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Do que foi discutido, dois pontos valem ser ressaltados. O primeiro deles é que a norma inconstitucional, enquanto ato estatal, deve ser desconstituído, por isso, a sentença que declara a inconstitucionalidade da norma é constitutiva negativa (porque desconstitui um ato estatal emanado pelo poder legislativo). Isto, decerto, contribui para a clareza e coesão do ordenamento jurídico.

O segundo ponto é que as normas inconstitucionais são existentes, mas são inválidas: são nulas. A regra é a nulidade ab initio. Sendo assim, a norma inconstitucional, porque é nula, não obriga a sua observância.

Mas mesmo as normas nulas produzem efeitos mínimos, porque são atos estatais e dispõem da presunção de constitucionalidade. Por isso, não se pode exigir que as pessoas comuns formulem juízos de constitucionalidade, somente exigível do Poder Judiciário.

Prosseguindo um pouco mais nas divagações acerca do problema, conclui-se ainda que a norma inconstitucional aplicada ao caso concreto transforma-se em ato da Administração (inconstitucional). Se é assim, mais grave ainda é aceitação e aplicação da norma inconstitucional. O único modo de não criar direito algum seria deixar de aplicar a norma inconstitucional. Mas em realizando-a, gera efeitos, no mínimo, aos particulares.

Durante a vigência de uma determinada Constituição, por exemplo, uma norma viciada pode vir a ser aplicada por dez anos, e somente após todo esse longo lapso temporal, vir a ser declarada inconstitucional. Ou, suponhamos, por puro exercício de abstração, que artigos da lei de licitação sejam julgados inconstitucionais, e com base neles inúmeras licitações foram decididas, e os objetos adquiridos e consumidos antes da declaração de inconstitucionalidade. Seria um caos simplesmente apagar a norma sem visualizar os reflexos deste ato na vida das pessoas. Desse modo, o mais correto será eleger certas condições, essenciais para a preservação da fides e da segurança jurídica, para que as situações fáticas constituídas124 não desapareçam deixando em seu lugar a incerteza e o sabor da injustiça.

Por isso é que se colocou como critério a questão da aferição da boa-fé e da situação pretendida não ofender gravemente à ordem pública. Se esses pré-requisitos foram obedecidos, a situação consumada deve ser preservada. Isto nada mais é que aqueles mesmos valores eleitos pelo legislador quando da publicação das Leis nº 9.868/99 (art. 27) e nº 9.882/99 (art. 11). O legislador fala em restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade tendo em vista razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social. A boa-fé e a preservação da ordem pública são valores que

124 É de Mauro Cappelletti (O Controle Judicial de Constitucionalidade ..., p. 124) a afirmação: “Basta dizer aqui, particularmente, que, em matéria penal, as Cortes americanas tem sempre considerado — e agora a lei alemã a italiana expressamente dispõem — que, sem embargo do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, ninguém deve ser obrigado a cumprir uma pena que tenha sido imposta com fundamento em uma lei posteriormente declarada inconstitucional. Em matéria civil, ao invés, e às vezes, também em matéria administrativa, se tem preferido respeitar certos ‘efeitos consolidados’ (entre os quais emerge, de modo particular, a autoridade da coisa julgada), produzidos por atos fundados em leis depois declaradas contrárias à Constituição: e isto em consideração ao fato de que, de outra maneira, se teriam mais graves repercussões sobre a paz social, ou seja, sobre a exigência de um mínimo de certeza e de estabilidade das relações e situações jurídicas.”

devem ser pesados (pelo juiz) para se aferir a existência de excepcional interesse social. A segurança jurídica representa a certeza do direito e a confiança de que as situações constituídas ganham estabilidade e permanência ao longo do tempo; é a certeza de que as relações dela derivadas são boas e serão preservadas, sob pena do império da desconfiança e da insegurança, que não são os bens que o Direito se propõe a proteger.

Falho o controle preventivo, as pessoas que agiram conforme a norma posteriormente julgada inconstitucional não devem ser prejudicadas em seus supostos “direitos”, desde que atendam aqueles três pré-requisitos enumerados. O fundamento para esta afirmação não está no fato de serem as leis anuláveis e sim no fato de que o ato legislativo, apesar de lícito, gera responsabilidade do Estado-Legislador. Especificamente pode-se defender a responsabilização do Estado-Legislador em decorrência do art. 37, § 6º da CF/88. Esta a fundamentação jurídica maior.

Mas, para tanto, é necessário que as pessoas que forem prejudicadas ingressem em juízo para que tenham sua situação preservada, para que não se desconstituam as situações que lhe são favoráveis. São situações que, por uma questão de lógica, sempre foram inconstitucionais, mas aos olhos do interessado “pareciam” legais e se “tornaram” inconstitucionais com a declaração pelo Poder Judiciário. No nosso sentir, nesses casos deve o Judiciário preservar as situações constituídas amparando-as na responsabilidade do Estado-Legislador, numa responsabilização por ato lícito — e é lícito porque originada da natural competência que detém o legislador de criar as normas — mas que efetivamente produziu dano ao editar norma inconstitucional que não foi detectada pelo sistema.

Para as normas inconstitucionais, portanto, os limites para a prevalência da situação fática constituída sobre a norma posteriormente declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário125 são: os critérios legais de segurança jurídica ou excepcional interesse social. Para aferi-los, é necessário que o juiz verifique se o agente está em boa-fé e a ausência de graves prejuízos à ordem pública. Se há ofensa a qualquer desses dois pressupostos, sendo nula a norma viciada, não há efeitos a serem preservados, desaparecendo com a declaração de inconstitucionalidade, os efeitos que se julgavam regulares.

125 Se o Poder Judiciário, por meio do STF, não estipular em sentido contrário, quando for avaliar a extensão da declaração da inconstitucionalidade, e neste caso determinar os efeitos a partir de quando serão válidos, restringindo os efeitos da nulidade ab initio, nos termos das Leis nºs 9.868/99 e 9.982/99.

Conclui-se, finalmente, que, em caso de declaração de inconstitucionalidade, alguns efeitos poderão ser mantidos. Os direitos à situação fática constituída subsistirão porque o ato de legislar é um munus que não pode nem deve ser inconseqüente, cabendo a responsabilização do Estado-Legislador ocasionada pelo insuficiente controle de constitucionalidade das normas. Somente desta maneira será preservado um dos pilares do Direito: a segurança jurídica.

Título II

PRINCÍPIOS DO ESTADO DE DIREITO

NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO

CAPÍTULO IV

O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Sumário: IV.1 – Questionamentos IV.2 - O ordenamento