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3.2 A discricionariedade e os conceitos indeterminados no Direito brasileiro

A discricionariedade tem como fundamentos: deliberada concessão legal à Administração para que esta avalie no caso concreto qual a melhor maneira de satisfazer a finalidade legal; a impossibilidade material de o legislador prever todas as possíveis situações fácticas; e a inviabilidade jurídica, posto que a lei tem caráter abstrato, sendo impróprio (ao legislador) invadir esfera de individualização própria do Executivo, sob pena de sacrificar a sua própria qualidade de legislador259.

257 Jean Rivero, Direito Administrativo, trad. Rogério Ehrhardt Soares, Coimbra, Almedina, 1981, p. 93. 258 José Cretella Júnior (op. cit., p. 244) entende que “na prática, in concreto, o mérito apresenta-se como a ponderação pessoal da autoridade administrativa sobre determinados fatos, que a levam a decidir num sentido ou noutro e, até mesmo, a nada decidir. Essa ponderação pessoal é traduzida em um juízo de valor. Isto é melhor, isto é útil, isto é oportuno, isto é conveniente.”

259 Os fundamentos foram extraídos da preciosa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello. Contudo, excluimos propositadamente o que o autor enumera como um quarto fundamento da discricionariedade, a “impossibilidade lógica”, pois a ela atrela a noção de conceitos indeterminados. Afirma o autor: “Ao lado de conceitos unissignificativos, apoderados de conotação e denotação precisas, unívocas, existem

conceitos padecentes de certa imprecisão, de alguma fluidez e que, por isso mesmo, se caracterizam como plurissignificativos. Quando a lei se vale de noções do primeiro tipo ter-se-ia vinculação. De revés, quando se vale de noções altanto vagas ter-se-ia discricionariedade.” (Curso de Direito Administrativo ..., p. 553)

Os conceitos jurídicos indeterminados são empregados para designar expressões que são encontradas com freqüência nas normas jurídicas mas que não possuem um sentido claro, cujo conteúdo e extensão levam, em grande medida, à incerteza.

Sobre os conceitos jurídicos indeterminados, Di Pietro afirma, grosso modo, que a doutrina se posiciona de duas maneiras260: uns entendem que não há discricionariedade porque diante deles o administrador tem de fazer a interpretação da norma, chegando a uma única solução possível; enquanto outros defendem que eles conferem discricionariedade quando se tratar de conceitos de valor, e que esta não subsiste quando se tratar de conceitos técnicos ou de experiência.

A doutrina brasileira, em regra, vincula os conceitos indeterminados com a idéia de discricionariedade. A ligação se daria na medida em que a discricionariedade representaria a parcela remanescente à interpretação de conceitos plurissignificativos. Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, afirma que “a liberdade administrativa estender-se-ia ao longo do percurso de imprecisão do conceito utilizado”261. Isto é, dentro da zona de indefinição ou penumbra competiria ao Administrador escolher, dentre as diversas opções possíveis, aquela que se encaixaria perfeitamente ao caso concreto. Esses conceitos que o autor insere como pertencente ao mundo do valor e da sensibilidade, acabariam por acarretar uma “impossibilidade lógica” de completa vinculação, pois são essencialmente conceitos vagos, fluidos ou imprecisos, que cometem ao administrador a obrigação de eleger, in concreto a solução ideal.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro262 segue a mesma linha de Celso Antônio Bandeira de Mello ao entender que, quando a Administração emprega conceitos indeterminados, será necessário, em primeiro lugar, interpretá-los para verificar se estes são conceitos que somente possuem um único significado, ou se possuem dois ou mais significados. Ao encerrar a atividade interpretativa, se somente for possível identificar um único significado, a atividade será vinculada; se for possível encontrar duas ou mais soluções igualmente válidas, o administrador deverá utilizar-se de seu juízo para chegar a uma solução adequada, aí se terá a discricionariedade. Portanto, somente quando termina o trabalho interpretativo é que tem início a discricionariedade.

A autora esclarece que somente quanto aos conceitos de experiência ou empíricos é que fica afastada a discricionariedade, porque existem critérios práticos e

260 Cf. Di Pietro, Discricionariedade Administrativa ... p. 92.

261 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo ...,, p. 553. 262 Di Pietro, Direito Administrativo, 8. ed., São Paulo, Atlas, 1997, p. 478 e ss.

objetivos, extraídos da experiência comum que servem de referência. Nos casos de conceitos técnicos, afirma que “nem toda ciência técnica é ciência exata”263, havendo casos em que um parecer técnico poderá dar margens a diferentes interpretações. Acrescenta a autora que os pareceres técnicos não são necessariamente vinculantes, havendo situações em que outros valores podem se sobrepor para que o administrador decida em sentido contrário. Já nos casos de conceitos de valor, a discricionariedade existe, “embora não signifique liberdade total isenta de qualquer limite.”264 O problema que Di Pietro ressalta é juntamente como definir onde termina a interpretação e inicia a discricionariedade.

A solução dos autores para esses conceitos fluidos é resumidamente a seguinte: se não houver um critério objetivo que possa ser extraído da norma, da ciência ou da experiência comum, se houver necessidade de apreciação subjetiva de valor para delimitação do conceito em exame, haverá discricionariedade.

Arruda Alvim265 distingue discricionariedade de conceitos indeterminados. Aquela investe o administrador da possibilidade de mais de uma solução legítima enquanto estes conduzem ou tendem a conduzir, necessariamente, à univocidade. Para o autor, conceito vago é o que conduz a um núcleo de evidência da situação, fora do qual há uma área de hesitação e incerteza. O ato discricionário, no entanto, é o que eleva a esfera de liberdade em norma incompleta ou em branco, deixando ao administrador uma margem para exercer um juízo de oportunidade e conveniência.

Germana de Moraes atualiza o tema da discricionariedade e dos conceitos indeterminados e conclui detalhadamente que, por primeiro, é preciso desvincular a discricionariedade da idéia de controle judicial. Traz a idéia de superação do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade, pontuando que o Direito deixou de ser entendido como “direito por regras” passando a conter uma nova concepção do “direito por princípios”; onde o ato administrativo vincula-se em maior ou menor grau não apenas à legalidade, mas à totalidade de princípios. A “principialização do Direito” deu a permissão para redefinir os limites da discricionariedade, fornecendo novos standards

263 Cf. Di Pietro, Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, São Paulo, Atlas, 1991, p. 93.

264 Idem, p. 93.

265 Arruda Alvim, “A discricionariedade administrativa e o controle judicial”, in: Carlos Ari Sundfeld e Cassio Scarpinella Bueno (org.), Direito processual público: A Fazenda Pública em juízo, São Paulo, Malheiros, 2000, p. 227-237.

que modificaram também a relação entre o Direito, a lei e a discricionariedade266. Essa visão do Direito por princípios serviria, inclusive, como critério orientador e dosador das decisões a serem tomadas pela Administração Pública para o exercício daquela liberdade. A ponderação de interesses envolvidos na decisão discricionária seria resolvida por meio dos “princípios constitucionais e princípios gerais de Direito, bem como a critérios não positivados alheios a esses princípios. Daí decorre a distinção entre discricionariedade e mérito, adstrito esse último à valoração administrativa mediante parâmetros não positivados — oportunidade e conveniência, que refogem aos vetores fixados nas normas constitucionais e infraconstitucionais.”267 O mérito é, então, a parcela da discricionariedade preenchida pela valoração não permeada por qualquer critério positivado. Por essa razão, é que esta parcela seria insuscetível de controle jurisdicional.

A autora faz distinção entre discricionariedade e conceitos jurídicos indeterminados268. Ou seja, os conceitos jurídicos indeterminados não se situam necessariamente na área discricionária, nem encerram um único tipo. Podem ser conceitos jurídicos indeterminados vinculados ou não-vinculados, e dentre esses últimos há os discricionários ou não. Os vinculados são aqueles que conduzem a uma única solução juridicamente possível no caso concreto. Os não vinculados, ao contrário, conduzem a mais de uma solução jurídica razoavelmente sustentável perante o Direito. Dentre os não-vinculados, os discricionários são aqueles que compreendem, além do tipo aberto da norma, uma divergência axiológica onde será necessário avaliar e ponderar os interesses envolvidos, valorando-os sob a lente do interesse público inserido na norma. Há ainda os conceitos jurídicos indeterminados não vinculados que não são discricionários. Esses, Germana de Moraes denomina de “conceitos verdadeiramente indeterminados” que são os conceitos que envolvem juízos de

266 Germana de Moraes defende que: “A principialização do Direito [...] forneceu novos parâmetros jurídicos — não legais e que antes eram políticos, de exercício dessa liberdade e destacou o mérito como ‘núcleo político’ da discricionariedade insuscetível de revisão jurisdicional. Deste modo, propiciou o controle jurisdicional de aspectos discricionários dos atos administrativos, distintos do mérito”. (op. cit., p. 37).

267 Idem, p. 179.

268 Germana de Moraes entende que “O exercício da discricionariedade não se confunde com a valoração administrativa dos conceitos verdadeiramente indeterminados. No entanto, intercepta-se com a aplicação das normas enunciadas, através de conceitos indeterminados, quando estes são empregados no

conseqüente (estatuição de efeitos) da norma jurídica, para expressar uma indeterminação de efeitos. Tem-se o exemplo clássico: diante das situações perturbadoras do interesse público, a administração poderá adotar as medidas necessárias. O efeito previsto é enunciado de forma vaga, através da expressão ‘medidas necessárias’.” (Ibidem, p. 73)

prognose, ou seja exigem uma avaliação prospectivas das circunstâncias de fato, envolvendo uma aptidão que se volta para o futuro.

Em suma, podemos dizer que, a discricionariedade também é um caso de remissão legal. Só há discricionariedade administrativa porque a lei assim dispõe, e é importante distingui-la dos conceitos jurídicos indeterminados (interesse público, boa- fé, entre outros). Estes por vezes se mostram, no caso concreto, perfeitamente delimitáveis, pois admitem somente uma solução269, como é o caso dos conceitos jurídicos indeterminados vinculados. Os conceitos jurídicos indeterminados podem ser de dois tipos: vinculados e não vinculados. Já quando há discricionariedade, há sempre mais de uma hipótese possível para solução do caso, todas igualmente legais, portanto, legítimas.

Essas diferenciações demonstram sua valia para a imposição dos limites à apreciação judicial do ato administrativo.