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A Pedagogia e os braços da Vênus de Milo

1 Expressão utilizada por Tuneu, no livro de Ana A n ­ gélica Albano: Tuneu, Tarúla e

outros mestres. São Paulo:Plexus

Editora, 1998, p .58.

N a form ação de professores tenho m e perguntado: de onde e com o vem a sensibilidade? Ela é cultivada, construída, provocada, estimulada, formada? Com o vai adiante? E possível educá-la?

A Griet, da D elft holandesa do com eço desta história, demonstrava muita imaginação e um senso estético quando estava na cozinha de sua casa: ao cortar os legumes para a sopa, por exemplo, utilizava um critério para organizá-los, separando-os conforme suas cores.

E u sempre colocava os legum es num círculo, cada um num a parte, c o m o fatias de torta. H avia cin co fatias: repolho-roxo, cebola, alho-porro, cenoura e nabo. U sei a ponta de uma faca para fazer cada fatia e coloquei um a rodela de cenoura n o centro. (...) A s cores brigam quando ficam lado a lado(...). (Chevalier, 2002, p. 11)

Viria daí sua sensibilidade em acolher a atitude do padeiro e criticar a atitude do mecenas diante das pinturas? Ela ouvia sua própria voz, estava conectada com porções mais profundas do seu ser? Pode ser, mas não só, pois no contexto do romance podem os perceber que a experiência de Griet foi também ampliada e alimentada pelo convívio com o pintor, seu acervo de pinturas, o ateliê, os m odelos, os cenários, os objetos. A criada passou a ser ajudante de Veermer, sua assistente no preparo de tintas e materiais. Era a única pessoa autorizada a entrar no ateliê do artista e olhar suas pinturas em processo. Estar diante da obra, estar “instalado na aura de um artista”1, é processo singular e essencial para o aguçar da sensibilidade, para ver além do exposto. Para alimentar a imaginação, abrindo mais e mais os canais para a contemplação, para a experiência estética, para a produção de sentidos. N ã o tanto para explicar a obra, mas para fazê-la sua, puxando o fio que foi significativo e que poderá levar ao desfiar do novelo. Traçar outros pontos e linhas a ser vividas, preenchidas. N ã o para soltar a língua, com o nos advertia Gombrich, mas para abrir os olhos. O lhos, janelas da alma? Abrir-se para a vida, por inteiro, não só através da janela. G osto e satisfação. Estranhamento e interrogações.

E m se tratando da formação de professores, a abertura para o mundo é um exercício fundamental e freqüentemente esquecido, negligenciado até. Cultivar a dúvida, questionar as certezas atitudes igualmente necessárias. Mas nossa tradição pedagógica é prescritiva, sustentada na certeza da existência de uma verdade única e absoluta. Ser pedagogo é ser especialista em teorias de ensino e aprendizagem — não há lugar para a dúvida e o não- saber.

A o traçar esse perfil do pedagogo e de sua formação, chamo a com panhia de um artista, que se confessa muito incom odado com as pedagogas: A n tô n io Abujamra. Seu program a de entrevistas (transm itido pela Televisão Cultura de São Paulo) é, com o o próprio nom e indica, um

mar de Provocações. N u m programa em que entrevistava uma deputada estadual do Ceará, também pedagoga, foi que ouvi sua crítica: “C om o me irritam as pedagogas, com o elas me incom odam as pedagogas, porque são de uma provocação constante. Elas acham que estão sem pre com a razão; não são capazes de idolatrar a dúvida”. (Abujamra, Programa Provocações N ° 63, s/d ). N a continuidade da entrevista, co m o que explicando à entrevistada de onde vinha a sua irritação com as pedagogas, contou sobre um tem p o em que, trabalhando na produção de um programa infandl, precisava se reunir com as pedagogas (da equipe, segundo entendi). Eis o que aconteceu, eis a provocação:

Essas senhoras me levaram à loucura! Porque elas falavam tanta barbaridade sobre o que é o ensino, com as certezas do que é uma infância, que um dia eu falei assim:

- Eu não vou mais discutir com a senhora. - Por que não?

- Porque se eu trouxer para a senhora a Vênus de Milo, a senhora vai me mandar colocar os braços nela.

E ela respondeu: - Mando mesmo! (Abujamra, s/d).

N este reino de certezas que tem se constituído a Pedagogia, a provocação feita por A n tôn io Abujamra, envolvendo a obra Vênus de M ilo, ajuda- nos a perceber com maior clareza a necessidade de aprofundarmos uma conversa com a arte, o que p ode ser um fecundo espaço de aprendizado da dúvida — essencial para o nascimento/criação de n o vos tempos, em que aspectos negligenciados da vida sejam integrados e ofereçam outras possibilidades para a formação de professores. Possibilidades de encontros com a beleza, que façam acender coisas por dentro.

V oltando à im agem da V ênus de M ilo , na essência da beleza com o qualidade a ser cultivada, lembro da Vênus primeira — A frodite, a Deusa. Sua im agem poderia ser u m contraponto às certezas pedagógicas, capazes de colocar braços naquela escultura? M inha imaginação se alegra com a idéia. G o sto de pensar nessa possibilidade: Afrodite, D eu sa do Am or, da fertilidade e da beleza com o cam inho, inspiração, que direciona à criação - fertilização dos campos da Pedagogia, na formação d e professores.

Adem ais, desconfio que tenha um toque da deusa no percurso que fiz e retratei nesta miscelânea. N ã o é simples sentir e perceber seu toque. Requer abertura e disponibilidade — tal qual para apreciar um a obra de arte. Se busco o ser da poesia dos educadores, se desejo provocar esse ser poético, que com panhia mais divina, sedutora e radiante eu poderia pretender? Talvez tenha sido A frodite que, por interm édio da m in h a orientadora, atuou n o meu cam inho para redefinição da pesquisa, fazendo-m e notar e qualificar uma linguagem que estava escondida em m im : a dança. A deusa dançava! E não era a dança a principal forma de celebração e adoração aos deuses da antiguidade?

p elo s in cô m o d o s e pelas in q u ietações que envolviam a form ação do professor no curso de Pedagogia, retratados nesse capítulo; minha intenção era pesquisar os repertórios artísticos dos professores. Porém, no processo do doutorado, fui descobrindo a linguagem que era a m inha expressão e, assim , fui conduzida para o encontro com as danças dos povos, a tomar contato com o passado, com diferentes tradições que, por sua vez, me fizeram sentir e considerar a linguagem mitológica, a força do mito.

D o espaço acadêmico, racionalista e rígido, desloquei-me para um espaço sagrado, in tu itiv o e flu id o , p resente nas danças circulares sagradas, redescobertas. Uma jornada ao encontro daquelas porções que a todo tem p o fui sinalizando com o ausentes na educação de hoje. As danças circulares sagradas passaram a ser o foco, ou a porta de entrada para o universo que eu buscava: o ser da poesia, perdido no adulto educador.

Senti o toque, um chamam ento. E fui. Lancei-me ao encontro de outras im agens, a estabelecer outras histórias - entre figuras, sábios e loucos, nos passos da dança, em círculo. N o próxim o capítulo falarei dessas histórias, d os meus encontros com as D anças Circulares Sagradas.

Entre figuras, sábios e loucos: