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2 REFLEXÕES SOBRE AS BASES CONCEITUAIS DO FEDERALISMO

2.2 Federalismo como pacto: aspectos conceituais da cooperação federativa

2.2.2 A dinâmica das relações intergovernamentais

As federações apresentam, atualmente, amplas e variadas interações entre os níveis de governo. A dinâmica federativa vincula-se também ao processo de relações intergovernamentais, uma vez que o crescimento e a complexidade da intervenção estatal desencadeiam ações que favorecem a descentralização, mas também remetem à necessidade de compartilhamento de decisões. Trata-se do dilema do shared decision making: como os representantes do governo são parte do mesmo sistema, pois, ainda que parcialmente autônomos, suas iniciativas em termos de política social são altamente interdependentes, mas modestamente coordenadas (PIERSON, 1995, p. 451).

As federações têm hoje amplas e variadas interações entre os níveis de governo que os compõem (OPESKIN, 2001). Considerando o debate teórico em torno do estudo dos temas subjacentes ao federalismo, torna-se oportuno resgatar a discussão sobre as relações intergovernamentais que se estabelecem na dinâmica entre os entes federados14. Devido ao fato de que o federalismo envolve diferentes níveis de governo dispostos em uma área geográfica comum, que têm, necessariamente, a função de gerenciar as interações dentro da rede de acordos que emergem ao longo da cadeia (CAMERON, 2001; AGRANOFF, 2007), as relações intergovernamentais caracterizam-se como o conjunto de políticas e mecanismos pelo qual essas interações são geridas (SHAFRITZ, RUSSELL, BORICK, 2013). Portanto, são os processos políticos, fiscais e administrativos que regem as relações de interdependência entre os entes federados.

14 Existe um debate sobre a concepção das relações intergovernamentais não como uma dimensão do

funcionamento dos sistemas federais, mas como sucessora, ou mesmo uma alternativa ao federalismo (Ver Wright, 1988; Trench, 2006).

As relações intergovernamentais representam o federalismo em ação, mediante a complexa rede de inter-relações entre os governos dentro de um sistema federal. Além dos limites territoriais, as relações entre os governos subnacionais assumem formas distintas como consequência de alguns fatores (CAMERON, 2001, p. 121): a sociedade da qual fazem parte; o regime constitucional definido; as instituições governamentais de que são, em parte, a expressão e as condições internas e externas que moldam a vida do país, em um momento particular. Assim, o termo relações intergovernamentais, ou RIG, está relacionado com as formas e meios específicos de execução em um governo, envolvendo relações contínuas e abrangentes entre os governos federal, estadual e local ou qualquer outra combinação entre eles (ELAZAR, 2011), facilitando a realização de objetivos comuns por meio de cooperação (OPESKIN, 2001). Significa dizer que as relações intergovernamentais ocorrem sempre que dois ou mais governos interagem no desenvolvimento e implementação de programas e políticas públicas.

Não se trata apenas de uma discussão sobre limites territoriais, embora as demarcações de todas as unidades políticas sejam estabelecidas por leis, constituições e acordos – núcleo central das relações intergovernamentais. É igualmente uma questão de atribuições funcionais, porque a maioria dos países considera necessário distinguir os assuntos nacionais, regionais e locais, repartindo-os de diversas formas, em diferentes níveis de governo (SHAFRITZ, RUSSELL, BORICK, 2013). Com efeito, representam a força motriz de qualquer sistema federal, são o instrumento privilegiado pelo qual o trabalho – seja qual for ele – é feito, pois atuam na interface entre o que a Constituição prevê e aquilo que a realidade concreta do país exige (CAMERON, 2001).

Segundo Souza, C. (2008, p. 38), as pesquisas guiadas pelo conceito de relações intergovernamentais reconhecem que a identificação das atividades dos diferentes níveis de governo é apenas o ponto de partida desses estudos, sendo necessário incluir elementos adicionais, “tais como a dinâmica das RIG, que compreende análises sobre a difusão e o processo de aprendizado e de transferência de conhecimento e de experiências”. Portanto, a utilização complementar do termo relações intergovernamentais pode reforçar o uso da concepção de federalismo na conceituação da ordem política, bem como na descrição e análise das formas de governo (ELAZAR, 2011). Ao longo desses processos de transformação, a gestão de políticas mediada por ações intergovernamentais de cooperação tornou-se uma preocupação constante dentro do federalismo de todos os tipos (AGRANOFF, 2007).

Nesse sentido, é preciso verificar as formas assumidas pelas RIG, evidenciando a variedade de elementos que atuam nessa dinâmica. Alguns dos principais fatores que

contribuem para a formação de relações intergovernamentais, expostos por Cameron (2001), estão listados no Quadro 4. Estes fatores são combinados de maneiras distintas em cada país, para criar um padrão único de instituições intergovernamentais e processos característicos de cada sociedade em particular.

Quadro 4 – Fatores que contribuem para a formação das RIG

Fator de influência Características

Fatores demográficos e geográficos

O tamanho do país, o tamanho da população e a distribuição da população no território podem afetar as estruturas e processos das RIG.

Fatores sociais e culturais

A composição racial, religiosa, linguística e cultural de um dado país, muitas vezes define os termos do pacto federal, determinando formas e práticas institucionais. Profundas diferenças socioculturais em um país podem inibir a eficácia das RIG.

Fatores históricos

A força da tradição e experiências políticas irão afetar a capacidade de uma federação de manter ou reformular suas relações intergovernamentais. A comunidade política com uma longa experiência tende a estabelecer normas e práticas situados em canais de práticas e comportamentos tradicionais, ao passo que a possibilidade, para o bem ou para o mal, de uma mudança radical em arranjos podem existir em um país com federalismo recém-criado.

Fatores

constitucionais e institucionais

O número e o tamanho relativo das unidades de uma federação, o grau de assimetria entre eles, se o país possui um direito comum ou sistema de direito civil, se o governo é organizado de acordo com princípios parlamentares ou presidenciais/Congresso – todas estas são considerações da maior importância na determinação da natureza de estruturas e processos das RIG.

Fatores políticos

O tipo de sistema eleitoral pode ter um grande impacto, não só na estabilidade dos governos, mas também sobre a capacidade do governo central para representar as minorias e comunidades regionais e gerar um grau de coesão na federação. A natureza do sistema de partidos políticos em uma federação molda as RIG de um país. O grau de centralização ou descentralização é outro fator de importância na formulação das RIG, pois molda o equilíbrio de poder entre as esferas de governo e, portanto, o comportamento dos entes e suas relações uns com os outros.

Fatores circunstanciais

Refere-se as circunstâncias em que um país federal encontra-se. Normalmente, este contexto pode parecer não ter um efeito direto nas RIG, mas se se considera a existência de uma ameaça externa, como, por exemplo, a guerra, ou uma ameaça interna, como uma secessão, é possível avaliar o impacto de tais fatores circunstanciais nas RIG. Fonte: Cameron (2001).

Considerando que os países são recortados por realidades distintas e que as sociedades são complexas e moldadas por múltiplos aspectos, não há uma receita específica para o federalismo (ANDERSON, 2009). Após analisar os fatores expostos acima, percebe-se que os mecanismos que viabilizem as relações intergovernamentais podem ser vistos como ferramentas consensuais empregadas para o benefício mútuo das unidades constituintes da federação (OPESKIN, 2001).

Nesse sentido, a interdependência e a variedade das relações intergovernamentais entre as unidades de governo tornaram-se foco de pesquisas voltadas ao estudo das federações. Dentre os estudos, pode-se destacar aquele realizado por Deil Wright (1978), que propõe três modelos de relações de autoridade entre as unidades nacionais, estaduais e locais (apresentados

na Figura 8). Segundo o autor, estes modelos não comportam toda a complexidade e a variedade do funcionamento das relações intergovernamentais, pois o número e os tipos de unidades locais, são, por exemplo, omitidos, como também as mudanças e as diferenças na estrutura fiscal nos três níveis descritos (WRIGHT, 1978), mas buscam contribuir para a clareza sobre a autoridade dos entes.

Figura 8 – Relacionamento entre as unidades nacional, estadual e local

Fonte: Wright (1978).

Legenda: N = Nacional; E = Estadual; L= Local.

Os três modelos expressam graficamente os tipos genéricos de relações de autoridade que podem existir entre as entidades políticas: autoridade independente (autonomia), autoridade interdependente (negociação) e autoridade inclusiva (hierarquia). Esses modelos, na visão de Elazar (2011), definem ou redefinem a natureza da autoridade política dentro do sistema político.

Os modelos denominados Autoridade Separada e Autoridade Inclusiva encontram-se nas extremidades do espectro: no primeiro, o governo nacional e os governos estaduais são autônomos, enquanto, no segundo, prevalece a hierarquia (WRIGHT, 1978). O modelo de Autoridade Separada “pressupõe que os governos mantêm um relacionamento de total independência e autonomia, o que seria conseguido a partir da completa clarificação dos papéis de cada uma das esferas de governo” (ABRUCIO; SANO, 2013, p. 22). Já no modelo de

Autoridade Inclusiva, explicam os autores, a atuação dos governos subnacionais depende totalmente das decisões tomadas pelo governo nacional, configurando os estados e municípios como unidades administrativas e o governo nacional como centralizador das decisões.

O modelo de Autoridade Sobreposta é o mais representativo do funcionamento das relações intergovernamentais. Os círculos sobrepostos expressam três características particulares do modelo: primeiro, as esferas do governo envolvem a tomada de decisão simultânea entre unidades (ou funcionários) nacional, estadual e local; segundo, as áreas de autonomia e domínio de cada jurisdição específica são comparativamente pequenas; terceiro, o poder e a influência permitidos, a cada esfera do governo, são limitados, e, por isso, produzem um padrão de autoridade em que prevalece a negociação (WRIGHT, 1978). Conforme esclarece o autor, estes modelos não pressupõem exclusivamente relações de cooperação ou de competição entre os participantes, evitando, portanto, conclusões implícitas sobre se a colaboração e o consenso prevalecem sobre o conflito e a ruptura, e, por isso, deixa em aberto a questão à análise específica e às investigações empíricas sobre o funcionamento das RIG.

A negociação está relacionada ao acordo que deve existir entre as unidades territoriais, no sentido de conduzir as políticas públicas por meio de um pacto federativo. Aqui, retoma-se a relação de interdependência, inerente ao federalismo cooperativo, que também está no cerne das discussões das relações intergovernamentais, pois as RIG abrangem uma grande variedade de tipos de funcionários públicos (os tribunais, os legisladores, os executivos), envolvendo as interações dos atores para além das suas fronteiras em torno da formulação, implementação e avaliação de políticas públicas (AGRANOFF, 2007). Esse ponto em comum cria aproximações entre os aportes teóricos, convencionando-se dizer que não se pode discutir o federalismo, sem se inserir no campo das RIG. Passar a entender o federalismo não apenas como um recurso político-constitucional, mas também como um recurso administrativo – como uma questão de relações intergovernamentais – facilita o gerenciamento e a organização política (ELAZAR, 2011).

As seis principais características do modelo de Autoridade Sobreposta podem ser assim resumidas (WRIGHT, 1978): poder limitado e disperso; alto grau de interdependência; áreas limitadas de autonomia; relações de negociação e troca; cooperação e competição simultâneas e negociação como uma estratégia para chegar a acordos. A principal consideração na organização cooperativa das relações intergovernamentais tem sido a necessidade de equilibrar, por um lado, os objetivos e valores da coordenação, a fim de alcançar fins comuns e reduzir sobreposições desnecessárias em termos de competência, e, por outro lado, o valor de permitir ação autônoma por unidades constituintes, para possibilitar inovações políticas e

respostas diversificadas em diferentes condições econômicas, sociais, culturais e históricas (WATTS, 2006).

Nessas circunstâncias, os entes federados precisam desenvolver uma grande variedade de ferramentas e formas de interação entre os governos, a fim de coordenar o exercício das competências distribuídas entre as diversas entidades que participam da tomada de decisão. Há três dimensões nas quais as relações intergovernamentais podem variar (CAMERON, 2001, p. 124):

a) O grau de institucionalização: em um determinado país, as RIG podem ser altamente institucionalizadas, com estruturas e processos formais que canalizam a atividade intergovernamental.

b) A caracterização da tomada de decisão: as RIG podem envolver baixo grau de compartilhamento de informações entre os governos de uma federação; podem implicar a necessidade de consultas e o ajustamento das políticas por um ente à luz dos planos nacionais; ou pode adotar-se uma tomada de decisão formal, em que o fórum intergovernamental é o local onde são feitas algumas das escolhas de uma comunidade federal.

c) O grau de transparência: as RIG podem ser praticadas a portas fechadas, com pouca iniciativa para o conhecimento ou a responsabilidade popular, ou podem ser incorporadas em processos que estão abertos ao domínio público, restringidos por linhas claras de responsabilidade democrática.

De acordo com Watts (2006), os entes federados precisam desenvolver uma grande variedade de ferramentas e formas de interação entre os governos, a fim de coordenar o exercício das competências distribuídas entre as diversas entidades de tomada de decisão. Portanto, a interação intergovernamental pode assumir uma variedade de formas que vai da elaboração de políticas independentes a acordos formais, conforme demonstra o Quadro 5.

Quadro 5 – Possibilidades de interação intergovernamental

Forma de interação Descrição de como ocorre

Elaboração de políticas independentes

Ocorre quando, em assuntos que afetam outros governos, um governo toma medidas sem consultar os outros ou considerando os seus interesses, e os outros governos são forçados a se ajustar de forma independente.

Consulta

Representa um processo através do qual os governos reconhecem que suas ações afetam outros e, por conseguinte, trocam opiniões e informações antes de agir, mas, em última análise, a ação de cada um permanece independente.

Coordenação

Ocorre quando os governos não só consultam, mas tentam desenvolver políticas comuns mutuamente aceitáveis, que, em seguida, cada um aplica e desenvolve dentro da sua própria jurisdição.

Forma de interação Descrição de como ocorre

Tomada de decisão conjunta

Exige que os entes trabalhem em conjunto, comprometendo-se a cursos específicos de ação e padrões de conduta.

Resolução de conflitos

Pode ser alcançada pela negociação intergovernamental que culmina em um acordo, resolvendo problemas.

Acordos formais Aplicam-se acordos especiais como procedimento para a resolução de conflitos, ou,

como uma última providência, através de recurso aos tribunais para dirimir o litígio. Fonte: Watts (2006).

Quanto a essas possibilidades de interação, percebe-se que a autonomia dos entes federados é estabelecida na Constituição, mas a existência de um contrato não é condição suficiente para garantir a resolução dos conflitos entre as partes, por isso, a existência de um ambiente mais conflituoso ou mais harmonioso está sujeito também ao padrão desenvolvido de relações intergovernamentais, havendo reflexos no desenho das políticas (ABRUCIO; SANO, 2013). As disputas, na verdade, são a própria essência da política. O objetivo mais realista, na concepção de Watts (2006), é o de gerenciar a competição e os conflitos por meio de processos que incentivem a cooperação. A este respeito, as instituições e os processos de relações intergovernamentais têm duas funções importantes: prevenção e resolução sem ter que apelar para processos judiciais, e maneiras de se adaptar à evolução das circunstâncias sem ter de recorrer a emendas constitucionais.

Em uma visão de síntese, argumenta-se que, se o federalismo possui como características essenciais a autonomia e a interdependência, mas a eficácia do sistema federal está sujeita às condições históricas e culturais de cada país, o que leva ao entendimento de que não existe um padrão que possa ser transplantado de um país a outro, é por meio da dinâmica das relações intergovernamentais que será possível encontrar uma interação mais cooperativa e condutora de políticas públicas. A capacidade de adaptação à evolução das circunstâncias políticas e sociais surge sistemicamente em um sistema federal que incentiva e consagra parcerias entre dois ou mais níveis de governo.

Morduchowiez e Arango (2010) alertam que a eficácia do sistema federal está sujeita às condições históricas, culturais e dos costumes de cada país, o que leva ao entendimento de que não existem as “melhores práticas” que possam ser simplesmente transplantadas de um país a outro. Nesse sentido, faz-se necessário investigar como tem se conformado o federalismo contemporâneo no caso brasileiro, de modo que seja possível compreendê-lo enquanto condutor das atuais políticas da educação no Brasil.