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Por último, especificamente em relação às masculinidades, em especial em se tratando de discuti-las no âmbito da infância, entendemos que as considerações de Robert Connel (1995) – que afirma existir uma masculinidade hegemônica que

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subordina todas as outras – são uma das possibilidades de se tentar entender como se dão suas diferentes construções. Essa maneira de compreender as tensões de poder que podem ocorrer entre os diversos grupos sociais não está distanciada das formulações de David Morgan (1999), quando afirma que a masculinidade vai se delineando a partir dos discursos que são produzidos e legitimados pelos sujeitos masculinos. Sócrates Nolasco (1993, 1995, 2001), em seus estudos, nos alerta para as dificuldades que os homens vêm enfrentando desde o início da modernidade, sugerindo que haja, inclusive, uma espécie de crise nas masculinidades.

Todas essas perspectivas nos ajudam a pensar a masculinidade a partir de um determinado período da vida situado além da infância. Nela, todos esses discursos são uma possibilidade futura, um por vir. Entretanto, não acreditamos que tais ex-plicações dêem conta de cogitar a masculinidade infantil como algo já existente, com um funcionamento próprio, com características peculiares. Podemos pensar, a exemplo do que fez Zygmunt Bauman (2001) quando escreveu a respeito da lique-fação da modernidade, que as masculinidades infantis também são líquidas, na me-dida em que elas não se prendem a estruturas rigidamente sólidas, ao menos nesse momento da vida. Embora haja um conjunto de suportes que lhes dão sustentação, elas estão em certa medida atreladas às expectativas adultas, ou seja, parece que os modos com que se apresentam estão ligados ao entendimento que fazem do desejo adulto para as suas constituições de gênero. As crianças percebem aquilo que pode ser feito na frente dos adultos. Podemos notar isto quando elas fazem gestos, man-têm posturas corporais ou utilizam determinado vocabulário para demarcar certo tipo de masculinidade ou feminilidade que se espera delas.

A grande preocupação com esse trânsito em torno de uma masculinidade se dá por conta dos muitos investimentos feitos para que ela seja atingida, estando bastante relacionado às expectativas adultas.

Quanto à adesão dos adultos à masculinidade, poderíamos nos permitir uma outra imagem: a de um sistema orbital constituído de um centro gravitacional em torno do qual corpos girariam, perfazendo trajetórias circulares e concêntricas e não mais elípticas em sentido estrito. Essas órbitas se disporiam em camadas, umas após as outras. Quanto mais longe do centro menos identificadas com a sua matriz. O trânsito, nessas órbitas circulares, se dá em níveis, pois dependendo do ponto onde se está fixado, é possível definir a que tipo de masculinidade se está filiado, havendo nesse modelo a possibilidade de se hierarquizarem as formas de ser homem. Daí, surge então a figura hegemônica inatingível (transcendental) e todas as outras que a ela se subordinam.

Tendo os olhos voltados para a masculinidade infantil, é necessário buscar uma outra explicação para o fato de elas estarem em um processo dinâmico, cons-truindo-se e sendo construídas. Surgem-nos, dessa forma, dúvidas difíceis de serem sanadas: existe a figura do sujeito infantil masculino? Ou trata-se de algo que pre-cisa ser inventado? Ou, simplesmente, deixado de lado?

Deixarmo-nos pensar que a infância é um momento de descobertas e que ser homem é algo que se aprende a partir dela é acreditar que existe a masculinidade

“lá fora”, ou no caso das descobertas, “lá por baixo”. Imaginar que ser homem é uma coisa que se aprende ao longo do tempo é estar atestando o por vir.

Mas se tomarmos isto como plausível, teremos pelo menos mais duas questões:

levando-se em conta a grande diversidade de masculinidades, será que as práticas dis-cursivas que nos ensinam o que é ser homem vêm, ao longo dos tempos, flexibilizando-se, vêm se transformando em algo mais permeável a novas formas de se experimentar a vida masculina? Ou, ao contrário, o que estamos vivendo é justamente o recrudesci-mento das normas de gênero, uma vez que a normatização é uma experiência moder-na? Novo homem? Homem guerreiro? Homem sensível? Afinal, o que é ser homem?

Acreditamos que existam projetos distintos de masculinidades para adultos e crianças, porém, a arquitetura que se pretende para a masculinidade dos meninos não possui uma rigidez tão grande quanto a que é impressa ao projeto adulto. No adulto, podemos pensar que as edificações já estejam concluídas, o concreto já secou e está tudo garantido. Ledo engano. Mesmo as construções mais sólidas precisam ser reparadas, reestilizadas, reformadas para que não desmoronem, para que continuem funcionais. Porém, no caso dos meninos, como estamos recém-erguendo as fundações do que pretendemos para eles, não admitimos retoques no projeto. Daremos conta dele a qualquer preço. Depois, se necessário, que se façam as reformas. Assim, fica evidenciado que os meninos vão se constituindo no cotidiano desse canteiro de obras.

Claro que devemos pensar que construir algo em movimento é inusitado, difícil, sem controle. As crianças, nesse sentido, são bastante frenéticas, pois elas estão descom-prometidas com esse futuro que lhes é imposto. Surge aí a figura do panóptico, o olho que tudo vê, analisa e determina o funcionamento (FOUCAULT, 1999).

Comparativamente aos adultos, cremos que as crianças estejam mais expos-tas às observações, às intervenções, talvez porque elas ainda estejam desenvolvendo seus mecanismos de escamotear o que não se deve apresentar. Uma possibilidade de entendimento dos funcionamentos masculinos seja o fato de que, durante nosso aprendizado, não consertamos nossos desvios da matriz, mas sim aprendemos a ocultá-los e buscamos formas de não trazer ao conhecimento dos outros os nossos

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segredos mais caros. Nesse sentido, podemos acreditar que os homens que mais se aproximam da matriz heterossexual são aqueles que melhor conseguem encobrir os elementos de sua vida que o afastam dela.

Discurso difícil este, pois estamos novamente procurando o que há por baixo, o que se pretende esconder, o que não deve ser exposto. Como a intenção aqui não é descobrir nada, visto que não acreditamos na possibilidade de desvelamento de realida-des, nem tão pouco que exista essa verdade definitiva, única, inquestionável, escondida, podemos concluir que esses movimentos de dissimulação, de camuflagem, de disfarce são justamente os que constituem as figuras generificadas masculinas e femininas.

Enfim, talvez seja possível dizer que, mesmo exercendo seus efeitos, a mas-culinidade e a feminilidade são leis que não “pegaram”. Legislações existem, mas nem sempre são cumpridas. Criadas para regular rigidamente o funcionamento das relações, são porém dotadas de um relativo grau de flexibilidade prática e de reela-boração discursiva e simbólica.

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Luiz Mello*

Miriam Pillar Grossi**

Anna Paula Uziel***

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