas por indivíduos mulhe-res e homens, mulhe-respectivamente, também em famílias heterossexuais. Da mesma forma, crianças criadas em famílias não-convencionais têm o mesmo acesso que outras crian-ças a diferenciados modelos de masculinidade e de feminilidade na família ampliada, na vizinhança, na escola, na igreja, nos meios de comunicação de massa. Além disso, os atributos socialmente definidos como masculinos e femininos não se confundem com os corpos de homens e de mulheres que os apresentam (BUTLER, 2003), o que permite também que modelos de masculinidade e feminilidade sejam percebidos no interior da própria família homoparental.

Um dos grandes medos manifestos pelo senso comum em relação à socializa-ção de crianças por casais homossexuais é de que estas crianças tenderiam a repetir o modelo de seus pais e se tornariam homossexuais também. No entanto, a maior parte dos estudos (BORRILLO, 2005) mostra que não há uma presença maior ou

13 Para uma ampla discussão sobre homoparentalidade e famílias homoparentais no Brasil, incluindo a

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menor de homossexualidade entre pessoas socializadas por pais gays ou mães lésbicas, verificando-se geralmente a mesma freqüência encontrada no âmbito do casal hete-rossexual. Além disto, o que alguns pesquisadores observaram é que, de uma maneira geral, filhos e filhas de gays e lésbicas são pessoas mais abertas à aceitação da diferen-ça, menos preconceituosas e intolerantes, menos rígidas em relação aos estereótipos de gênero, talvez exatamente pelas vivências sociais a que estiveram expostas desde a infância (MEDEIROS, 2006; GÓMES, 2002; PATERSON, 1992). Mesmo que na maior parte das vezes os debates ainda se concentrem nas supostas “desvantagens sociais” e nos “perigos” para as crianças que vivem em famílias com pais gays ou mães lésbicas, já se começa a discutir, por outro lado, em que medida viver numa família homoparental, ao contrário do que se imagina, pode ser uma experiência muito posi-tiva, que contribui para a formação de indivíduos democráticos e não-sexistas.

No que diz respeito ao segundo item – o reconhecimento e a inclusão do casal de mesmo sexo nas atividades escolares – a forma como a instituição de ensino acolheu a família homoparental de Chicão, filho biológico de Cássia Eller e de sua companheira Maria Eugênia, parece-nos exemplar. O debate público em torno da homossexualidade veio à tona em 2002, quando da disputa da guarda de Chicão entre Maria Eugênia, reconhecida publicamente como mãe social e cuidadora do menino, e seu avô materno, pai de Cássia. Chicão então estudava em uma escola de classe média, no Rio de Janeiro, considerada de esquerda. Familiares, docentes e estudantes da escola mobilizaram-se em favor de Eugênia, companheira da canto-ra. Acredita-se que o apoio institucional, com adesão a um manifesto encaminhado ao juiz responsável pelo processo, tenha sido importante para o desenrolar do caso.

Esta situação mostra o quanto a visibilidade da maternidade lésbica em uma escola que soube acolher essa diversidade foi decisiva para o reconhecimento dos direitos do menino de continuar a viver com a mãe sobrevivente e, talvez, possa ser compre-endida como sinalização das mudanças na sociedade brasileira no que diz respeito ao direito das crianças filhas de pais gays e de mães lésbicas.

Além das situações cotidianas de sala de aula, de construção do saber e de transmissão de conteúdos, os espaços de sociabilidade, as comemorações de datas festivas e as reuniões sobre aproveitamento das turmas são momentos privilegia-dos para a escola ensinar e oferecer acolhimento à diversidade. A participação de professores nas conversas de crianças e adolescentes sobre seus cotidianos e formas de organização de suas famílias pode ter um peso grande na compreensão de que normalidade e anormalidade não são categorias de sentido nem para a sexualidade, nem para os arranjos familiares que a nossa sociedade abriga. O tempo que crianças e adolescentes passam na escola pode proporcionar ótimos espaços de

questiona-mento das regras que definem os supostamente dignos e não-dignos de usufruírem direitos, respeito e reconhecimento.

No que diz respeito ao terceiro item – a inclusão curricular das discussões so-bre homossexualidade e diversidade familiar –, consideramos fundamental contem-plá-las nas mais diferentes disciplinas e fases escolares, tanto nos termos propostos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), quanto por meio das disciplinas So-ciologia e Filosofia, recentemente incluídas como obrigatórias no Ensino Médio.

Os PCN foram lançados pelo governo federal no final dos anos 90. Segun-do esta resolução, os assuntos relacionaSegun-dos à ética, à saúde, ao meio ambiente, à orientação sexual (sexualidade) e à pluralidade cultural devem ser tratados na escola como temas transversais. A intenção não era a criação de novas disciplinas, mas a incorporação dessas temáticas às existentes, incentivando professores das diversas áreas a tratarem dos assuntos eleitos. Nos PCN, constata-se a atual variedade de formatos das famílias brasileiras e alerta-se para a necessidade de introduzir o de-bate sobre essa diversidade no cotidiano dos jovens, considerando que a instituição escolar é um espaço privilegiado para fomentar o respeito à dignidade das pessoas e de suas famílias. Nesse sentido, abordar “orientação sexual” na escola significa a possibilidade de estarem atentos, alunos e professores, à diversidade humana, espe-cialmente no campo da sexualidade.

Observa-se que cada vez mais as famílias têm depositado na escola a tarefa de educar e de responder a questões que consideram difíceis, como as relativas à sexualidade. No entanto, mesmo quando este tema é abordado em disciplinas de educação sexual, em geral o foco está na heteronormatividade, e há pouco espaço para o questionamento e para a inclusão de temas tabus como homossexualidade, bissexualidade e transexualidade. Na disciplina de educação sexual, a preocupação com a patologia e com as doenças expressa-se no foco da prevenção à DST/Aids e à gravidez na adolescência. A homossexualidade surge, em geral, como tema impor-tante no âmbito das reflexões sobre prevenção à Aids, uma vez que homossexuais, equivocadamente, continuam sendo vistos como “grupo de risco”, apesar da evidên-cia da ampla disseminação do HIV entre heterossexuais (OLTRAMARI, 2007).

Como cientistas sociais, consideramos que a inclusão das temáticas da sexuali-dade e dos novos arranjos familiares deve ser um dos itens indispensáveis da disciplina Sociologia, que começa a ser implantada em grande número de escolas do Brasil neste momento. Pensamos também que a disciplina Filosofia deve certamente incluir nas dis-cussões sobre ética, conflito e violência, as temáticas que envolvem o combate à homo-fobia e o respeito às orientações sexuais e às identidades de gênero não-hegemônicas.

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