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O cotidiano das escolas infantis: delineando masculinidades e feminilidades

A idéia de naturalização de determinados comportamentos em torno das masculinidades e das feminilidades está amplamente incorporada em nossa socie-dade e se torna muito visível nos procedimentos escolares. Tais comportamentos, percebidos de forma essencializada (meninos são mais agitados, agressivos, meninas são mais meigas, passivas; meninos devem gostar de determinadas coisas, meninas de outras), estão pautados por relações de poder entre os sexos desde a infância (FELIPE e GUIZZO, 2004). Cabe, portanto, perguntar o que temos ensinado às crianças e de que forma temos feito isso, especialmente no que diz respeito às repre-sentações de gênero no âmbito da Educação Infantil (ARGUELLO, 2005).

Algumas pesquisas no campo da educação têm mostrado o quanto essas aprendizagens se fazem de forma violenta, principalmente em relação aos me-ninos, que são constantemente vigiados e instigados para a construção de um determinado tipo de masculinidade, como demonstram os recentes trabalhos de Bianca Guizzo (2005), Judite Guerra (2005), Taís Brasil (2005), Adriane Câmara (2005) e Alexandre Bello (2006).3

Inúmeros exemplos poderiam ser aqui citados sobre esta questão: mesmo entre crianças pequenas (4-6 anos), já existe um comportamento que chamaremos aqui de um delineamento “homofóbico” – embora muitos autores e autoras prefi-ram o termo heterossexismo para demarcar como há constantes reiterações da he-teronormatividade, como referimos anteriormente. De qualquer modo, apesar de reconhecermos o quanto pode ser precipitado nomear de homofobia determina-dos comportamentos na infância, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que muitas crianças, desde a mais tenra idade, já expressam uma profunda rejeição a todo e qualquer comportamento que fuja aos padrões estabelecidos pela cultura em relação à masculinidade. Em especial, os meninos expressam muito

claramen-3 Tais aspectos têm sido trabalhados no eixo temático Infância, gênero e sexualidade da linha de pesquisa Educação, sexualidade e gênero do PPGEDU/UFRGS.

te sua repulsa aos “bichinhas”, “gays”, “boiolas”. De certa forma, esses meninos de-senvolvem um comportamento que poderíamos chamar de esboço “homofóbico”, inclusive contra eles mesmos, passando a exercer uma auto-regulação constante sobre seus corpos e sobre seus desejos. Cabe aqui citar um exemplo observado por Guerra (2005) em sua pesquisa sobre gênero e sexualidade na infância. Um dos meninos da turma de Educação Infantil estava brincando com uma pulseira. De repente, ele pareceu ter se lembrado que aquele objeto era “de menina”, retiran-do-o do braço com violência e, atirando a pulseira longe, comentou numa espécie de censura a si mesmo: “– Besteira!”. Tal situação demonstra ainda o quanto a construção das masculinidades vai se delineando também a partir de um com-portamento misógino, isto é, uma repulsa e uma desvalorização a tudo aquilo que possa parecer feminino (FELIPE, 1999).

É interessante observar que em muitas famílias especialmente os pais (ho-mens) se sentem extremamente ameaçados na sua própria masculinidade quando seus filhos, embora pequenos, não dão sinais claros de masculinidade. Por exemplo, meninos que têm a voz fina ou que mostram interesse por objetos e brincadeiras de meninas, ou que têm uma postura corporal mais afeminada são vistos como ho-mossexuais em potencial, despertando assim um excesso de preocupação por parte dos pais. Estes chegam mesmo a pedir às professoras que não permitam que seus filhos brinquem com coisas de meninas, tais como utilizar os objetos do “Canto da Fantasia”,4 experimentar maquiagem, sapato alto, bolsas, colares, fantasias diversas (bailarinas, princesas, bruxas etc). Também é comum que os pais (e a família em geral) usem de violência física para que os meninos tenham um comportamento esperado de “macho” (BELLO, 2006). Os pais costumam ainda pedir às professoras que controlem e proíbam os meninos de se sentarem dessa ou daquela forma.

Quanto ao papel das educadoras que atuam no âmbito da Educação In-fantil, é possível perceber o quanto elas desempenham várias funções, ao mesmo tempo, no trato com as crianças: auxiliam na higiene, na alimentação e na sua educação, elaboram e aplicam projetos pedagógicos, são figuras centrais nas con-tações de histórias, formam rodas de conversas (as famosas “rodinhas”), lidam com a insegurança de pais e mães em relação ao seu trabalho, dentre tantas outras atri-buições. No entanto, muitas delas se colocam ainda como vigilantes incansáveis da sexualidade infantil. Alguns exemplos podem ser aqui mencionados: é possível observar que as relações de amizade entre as meninas em idade pré-escolar são

4 O “Canto da Beleza” e o “Canto da Fantasia” são espaços muito utilizados nas escolas infantis, destinados ao encontro das crianças com o lúdico, à fantasia, ao embelezamento. Nesses “cantinhos” há fantasias,

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permeadas por uma série de “liberdades” que umas podem ter em relação às outras.

As manifestações de carinho, em certa medida, são autorizadas, em alguns casos, até estimuladas. Não nos causa estranheza ver meninas passeando de mãos dadas, trocando afagos, beijando-se no rosto. Essas manifestações parecem nos indicar que a sua feminilidade está sendo “garantida”, pois se espera das meninas que se-jam carinhosas, meigas, cuidadoras, que se mantenham distantes das brincadeiras violentas, barulhentas, que elas prescindam de movimentos amplos. Às meninas é imposta uma série de regulações, não há dúvida disso, porém cabe aqui ressaltar que se esses comportamentos partissem dos meninos, seriam considerados um claro “afastamento” da matriz heterossexual. Rapidamente seriam acionados uma série de mecanismos para tentar colocar esse menino na órbita certa. Bello (2006), em sua pesquisa, observou a seguinte situação:

[...] [Ana]5 havia me “alertado” que o menino Sílvio costumava ter comportamentos “estranhos”, fazendo uma alusão ao cruza-mento das fronteiras de gênero [...]

Sílvio brinca com uma boneca Barbie que está à disposi-ção na sala, penteando-a cuidadosa e longamente, o que não causa nenhum estranhamento nos colegas; a educadora pa-rece sentir-se incomodada com tal situação e sugere que o menino largue a boneca e vá brincar com os demais colegas (Diário de campo, 11/08/05).

As educadoras, quando buscam de forma insistente conduzir as crianças para um determinado tipo de brincadeira, estão transformando o brincar e o brinquedo em poderosos “instrumentos pedagógicos”. Neste sentido, é importante lembrar que não só a escola, mas várias outras instâncias sociais, tais como a família, a igreja, a mídia, costumam, por meio de seus discursos, aprisionar, controlar, regular os su-jeitos, subjetivando-os a partir de disciplinamentos que são próprios da cultura na qual estão inseridos (BUJES, 2000). Caso o sujeito não dê conta desse conjunto de ditames e disciplinamentos, poderá vir a ser desconsiderado como indivíduo, desta-cando-se assim dos ditos “normais”. Ao ser categorizado como um ser diferente dos demais, prescindirá de tratamento individualizado. Essa individualização nos parece crítica, pois se passa da condição de sujeito – submetido às regras da cultura – para uma condição anterior, uma condição em que uma ressocialização se faz necessária na tentativa de impor ao sujeito novas regras disciplinares.

5 Os nomes aqui citados são fictícios para preservar a identidade dos sujeitos da pesquisa.

No caso das crianças, uma estratégia muito acionada consiste no controle do brincar. O brincar e o brinquedo são, portanto, nesse contexto, um instrumento de poder que é acionado constantemente para definir/produzir determinadas formas de gênero. Pensar que o brincar faz parte da “natureza infantil” com um fim em si mesmo é não problematizá-lo. Em suas pesquisas, Felipe (1999), Guizzo (2005), Guerra (2005) e Bello (2006) demonstraram como as professoras criam estratégias sutis (às vezes nem tanto) para que os brinquedos e as brincadeiras sejam utilizados de forma a garantir as normas de gênero.

Esse tipo de encaminhamento dado pela educadora Ana nos leva a pensar o quanto, para os meninos, esse distanciamento da matriz torna-se mais aparente, menos permitido, mais regulado, e em grande medida, mais problemático. É como se as “garras” da heteronormatividade, assim como acontece com as pinças dos ca-ranguejos, não possuíssem o mesmo tamanho e a mesma força. Elas acabam apri-sionando todos, entretanto, não da mesma maneira.

Em uma das entrevistas realizadas com as crianças, foi possível perceber como também as meninas são cuidadosamente guiadas rumo à heterossexualidade (BELLO, 2006). Quanto mais perto da matriz elas chegarem, menos sofrerão. Não um sofrimento futuro de talvez serem discriminadas por sua condição de sexuali-dade e gênero, mas um sofrimento presente, uma punição aos corpos para, a partir deles (dos corpos), a alma ser tocada.

É por meio do suplício, da pressão psicológica, da violência que se vai for-jando o menino e a menina que se deseja. O suplício, ao longo do tempo, vai sendo substituído pelo autogoverno. Na escola, a prática da violência se dá pela persuasão (sem descartar o constrangimento). Passa-se a exercer um poder sobre o próprio sujeito, entretanto, este só aprende a se autovigiar (autogovernar) a partir de uma vigilância anterior e externa. Daí, podermos supor que a escola é baseada na vigi-lância, é uma máquina que nos introjeta o cuidado de si. Esse é outro argumento na caracterização da escola como uma espécie de panóptico (FOUCAULT, 1999).

Educação para a sexualidade: alguns aspectos a