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Eis o ponto agudo do estranhamento: não há espaço para a alma na formação de professores (com o de resto, na educação de um m od o geral). A dança circular provoca a possibilidade de tocar o coração, iluminando e florescendo a alma: “tudo é muito mais”. A s danças circulares ligam-se, pois, àquele conjunto de práticas e saberes que foram negados e relegados pela ciência, n o seu afa de tudo classificar e controlar. Com o conteúdo esquecido pelo hom em moderno, condenado ao império da razão, pode ser um dos cam inhos para restabelecer o contato com dim ensões perdidas no mundo do “eu com o consciência”, fundado com a modernidade. Buscamos a inteireza? A palavra divide, o círculo da dança une.

A educação institucional ajuda nesse distanciamento da alma, n o qual, para mim, refletiriam a falta de desejo, a curiosidade apagada, o m edo do desconhecido, a afirmação de certezas, a negação da autoria presentes entre os alunos na universidade. Tais indícios, observados n o m eu contato com diferentes turmas do Curso de Pedagogia, n o m eu ofício de professora, foram já apresentadas com o cenário no primeiro capítulo e, por assim dizer, representam questões responsáveis pelo encaminhamento da pesquisa. São atitudes que, tal qual dissera A ntônio Abujamra a respeito dos pedagogos, poderiam chegar ao absurdo de colocar braços na Vênus de Milo. A intolerância diante da incom pletude da vida é patente. Então não vem os, no âmbito escolar, a persistência dos desenhos mimeografados

e aquela prática da ajeitadinha que o professor dá no desenho torto de uma criança ou, ainda, a escolha dos supostos melhores desenhos para o painel de exposição? H oje, m esm o considerando o avanço das teorias sobre os processos ensino-aprendizagem e sobre o desenvolvimento infantil, facilmente encontramos nas escolas aquelas atitudes com relação ã produção “incom pleta” das crianças.

Durante a pesquisa, esbarrei com um espaço escolar repleto de desenhos m imeografados e produções em série a partir de um m odelo, n o qual nem de longe poderíamos perceber uma criança que pensa e faz18. N o espaço massificado, suprimidos os autores, poderíam os, sim, antever um adulto que também não exerce sua autoria. A o repetir o m odelo das famigeradas lembrancinhas para datas comemorativas (no caso era dia dos pais) e oferecer desenhos prontos para as crianças pintarem, o professor atesta aquela dissociação que venho pontuando entre razão e sensibilidade. Nesta medida, configura-se um apartar-se da alma — a inteireza de ser humano e, assim, de ser professor. C om o poderia um sujeito cindido formar sujeitos inteiros? C om o imaginar um indivíduo que repete formando indivíduos que criam? C om o já vim os, o exemplo é um educador implacável que joga por terra a máxima “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”...

N a tradição pedagógica, inconsciente e aprendizado estão separados, “sempre foram províncias estrangeiras (...) com o se não houvesse uma relação fundamental entre inteligência e inconsciente” (Gambini, 2001, p. 105-6). E inconsciente, cabe lembrar, significa o não-conhecido. E deste campo, o desconhecido, que o analista Roberto Gambini (2001), em seu artigo “Sonhos na escola” oferece-nos chaves preciosas para pensarmos a educação que estam os fazendo e a educação que poderíamos fazer. A com eçar pelo tema anunciado n o título, percebemos a singularidade da discussão proposta. Acom panhando suas idéias ao lo n go do artigo, facilmente som os p egos pela perplexidade ante a essencialidade das questões, também provocações, ali postas. Diria que o autor nos convida a uma viagem, profunda viagem, pelo desconhecido - o não-mapeado, o não-classificado. A o fazê-lo daquele particular lugar, a psicologia analítica, revela o quanto a educação precisa abrir-se a outros cam pos e temas, num tem po em que a unilateralidade das atitudes, a especialidade, as disciplinas isoladas já dão mostras de insuficiência, diante da com plexidade dos fenôm enos educacionais e sociais desse início de século.

...se vier a ocorrer algum salto quântico n o cam po da educação, ele advirá não da elaboração d e m ais uma teoria radonalizante, mas da capacidade de abrirmos as portas da percepção para as experiências acumuladas em cem anos d e psicoterapia e com eçarm os a refletir sobre um a possível articulação entre educação e o s p rocessos que ocorrem n o inconsciente.

O p o n to básico desta idéia é q ue o inconsciente cria a predisposição para aprender. N ã o só para aprender; na verdade, o inconsciente abre ou fecha o próprio a ce sso à experiência da vida” (Gambini, 2001, p.106).

18 Cf. relato d o episódio no capítulo 4: “Sobre um dia em que a dança esbarrou n o espaço...”.

Considerando que a matriz do conhecim ento está localizada no inconsciente, “a educação deixaria de ser meramente um canal de transmissão de inform ações, passando a ser muito mais um processo que favoreceria a individuação do ser hum ano, atuando positivamente sobre a formação da sensibilidade, do imaginário, da dimensão poética e da criatividade” (Gambini, 2001, p.107). O autor chama a atenção para o fato, francamente visível, de que a cultura e a ciência insistem em renegar a dimensão não-racional, relacionada ao sentim ento, à sensibilidade, à imaginação. Sua exposição sobre essa evidência é tão clara, tão incisiva e tão provocativamente inspiradora, que vou reproduzir um longo trecho do artigo:

O que estam os buscando são instituições e práticas que form em , além de cidadãos, indivíduos capazes d e estabelecer uma conexão mais profunda d o que aquela até hoje prevalecente entre a dimensão racional e a não racional, entre pen sam ento e sentim ento, que se lance um a p on te reunindo d ois m un dos cindidos pela ininterrupta evolução da racionalidade a partir d o século XV. N o ssa cultura e nossa hum anidade, n o decorrer da história m oderna, acabaram polarizadas: razão e desrazão, con scien te e inconsciente, corpo e espírito, norm al e anormal... a lista é longa. H á uma d sã o porque ainda vivem os esses p ólos com o entidades antitéticas e portanto separadas. (Gambini, 2001, p.107).

Continuando sua lúcida reflexão, Gambini formula uma pergunta e anuncia possibilidades - utopias, com o ele próprio denomina suas idéias sobre educação: “Será que não caberia à educação, no que lhe com pete, trabalhar esses o p ostos com vistas à sua integração tanto na cultura com o n o indivíduo? Vislumbro, portanto, uma educação que ouça o não racional, que o valorize e estimule tanto quanto ouve e valoriza o racional, o técnico, o lógico e o pragmático” (Gambini, 2001, p.107).

N a trilha anunciada pelo analista, tom o para mim a pergunta formulada, considerando-a mais que isso, uma tradução perfeita de meu incôm odo, minha perplexidade, minha busca no que se refere à formação de professores. Trabalhar aqueles tantos pares de opostos sem com isso desconsiderar um dos term os, alimentar a alma, encontrar-se com a incerteza, navegar no desconhecido, aprender a olhar, sentir e suportar a incom pletude, não seria fundamental e, na m esm a medida urgente, para o educador? Sim. E is também minha utopia. N ã o haveria com o falar de “repertórios artístico-culturais” dos professores, de suas “múltiplas linguagens”, co m o se tem falado, principalmente na Educação Infantil, sem considerar aquele p ólo insistentem ente reprimido na educação: o inconsciente, o não-racional. N e ste caso, eu chamaria de uma “jornada da alma” com o necessidade.

Falar de alma soa quase com o um tabu, algo proibido n o âmbito de uma educação cujo primado da razão é lei. Mas, co m o pretender o contato com as múltiplas linguagens, com a criação, sem considerar a alma?

C om o ser autor sem se desviar da consciência prescritiva, do m odelo, da verdade estabelecida do reino do seguramente conhecido? C om o diria Jung, a criação só p ode ser vivida “quando estamos na alma. (...) Afirmar a realidade da alma, essa perspectiva intermediária entre corpo e espírito, é ser poeta” (Barcellos 2004, p.34). E não é isso que busco — o ser da poesia perdido n o adulto-educador? E preciso, pois, afirmar a realidade desse outro lado, desse território de passagem, terra das travessias.

Há que iluminar a alma com o caminho, pois aí está o lugar da poesia. A ntes da luz, porém , vejamos a sombra, o exílio da alma.