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CAPÍTULO 2. AS DISPUTAS CORPORTIVAS EM UM ESPAÇO

2.1. A TEORIA DE BOURDIEU

2.1.3. A DISPUTA NO CAMPO SINDICAL

Embora Pierre Bourdieu não tenha realizado trabalhos aprofundados sobre o sindicalismo como movimento social, nem tampouco como instituição, a cientista política Sophie Béroud, observa que o sociólogo francês interessou-se pelo movimento sindical em suas intervenções de conteúdo político (BÉROUD, 2014). Apoiada nisto, a referida autora utiliza os elementos da teoria bourdiana "a fim de iluminar o universo das práticas sindicais a partir de um ângulo distante das reflexões em termos de sistema de relações profissionais" (BÉROUD, 2014, p. 90), ou seja, "como uma atividade específica, como um espaço social com suas próprias lutas internas, seus próprios princípios de divisão e como um universo profundamente diferenciado do universo político" (BÉROUD, 2014, p. 90-91). A autora demonstra a possibilidade de utilização desses elementos para a compreensão das representações e práticas dos militantes sindicais, assim como das posições mais globais dos sindicato (BÉROUD, 2014). Nada obstante, a autora reconhece os limites das modalidades de ações empregadas pelos sindicatos, embora sejam ainda capazes de promover mobilizações intersetoriais muito fortes (BÉROUD, 2014, p. 91).

Béroud entende o campo sindical (ou campo da representação profissional) como um microcosmo específico; um espaço autorreferenciado, com forte homologia estabelecida com o campo político. No entanto, a descontinuidade em relação à política é colocada tanto como uma necessidade (a recusa de toda influência exterior) quanto como um valor

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constitutivo dessas entidades representativas (BÉROUD, 2014, p. 94-97). Por outro lado, a autora concebe a intervenção do poder público nos sindicatos como um "poderoso fator de diferenciação e de objetivação desse microcosmo", já que o governo é a última instância para o reconhecimento da representatividade das entidades sindicais, que são moldadas pelas instituições, principalmente as jurídicas. Para a autora, a "atividade sindical legítima se fecha nos domínios de intervenção designados por termos como 'profissional', 'social' e 'econômico'; e a interiorização desse limite de ação contribui para a aceitação das regras do jogo das relações profissionais entre 'parceiros sociais'" (BÉROUD, 2014, p. 97).

Evidentemente, essa dimensão do conflito não poderia deixar de ser tratada, uma vez que a FENAPEF e a ADPF são entidades de classe e disputam posições no interior desse campo, seja isoladamente, seja mediante a articulação com outras entidades de classe37.

A ADPF foi fundada em 29 de outubro de 1976, em pleno regime militar, quando a liberdade de associação era limitada e a sindicalização era vedada aos policiais. Inicialmente, representava não só os delegados de polícia federal, mas também os inspetores da instituição (cargo extinto). Segundo os estatutos da entidade, a sua missão é a de "(...) aprimorar a instituição policial, sua doutrina, normas e princípios de atuação funcional, além de trabalhar em defesa dos direitos dos delegados e suas reivindicações" (ADPF, [20--?]).

Os objetivos iniciais dessa entidade voltavam-se aos aspectos assistenciais e culturais, embora, segundo Vanessa Negrini, "sempre fez as vezes de sindicato" (NEGRINI, 2014, p. 72), pois sempre negociou salários e condições de trabalho junto à Direção-Geral da Polícia Federal e ao Governo Federal. O artigo 2º do primeiro estatuto dessa associação estabelecia que a “ADPF não é uma entidade de caráter político-partidário ou de sectarismo religioso” (NEGRINI, 2014, p. 72)

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Com o advento da Constituição de 1988, foram constituídos diversos sindicatos que representam os interesses dos delegados de polícia federal. No entanto, a ADPF é a principal entidade representativa da categoria. Os sindicatos existentes são: SINDEPOL – Sindicato dos Delegados de Polícia Federal no Distrito Federal; SINDEPOL BRASIL – Sindicato Nacional dos Delegados de Polícia Federal; SINDIPOL/DF – Sindicato dos Policiais Federais no Distrito Federal; SINDPF/MG – Sindicato dos Delegados de Polícia Federal no Estado de Minas Gerais; SINDPF/NE – Sindicato dos Delegados de Polícia Federal Região Nordeste; SINDPF/PR – Sindicato dos Delegados de Polícia Federal no Estado do Paraná; SINDPF/RJ – Sindicato dos Delegados de Polícia Federal no Estado do Rio de Janeiro; SINDPF/RS – Sindicato dos Delegados de Polícia Federal no Estado do Rio Grande do Sul; SINDPF/SC – Sindicato dos Delegados de Polícia Federal no Estado de Santa Catarina e SINDPF/SP – Sindicato dos Delegados de Polícia Federal no Estado de São Paulo.

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Negrini observa ainda que a criação da ADPF foi quase que uma iniciativa institucional dos dirigentes da Polícia Federal e seria (...) um órgão de ajuda, cooperação e assessoramento à Direção-Geral do DPF, acompanhando o desenvolvimento de Projetos e Leis que visem benefícios ao DPF e seus integrantes" (NEGRINI, 2014, pp. 72-73). O caráter de oficialidade da entidade pode ser observado no fato de as primeiras reuniões do grupo fundador terem ocorrido na Academia Nacional de Polícia (ANP), que era dirigida pelo comandante da Marinha Clemente José Monteiro Filho, e foi ele quem estimulou a criação de uma comissão para dar início aos trabalhos de criação da Associação (STEINMETZ, 2013, apud NEGRINI, 2014, p. 73).

A ADPF recebia forte apoio institucional. Segundo Negrini,

Quando tinha a necessidade de se realizar uma assembleia-geral com participação das Representações Regionais, a ADPF custeava as passagens, mas os delegados pernoitavam na própria Academia Nacional de Polícia7 . Assim, havia “votos de louvor ao Sr. Diretor Geral do DPF, pelo apoio a efetivação da 1ª Assembléia Geral” 208 . Além disso, o diretor-geral “franqueou os meios de comunicação (grifo nosso) do Departamento para utilização pela ADPF em suas comunicações com as representações regionais” 209 . A ADPF, por sua vez, retribuía mantendo uma postura calculada de “submissão”. Em audiência junto ao Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), o presidente da ADPF enfatizou que a reunião ocorria “com prévia anuência do Diretor Geral do DPF” 210 . O entrosamento da ADPF com a Direção-Geral ocorria ao ponto de se decidir se a ida de um delegado a determinado evento ocorreria pela ADPF ou PF". (...) Nos anos 80, a ADPF tinha salas dentro de várias superintendências para funcionamento de suas respectivas Representações Regionais . A ADPF funcionava até mesmo com móveis emprestados do DPF (NEGRINI, 2014, p. 123-124).

Já na vigência da nova ordem constitucional, em 25 de agosto de 1990, é fundada a Federação Nacional dos Policiais Federais – FENAPEF, com a missão de "defender e representar os servidores da Polícia Federal nos seus direitos e interesses, atuando como agente transformador nas políticas de Segurança Pública" (FENAPEF, [20--?]).

O evidente contraste de intenções (conservação e transformação) sobre outros campos é notado já nos enunciados do que essas entidades consideram como suas missões institucionais, pois a entidade dos delegados demonstra a sua aproximação clara com a estrutura institucional da Polícia Federal, a ponto de considerar-se fundada na hierarquia e disciplina e avocar-se a legitimidade para aprimorar a instituição policial, sua doutrina, normas e princípios de atuação funcional. Já a FENAPEF propõe-se a atuar no sentido de transformar as políticas de Segurança Pública.

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Apesar do papel político que desempenham e do local definido que ocupam neste espaço social (o campo sindical), há de se observar que, embora ambas as entidades tenham atuação em nível nacional, apenas a FENAPEF ocupa lugar institucionalizado no modelo de organização sindical brasileiro, uma vez que é uma entidade sindical de segundo grau. De acordo com o artigo 534 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), as federações são agrupamento de sindicatos e estão legitimadas a coordenar os interesses de suas entidades filiadas. No entanto, não representam diretamente a categoria representada por esses sindicatos (BRASIL, 1943).

Essa circunstância já levou a Justiça Federal a declarar a FENAPEF como parte ilegítima para a propositura de ações judiciais, na qualidade de substituta processual de policiais federais, porquanto não ser representante de sindicalizados, mas de sindicatos.

A partir da Constituição de 1988, a legitimidade da ADPF para representar a categoria dos delegados nas mesas de negociação salarial passou a ser questionada, já que esta seria uma função inerente aos sindicatos (NEGRINI, 2014. p. 92). Buscando firmar-se no campo sindical, em meados de 2009, a ADPF dá início ao processo de constituição de uma nova entidade: o Sindicato Nacional dos Delegados de Polícia Federal. Segundo Negrini, essa entidade seria uma organização sindical com atuação em todo território nacional, para representar os interesses profissionais e defender os direitos coletivos da categoria profissional dos delegados de polícia Federal. Assim, foi criada a "ADPF Sindical", que existiria concomitantemente com a "ADPF associação”, com os mesmos associados e dirigentes (NEGRINI, 2014, pp. 95-96). Em 2013, o delegado Marcos Leôncio Ribeiro tornou-se o primeiro presidente eleito para a ADPF e a ADPF Sindical (NEGRINI, 2014, pp. 97)

Como elemento de ocupação de posições no campo sindical, em setembro de 2012, o Sindicato dos Policiais Federais no Distrito Federal (SINDIPOL/DF) pleiteou a dissolução da ADPF, argumentando que a entidade estaria impedida de participar da mesa de negociação salarial realizada pelo Ministério do Planejamento. No entanto, decisão da 8ª Vara do Trabalho de Brasília/DF, julgou improcedente o pedido. O Tribunal Regional do Trabalho (TRT/DF), em maio de 2013, confirmou a decisão.

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Já em 2017, a juíza Fabiana Maria Soares, da 11.ª Vara do Trabalho de São Paulo, decidiu que os delegados da Polícia Federal em São Paulo deveriam ser representados pelo Sindicato dos Servidores Públicos Federal do Departamento de Polícia Federal em São Paulo - SINDPOLF/SP (sindicato filiado à FENAPEF), uma vez que é vedada a possibilidade de criação de mais de uma organização sindical da mesma categoria na mesma base territorial. A decisão sustenta que o art. 144, I, §1º, da CF de 1988, estabelece que a Polícia Federal é um órgão permanente e estruturado em carreira, não havendo qualquer divisão em relação aos delegados e os demais servidores públicos da Polícia Federal do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2017).

Apesar dessa decisão, àquela época, a presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia Federal do estado de São Paulo (SindPF/SP), Tânia Fernanda Pereira, afirmou que a entidade recorreria da decisão, pois "a FENAPEF e o SINDPOLF/SP defendem uma pauta reivindicatória completamente oposta aos interesses dos delegados e, por isso, não têm legitimidade para representar a categoria" (TEIXEIRA, 2017).

Também em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF), na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 270/DF (ADPF 270/DF), decidiu no sentido de que a FENAPEF é única entidade sindical representativa da carreira policial federal, uma vez que a ADPF

“não representa uma entidade de classe, mas uma subclasse ou fração de uma classe, porque a associação não alberga uma categoria profissional no seu todo, quer considerada como a dos funcionários da Polícia Federal, quer considerada como a dos Delegados de Polícia, ainda que se lhe reconheça o âmbito nacional” (BRASIL, 2016b). Há ainda que se consignar a existência, na base sindical dos policiais federais, um questionamento a respeito da eficiência do modelo sindical vigente. Esse modelo (baseado na existência de vinte e sete sindicatos e uma federação) é bastante criticado, em razão da falta de uniformidade nos posicionamentos desses diversos sindicatos, que, segundo as vozes críticas, parecem agir como se não houvesse uma coordenação central. Além do efeito negativo de algumas mobilizações sindicais serem desencadeadas isoladamente apenas no âmbito dos Estados, outro forte argumento a sustentar essas críticas são as ações judiciais propostas também isoladamente pelos sindicatos estaduai, sobre temas que afetam toda a categoria, em nível nacional. Assim, não são raras as ocasiões em que policiais de um

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determinado Estado da federação obtêm uma decisão judicial que lhes garanta determinado direito, quando, em outro Estado, a falta da propositura de uma demanda jurídica (ou a propositura que resulte numa decisão judicial desfavorável) provoque situações jurídicas contraditórias dentro de uma mesma categoria funcional.

A crítica sobre o modelo sindical ganha ainda mais corpo pelo fato de as situações narradas no parágrafo anterior não atingirem os delegados, pois estes são representados pela mesma associação (ADPF) que atua de forma centralizada no plano judicial e, por isso, obtêm decisões judiciais com abrangência uniforme em todo o país. Além disso, no plano político e institucional, as suas ações também são centralizadas e, portanto, uniformes.

Embora as características constitutivas de cada uma dessas entidades lhes imponham limitantes jurídicos específicos, ambas disputam posições nos mesmos espaços, seja na defesa dos interesses profissionais de seus filiados, seja na disputa de posições, em outros campos. As duas entidades estabelecem suas alianças políticas, seja com outras entidades de representação profissional, seja na busca por espaço de manifestação no campo da segurança pública, seja no campo político. Assim, a disputa travada no campo sindical dá forma e conteúdo à luta manifestada em outros campos.