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A Declaração do Homem e do Cidadão determinava em seu art. 5º: “A lei não proíbe senão as ações nocivas à sociedade. Tudo aquilo que não é proibido pela lei não

140 Como muito bem ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho: “Este, que exalta a garantia dos direitos do homem como razão de ser do Estado, exigia que o poder público tivesse limites, para que não interferisse no domínio próprio e irredutível da liberdade individual. Dessa insistência resultou que o princípio de limitação do poder fosse visto como o princípio liberal por excelência” (Curso de Direito Constitucional..., p. 239).

141 Jorge Miranda, Constituições políticas de diversos países, ..., p. 53.

142 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988, São Paulo, Atlas, 1991, p. 14.

pode ser impedido e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene143”. A Constituição Francesa também seguiu essa mesma linha. Assim nascia, positivado, o princípio da legalidade.

Mas é interessante anotar que o princípio da legalidade no Estado Liberal tinha uma conotação diferente da que tem hoje, pois tentava conciliar a submissão da Administração Pública à lei, com o poder discricionário. Esta concepção ficou conhecida como da vinculação negativa da administração. Isso queria dizer, basicamente, duas coisas: que a Administração poderia fazer tudo o que a lei determinasse e tudo o que ela não proibisse. A conseqüência natural dessa idéia é que haveria uma larga faixa de atuação desvinculada da lei e de qualquer controle judicial, pois, entendida como discricionariedade, não se submetia à apreciação do Poder Judiciário.

Já em meados do século XIX começaram as reações ao Estado Liberal e também esse princípio começou a sentir uma mudança de concepção.

Insuficientes os postulados de igualdade e liberdade formais para manter o Estado Liberal, que afundava na forte desigualdade social, surge o Estado Social, trazendo uma nova temática: o intervencionismo estatal. O rol de atividades exercidas pelo Estado cresceu espantosamente. Consolidou-se a burocracia. Entre os direitos individuais e as prerrogativas públicas, o peso ficou com esta última. O princípio da legalidade ganhou novos contornos com a influência do positivismo jurídico144, passando a significar que a Administração só pode fazer o que a lei determina, e a abranger agora toda a atividade administrativa. Concebe-se, desse modo, a teoria da vinculação positiva da Administração pela legalidade, princípio, hoje, universalmente aceito145 e que vem significar a submissão plena da Administração Pública à lei e ao Direito, de modo que se uma ação administrativa não tem por base uma previsão normativa não é valida, ou, em outros termos: a ação administrativa não apenas está limitada pelo Direito, mas sim condicionada à existência de previsão legal para sua atuação, devendo, para ser legítima, a ela se conformar.

143 Jorge Miranda, Constituições políticas de diversos países..., p. 52.

144 Segundo Garcia de Enterría e Fernandez (op. cit., p. 374), foram o Kelsianismo e, dentro do Direito Administrativo, Merkl, que desencadearam as primeiras reações sistemáticas contra a explicação deficiente da legalidade da Administração, uma vez que a teoria kelseniana não admite nenhum poder jurídico fora da construção normativa escalonada, ou seja, sem que haja uma atribuição normativa precedente.

Mesmo essa concepção do Estado Social, que tudo abarca, tudo resolve, tudo promove, não conseguiu resolver os problemas sociais, e fez inchar a estrutura estatal. Surge então um novo conceito e uma nova adjetivação, o “democrático”, que vem somar-se para garantir a participação popular nas decisões e controle estatais. Essa denominação de “Estado Democrático de Direito” não o qualifica apenas pela participação popular, busca também resgatar o ideal da justiça material.

De tudo, ficou o princípio da legalidade como legado para a sociedade, e este é tão caro em nosso Direito que Francisco de Assis Munhóz146, comentando o art. 5º, II da Constituição de 1988, chega a defender que este é o “princípio aglutinador do sistema jurídico”, vez que ele traz a certeza de que a soberania outorgada ao Estado será exercida por este, sempre nos termos da lei, pois também o Estado a ela se submete. Eis o que dispõe o citado artigo da nossa Constituição: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Luís Roberto Barroso expõe que o princípio da legalidade, apesar de pouco explorado pela doutrina nacional, “manifesta-se sob duas formas diversas, que constituem, na verdade, dois princípios autônomos: o da preeminência da lei e da reserva da lei. Embora remontando à mesma raiz, cada um deles traduz idéia substancialmente diversa.”147 O primeiro deles traduz uma idéia de hierarquia das fontes normativas, de submissão e respeito à lei, e atuação dentro dos limites nela impostos; enquanto o segundo envolve questão de competência, querendo expressar que a regulamentação de certas matérias há de ser feita obrigatoriamente por meio de lei formal.

Celso Antonio Bandeira de Mello ensina que “o princípio da legalidade é o específico do Estado de Direito, é justamente aquele que lhe dá identidade própria. Por isso mesmo é o princípio basilar do regime jurídico-administrativo, [...]”.148 O autor defende ainda que o princípio da legalidade contrapõe-se a todo e qualquer agir arbitrário e poder autoritário do governo, e tem como origem a idéia de soberania popular, uma vez que as leis são editadas por um corpo de representantes do povo e a

146 Francisco de Assis Munhoz, “O Princípio da Legalidade no Sistema Constitucional e no Sistema Tributário”, Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 7, nº 26, jan./mar., 1999, p.150.

147 Luís Roberto Barroso, “O Princípio da Legalidade — delegações legislativas, poder regulamentar — repartição constitucional das competências legislativas”, BDA, ano XIII, nº 1, jan./1997, p. 16. Com a mesma defesa, José Afonso da Silva, op. cit., p. 368 e ss.

148Celso Antonio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 8. ed., São Paulo, Malheiros, 1996, p. 56.

atuação do Executivo nada mais seria senão a concretização desta vontade geral. É da raiz de soberania popular que o autor deságua no viés que exalta a cidadania.

Para Di Pietro, na base de tão importante princípio estão as idéias da separação de poderes e a de que somente a lei representa o poder legítimo, pois traduz a vontade do povo149. Isso, tomado por uma visão parlamentarista, certamente acarreta a prevalência do Legislativo sobre os demais poderes. Aos Poderes Executivo e Judiciário restaria a aplicação da lei. Retirou-se do Executivo o poder regulamentar inovador. Ao Judiciário caberia o controle dos atos realizados pelo poder público.

E, na mais tradicional das lições, é bastante reproduzir os ensinamentos de Hely Lopes Meirelles: “Na Administração Pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa pode fazer assim; para o administrador público significa deve fazer assim.”150

Germana de Moraes traz significativa atualização ao princípio da legalidade ao indicar que ele, em sua versão estrita, não se mostrou suficiente para conter os abusos da Administração no Estado Social nem os excessos dos legisladores. O princípio da legalidade passa, então, a partir da constitucionalização de princípios gerais do Direito, a conter um novo sentido: “de legalidade constitucional, ao ordenar e regular o Poder Legislativo, e de juridicidade, ao ordenar e regular o Poder Executivo [...]”.151 O primeiro conteúdo busca no Legislativo uma superação da legalidade pelo princípio da constitucionalidade, enquanto o segundo busca a limitação do poder administrativo pela sua adequação ao Direito, decomposto em regras e princípios (princípios constitucionais e princípios gerais do Direito).

Dentre os estrangeiros mais modernos, Enterría e Fernandez152 entendem que o princípio da legalidade se expressa de uma forma técnica específica, qual seja, atribuindo potestades à Administração. Com isso querem dizer que toda atividade administrativa apresenta-se como exercício de um poder previamente atribuído pela lei, por ela delimitado e construído. Afirmam que a potestade não decorre de nenhuma

149 Cf. Di Pietro, Discricionariedade Administrativa na Constituição de 1988 ..., p. 18.

150 Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 22. ed. São Paulo, Malheiros, 1997, p. 82 (grifos do autor).

151 Germana de Moraes, Controle Jurisdicional da Administração Pública, São Paulo, Dialética, 1999, p. 23 (grifos no original).

152 Dos autores é ainda a afirmação: “A legalidade define, pois, e atribui, com normalidade, poderes à Administração. A ação administrativa é o exercício de tais poderes, exercício que criará, modificará, extinguirá, protegerá, exercerá relações jurídicas concretas. A dinamicidade inacabável da vida administrativa tem sua causa neste mecanismo técnico.” (Enterría e Fernandez, op. cit., p. 381).

relação jurídica, mas diretamente do ordenamento jurídico, e que a ela não corresponde nenhum dever positivo ou negativo, mas sim simples sujeição (vantajosa ou desvantajosa) de outros sujeitos (todos os cidadãos) a suportar sobre suas esferas os efeitos do exercício da potestade. É justamente por causa da origem legal dessas potestades que os autores a deduzem como inalienáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis e inesgotáveis. Consideram-nas como técnica da Teoria Geral do Direito153. Ao particularizá-la ao caso da Administração, ela se encontraria especialmente limitada e condicionada pelo princípio da legalidade. E continuam nesse viés até afirmarem que, para que os regulamentos não concluam em abuso, os limites da potestade regulamentária e, em particular, a reserva de matéria à lei, são a única garantia para que essa possibilidade não ocorra.

Já Rafael Entrena Cuesta154 afirma que há técnica para a realização deste princípio, e as enumera da seguinte forma: 1º) a Administração se submete à lei em sentido estrito, porque há matérias reservadas à competência do Poder Legislativo que vinculam a Administração; 2º) porque se estrutura uma ordem hierárquica das fontes, que tem de ser respeitada quando da produção das normas administrativas; 3º) proíbe-se à Administração alterar, mediante atos singulares, o estabelecido em disposições ditadas pela lei; 4º) a Administração tem obrigação de perseguir em todas as suas ações o interesse público; 5º) se a Administração descumpre qualquer dos princípios citados o ato viciado fica sujeito à invalidade; 6º) por fim, se a Administração causar dano ao particular fica sujeito a indenizar, ainda que tenha agido conforme o Direito.

Prosper Weil, analisando o Direito Francês, afirma que toda a atividade dos órgãos administrativos se rege pelo princípio da legalidade, mas este tem duas exceções155: a teoria dos atos de governo e o poder legislativo do Executivo156. Os atos de governo representam uma questão de sobrevivência do Estado e não estão submetidos à apreciação do Poder Judiciário. O segundo é mais perigoso que o primeiro, porque “ao passar da concepção política, baseada na hierarquia de órgãos, à

153 “A figura da potestade não é exclusiva da Administração” (Idem, p. 383).

154 Cf. Rafael Entrena Cuesta, Curso de Derecho Administrativo, v. I/1, 12. ed., Editora Tecnos, p. 140-2. 155 Prosper Weil, O Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 1977, p.110-9.

156 Com o crescimento no Brasil da idéia das agências reguladoras, que deteriam especial conhecimento técnico sobre as matérias correspondentes às áreas de sua atuação, a doutrina tem discutido acerca da possibilidade legal destas editarem normas que disciplinariam a atuação das empresas em diversos setores. Consideramos que o tema merece estudo mais aprofundado que não cabe no âmbito deste trabalho. Remetemos, contudo, o leitor para o item V.5.1, onde há uma rápida análise sobre o tema do poder normativo do Poder Executivo.

concepção técnica da hierarquia das normas, o direito francês abriu uma brecha terrível, se bem que excepcional, na submissão do executivo ao direito.”157

No Direito Brasileiro, a doutrina não aceita o regulamento autônomo, portanto, todo e qualquer ato normativo do Poder Executivo tem de ser pautado na lei.

IV.5 - O Estado de Direito e Social e o desprestígio das leis