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A lei, por si só, já goza de presunção de constitucionalidade uma vez que foi editada pelo poder competente e eleito para tal fim, por ter sido editada segundo o processo legislativo e por passar pelo controle preventivo de constitucionalidade. É porque se submete a esse controle prévio, e também porque as leis são editadas pelas Câmaras Legislativas — as quais são formadas pelos representantes do povo, eleitos com o fim de criar as leis a que todos se submeterão (inclusive o próprio Estado) —, que elas gozam de tal presunção.

Mas, como sabido, se insuficiente o sistema de defesa preventivo, para ser extirpada a norma inconstitucional é necessário que passe por um processo especial que a retire do ordenamento jurídico, diferentemente daquele ordinário a que se submetem todas as normas vigentes (lei posterior revoga a anterior). Esse processo especial é o controle de constitucionalidade das leis, que, no caso brasileiro, é confiado ao Judiciário.

Também os atos administrativos, e dentre eles os atos normativos editados pelo Poder Executivo, gozam de presunção de legitimidade. Sabe-se, porém, que em muitos casos o Poder Executivo extrapola esses limites impostos constitucionalmente (art. 84, III e IV da CF/88) e edita normas que inovam o ordenamento, criando, extinguindo ou modificando direitos. No entanto, é mais que sabido que o sistema brasileiro não admite o regulamento e o decreto autônomos174.

173 Esta a opinião de Inocêncio Mártires Coelho, em seu “As idéias de Peter Häberle e a abertura da interpretação constitucional no direito brasileiro”, Revista de Informação Legislativa, ano 35, nº 137, jan.-mar./1998, p. 157-164.

174 Vide Luís Roberto Barroso (“O Princípio da Legalidade — delegações legislativas, poder regulamentar — repartição constitucional das competências legislativas”, ..., p. 15-28); Celso Antônio Bandeira de Mello (Curso de Direito Administrativo ..., p. 182 e ss.); Maria Sylvia Zanella Di Pietro (Direito Administrativo, 8. ed., São Paulo, Atlas, 1997, p. 74 e ss.), entre outros.

Aliás, Celso Antônio Bandeira de Mello, tem uma passagem particularmente elucidativa (invocando também os ensinamentos de Pontes de Miranda), no qual defende que o Executivo não pode inovar ao editar regulamentos, uma vez que a Constituição determina que é seu dever editar regulamentos para o fiel cumprimento da lei, como abaixo transcrevemos175:

Por tudo quanto se expôs resulta óbvio que são inconstitucionais as disposições regulamentares produzidas na conformidade de delegações disfarçadas, resultantes de leis que transferem ao Executivo o encargo de disciplinar o exercício da liberdade e da propriedade das pessoas. Tal perigoso vício é especialmente vitando e contra ele adverte Pontes de Miranda, ao averbar: 'Se o Poder Legislativo deixa ao Poder Executivo fazer lei, delega; o poder regulamentar é o que se exerce sem criação de regras jurídicas que alterem as leis existentes e sem alteração da própria lei regulamentada. Nem o Poder Executivo pode alterar regras jurídicas constantes de lei, a pretexto de editar decretos para sua fiel execução, ou regulamentos concernentes a ela, nem tal atribuição pode provir de permissão ou imposição legal de alterar regras legais ou escondê-las ou limitá-las... Onde o Executivo poderia conferir ou não direitos, ou só os conferir segundo critério seu ou parcialmente seu, há delegação de poder'.

Ainda outro problema enfrenta o princípio da legalidade diante da denominada Reforma do Estado por que passa o Brasil nos dias atuais, qual seja, a crescente busca da eficiência acima de tudo. Este é o particular alerta de Di Pietro, que analisa a disseminação de privatizações buscadas na Administração Pública brasileira como uma forma de fugir da rígida regra obtida no regime jurídico administrativo. Por isso tantos taxam a Administração Pública de retrógrada, emperrada e ineficiente, mas em vez de serem buscados meios jurídicos de flexibilizá-lo, simplesmente criam formas paralelas à margem desse Direito, como se o Direito Positivo fosse “bom como fachada” e “ruim como direito aplicado”176. Lembra ainda, a autora, que os governantes atropelam a lei a todo o momento em busca de gestão eficiente, mas que essa “eficiência” inserida como princípio constitucional não destrói os demais, ao contrário, deve ser compatibilizada com os outros princípios que regem a administração pública, tais como a legalidade, a moralidade, impessoalidade, o interesse público. Ou seja, a eficiência não é um princípio absoluto e não se confunde com a eficiência das organizações privadas. O Estado de Direito não subsiste sem o princípio da legalidade. Defende então que sejam

175 Celso Antônio Bandeira de Mello, “Poder regulamentar ante o princípio da legalidade”, Revista Trimestral de Direito Público, 4/1993, 71-78, p.77.

176 Maria Sylvia Zanella Di Pietro Parcerias na Administração Pública, 3. ed. São Paulo, Atlas, 1999, p. 227.

realizadas as necessárias alterações legais e constitucionais para viabilizar a modernização e a eficiência da administração pública, mas sempre dentro da Lei.

Há necessidade, pois, de rever o conteúdo do princípio da legalidade a fim de reformulá-lo para que passe a conter não apenas o respeito às regras jurídicas, mas também e principalmente, a compatibilização destas com os princípios gerais de Direito, princípios esses se apresentam constitucionalizados e que se traduzem em respeito à moralidade, eficiência, publicidade, impessoalidade, proporcionalidade, entre outros.

Pois bem, cabe agora responder às primeiras perguntas desse capítulo sobre o que efetivamente deve ser o princípio da legalidade para a Administração.

Pelo exposto, entendemos que não há legalidade conflitante com a Constituição e que a Constituição é a norma fundamental, portanto o pilar do sistema jurídico brasileiro, a vida mesma dele, onde se deve retirar fundamento para a validade das demais normas e atos administrativos públicos.

E esta obediência do Administrador à Constituição e a seus princípios nada mais é que decorrência do fato de ser o Direito Administrativo uma parte do todo denominado sistema jurídico brasileiro, no qual a Constituição tem a supremacia imposta e garantida pelo sistema, sendo ela a fonte de todas as demais normas. Portanto, impossível conceber o Direito Administrativo segregado do sistema jurídico como um todo, nem é possível separá-lo da Constituição. Aliás, aquele tem uma íntima e forte relação com este, vez que é a própria Constituição que traz suas vigas mestras, impondo a observância de princípios e dispondo sobre a forma de organização do Estado, as competências do presidente da República, a iniciativa de lei, entre outros aspectos e competências deveras relevantes.

O princípio da legalidade é, desde quando no art. 1º da Constituição de 1988 afirma que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, o princípio basilar, o princípio-chave de todo o sistema jurídico nacional. Ou seja, não pode haver criação, extinção ou modificação de direitos sem que tenha sido previamente determinado por lei, e por lei que se conforme com a Constituição, em outras palavras, que tenha sido editada respeitando-se o processo legislativo, que seja materialmente compatível com as determinações constitucionais. Do mesmo modo, os atos que dêem execução também estão obrigados a serem conformes com a Constituição, sob pena de inconstitucionalidade.

O princípio da legalidade não está, pois, somente em dar aplicação à lei, mas sim em respeitar e dar execução às determinações constitucionais, sempre, sejam elas regras

ou princípios. A regra há de ser sempre esta: primeiro a obediência à Constituição, depois às normas infraconstitucionais.

CAPÍTULO V

O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES

Sumário: V.1 - A separação de poderes enquanto princípio