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A análise da homofobia no quadro mais amplo dos estudos sobre preconceito e discriminação, acrescida do aporte jurídico do direito da antidiscriminação, for-nece elementos a pesquisadores, operadores do direito e ativistas para uma melhor compreensão das violações aos direitos humanos experimentadas por homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais. No combate a esta expressão discriminatória, as funções do direito são várias.

A partir da crucial afirmação dos direitos básicos de tais indivíduos e grupos, o ordenamento jurídico pode, na contramão da discriminação homofóbica, colaborar na crítica e no enfrentamento do heterossexismo. Este é o resultado, por exemplo, da censura judicial a laudos psicológicos que excluem homossexuais como inaptos para o acesso a cargos públicos exclusivamente em virtude de sua orientação sexual.

A introdução de diretrizes respeitosas à diversidade sexual na atividade admi-nistrativa, por sua vez, pode agir no sentido da promoção de mudanças institucio-nais e na superação de preconceitos e discriminações historicamente consolidados, mobilizando organizações tradicionalmente associadas ao controle e à repressão de minorias. Este esforço pode ser ilustrado pela adoção de parâmetros curriculares e de cursos de formação do magistério atentos e respeitosos às diversas expressões da sexualidade no ambiente escolar.

Outra resposta jurídica capaz de contribuir com processos mais amplos de mudança é a reparação de injustiças perpetradas, individual ou coletivamente, contra grupos estigmatizados. Neste ponto, apresentam-se tanto as demandas individuais por indenização de danos materiais e morais decorrentes de demissões arbitrárias, quanto iniciativas judiciais coletivas visando à alteração de praxes institucionais dis-criminatórias, formais ou informais.

Mais diretamente ligados ao direito da antidiscriminação, a denúncia e o com-bate a tratamentos discriminatórios, de modo direto ou indireto (itens 3.3.1 e 3.3.2), são medidas inequivocamente capazes de concorrer para a luta contra a homofobia.

34 Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.946 – DF, relator Ministro Sydney Sanches,

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Neste quadro, as violações físicas diretas à vida e à integridade física de gru-pos contra os quais se dirige a discriminação heterossexista são realidades inadmis-síveis, cuja superação é vital para a promoção dos direitos humanos e o combate à homofobia. Diante desses episódios, cuja freqüência horroriza, não se deve exigir menos que a atuação dos órgãos estatais de persecução penal, extraindo-se do direi-to penal e do direidirei-to civil direi-toda a responsabilização cabível.

Já a violência não-física, pontuada pela injúria homofóbica, expõe, além das lesões concretas perpetradas contra determinados indivíduos, a dimensão democrá-tica da luta contra a homofobia. Como demonstra José Reinaldo de Lima Lopes (2003), a estigmatização da diferença por orientação sexual fere o direito ao reco-nhecimento, a todos devido e necessário para o convívio democrático, intimamente relacionado à dignidade e à liberdade individual.

De fato, a intolerância não é uma conduta dirigida contra determinada pes-soa, decorrente de uma condição peculiar e restrita àquela vítima. A intolerância viola o direito à existência simultânea das diversas identidades e expressões da sexu-alidade, que é um bem comum indivisível. Uma vez acionada, a intolerância ofende o pluralismo, que é requisito para a vida democrática. Daí a compreensão de que os chamados crimes de ódio, manifestação que merece intensa reprovação jurídica, atentam contra a convivência democrática. Daí também a propriedade da utilização de ações coletivas para a proteção e a promoção do direito ao reconhecimento das identidades forjadas e estigmatizadas num contexto heterossexista.

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m diário, escrito no século XIX, é descoberto muitos anos depois. Trata-se das memórias de um jovem hermafrodita que narra suas poucas ale-grias e suas muitas tristezas e angústias ao longo da curta vida. Hercu-line Barbin é inicialmente criada como uma moça, Alexina, no interior de um internato feminino católico e, posteriormente, é reconhecido como um rapaz e se vê obrigado a trocar de sexo. As humilhações e o drama que experimenta neste processo acabam por levá-lo ao suicídio. A história talvez não seja tão extraordinária ou incomum, mas o fato é que as memórias desse/a jovem acabaram sendo publica-das, já em pleno século XX, precedidas de um texto de Michel Foucault.

Apesar de toda a curiosidade que pode cercar o diário de Alexina/Herculine, o que me interessa particularmente explorar, neste momento, é o pequeno prefácio de Foucault ou, mais precisamente, aproveitar sua pergunta inicial. Escreve Foucault:

“Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”. E continua, respondendo em seguida: “Com uma constância que chega às raias da teimosia, as sociedades do oci-dente moderno responderam afirmativamente a essa pergunta” (FOUCAULT, 1982).

Guacira Lopes Louro*

Heteronormatividade