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da dança

Como diante da Figura sentada, é im possível definir o que me aconteceu no encontro com a Dança Circular. O que faz a Dança? O que provoca a Dança?

Com o já indiquei, m inha primeira dança foi Tzadik katamar, uma dança de Israel, mais conhecida entre nós com o “D ança do sábio e do louco”. Por ser a primeira, digo que foi iniciática, pois, na impossibilidade de explicitar “o que faz a dança”, vem a certeza de que ela provoca o corpo, todos os sentidos: pela forma, pela música, pela tradição evocada, pela simbologia presente no gestual. E , conform e o grau de interação e entrega do dançarino, provoca mudança de com portamento, remexe camadas profundas do inconsciente. N esse sentido, talvez eu possa me- reportar ao conceito de iniciação apresentado por Mircea Eliade para quem, filosoficamente, a iniciação equivale a uma “mutação ontológica da condição existencial”: da provação o iniciado emerge totalmente diferente - “tornou-se outro”. (Eliade, 1989, p.137)

A Dança Circular é um convite. Aceitá-lo pressupõe abrir-se ao encontro do outro, do múltiplo no mundo - dentro e fora de si. Essa abertura indica “algo acontecendo” e só ela pode ser o canal para que sejamos tocados. E n o processo que a dança poderia ser jornada de iniciação, de transformação, portanto.

D e m inha parte, quando entrei naquela que foi m inha primeira roda, eu não sabia nada sobre danças, danças circulares, danças circulares sagradas, danças da paz universal. N ão sabia, mas podia intuir que ali havia algo para aprender, algo diferente para descobrir. Antevia uma provocação, ou antes, um diálogo provocativo, com o ambiente acadêmico.

Primeiro foi a forma: dançar em círculo? Fazia-me lembrar o que eu vivenciei com as crianças quando professora da Educação Infantil, e ensinava às alunas n o curso de Pedagogia: a roda com o um ritual; a hora da roda, quando crianças e professores formavam um círculo, de encontro e celebração. O desenho do círculo era forte para m im . Dançar em roda trouxe para a consciência o símbolo.

D ep ois tinha a música. Q ue músicas diferentes! G osto de música, sou curiosa com os ritmos, as melodias, então aquele contato com músicas de diversas partes do mundo me chamou a atenção. Hoje ten h o a impressão que os sons e ritmos estavam lá dentro de m im , que eram músicas conhecidas e ao m esmo tem po desconhecidas, estranhas. N u n ca

ouvira aquelas com posições, m as soavam tão familiares. O nd e estaria o elo? Continuo não sabendo, m as a música na dança me rem eteu a essa familiaridade estranhada de um a música antiga que me habitava.

N o caso de Tzadik katamar: com o e por onde eu poderia m e identificar com uma música de Israel? Eu não sabia nada de Israel, n ão tinha o m enor contato com aquela cultura ou com o judaísmo; coisa alguma, racionalmente, poderia m e chamar para as canções daquele povo. Inclusive dados históricos — tudo vago em mim. Como, então, eu fico sensibilizada, encantada e mobilizada por essa tradição? Sim , porque depois da primeira dança, outras vieram e as danças de Israel tornaram-se as m inhas preferidas. Batem em m im em lugares que nem sei — seja na alegria ou na tristeza que evocam , com ovem .

Falando do contato, ou da falta de contato e conhecim ento, co m e sobre aquela tradição religiosa, lembro dos com entários de Doris L essing, que encontrei n o segundo volum e de sua autobiografia. Contando sobre o processo de criação do seu livro O carnê dourado (de 1962), revela seus cam inhos por territórios com os quais não tomara contato n o curso da vida, interditados pelo materialismo convicto em que se movimentara. A o escrever tal obra, confessa que o m undo que excluíra com o “im possível”, com o “reacionário” (o espiritual, o religioso) tornou-se presente, im pelindo-a a buscar “algo diferente”, a procurar o que lh e havia sido negado e que então se impunha com o necessário: a aproximação e a busca de inform ações sobre as grandes tradições religiosas do Oriente.

Vi-me, de um momento para outro, atônita diante de um fato básico, avassalador — o de que ali estava um mundo de idéias e crenças sobre as quais eu mal ouvira falar e, mais ainda, às quais eu não fora seriamente apresentada. (...) Em parte alguma de nossa educação, de nossa cultura, encontrei a menor alusão às grandes religiões, às grandes tradições espirituais do Oriente.(...) Acho que essa lacuna no seio de nossa educação ... explica por que os jovens criados dentro do intelectualismo espevitado, petulante, convencido e raso do Ocidente não tiveram defesas quando confrontados com a tradição oriental, mesmo com as formas mais deterioradas delas. N os anos 60, que despontavam no horizonte, quantas vezes não vimos jovens altamente cultos sucumbirem, de repente, ao charlatanismo, a gurus e a cultos de toda sorte, para espanto e desespero dos pais. (1998, p.360)

D e m inha parte, nos anos 2000, diria que faz falta n ã o apenas inform ações sobre as religiões orientais, mas, de um m odo geral, sobre diferentes tradições, que não apenas o cristianismo, que reina absoluto na educação, principalmente institucional, dos jovens no Brasil. Para m im , judaísmo, budism o, hinduísm o, islam ism o, era tudo m istério, mundos desconhecidos. Fecham o-nos em nossas crenças, ou na form ação que recebem os e então pouco circula. O u, mais ainda, passamos uma vida negando o espaço sagrado dentro de nós, o m undo espiritual, por certa

adesão ao racionalismo.

A escritora inglesa tam bém fala da existência de um a espécie de “pacote de uma época”, co m o única maneira de ver o mundo. À sua época, o seu “pacote” era o com unism o - “materialismo filosófico, materialismo do D eus-está-m orto, a ciência é rainha” (1998, p.357). Para ir adiante, para retomar seu processo criador, em outro tempo, precisou se desvencilhar das “estruturas m entais do com unism o”, do “pacote”, mergulhando no mar de idéias que corre pelo mundo, inclusive das tradições religiosas.

Através do pensam ento (ou seria sentimento?) de um de seus personagens n o conto A tentação de Jack Orkney, novamente D oris Lessing m e ajuda a dar expressão a um pensam ento que retrata ainda uma época, o meu tempo: “Ser contagiado por D eus, após uma vida inteira de racionalismo esclarecido, seria a mais vergonhosa das capitulações.” (Lessing, 1972; p.279). Todavia, co m o observa Jung, em carta de 1960 a Miguel Serrano: “Som ente nossa consciência imagina que perdeu seus deuses; na realidade, eles estão conservados ali e só necessitam de uma condição geral para ressurgir com maior força.” (Serrano, 1970; p.101).

A D ança Circular trouxe-m e o contato com essa realidade, também desprezada pelo m eu “pacote de época”, que privilegia a razão, o cognitivism o, a ciência e o espírito acadêmico. Também me permitiu o contato com diferentes tradições culturais e religiosas. E m esm o um propósito das D anças Circulares trabalharem a tolerância, pois dançando não se discute idéias, tom a-se uma atitude, coloca-se na roda a diferença, a intolerância, as divergências e fazemo-las rodarem. Isso eu aprendi depois.

A D ança Circular abre um a conexão com o sagrado dentro de nós. N a forma, no gesto, na música som os convidados, com o já falei, a entrar em contato com outras dim ensões de nosso ser - a experiência me mostrou. O sagrado... Im possível de se nomear. “Tudo que vive é sagrado”, diz o poeta Willian Blake, e é a vida mesma que a dança traz - a vida dos ancestrais, dos p o v o s antigos, de diferentes tradições e a nossa própria vida, reinventada n o presente. Com o afirmava antiga inscrição em latim, a qual o psicólogo suíço Cari Gustav Jung gravou sobre a porta de entrada de sua casa, no L ago Küsnacht, V O C A T U S A T Q U E N O N VO C A T U S, D E U S A D E R IT — E vocado ou não, D eu s está presente. (Gaillard, 2003, p .31). Se os deuses estão em nós, ao dançarmos na roda vivificam os o sagrado em nós, conectam os com o centro, alinham os o eixo da vida. N ão é necessário nomear, apenas viver.

A o dançar o passado, honramos a tradição e reconectam os a força dessa tradição em nós. Som os tocados e podem os transformar nosso mundo interno. A o tomar contato com diferentes tradições religiosas, entramos em contato com nossa espiritualidade, talvez perdida, nossa dim ensão interior, energias sutis. E ncontro com a alma, com o desconhecido, o inexplicável. Mais um a vez o poeta:

Temos que aceitar a nossa existência em toda a plenitude possível; tudo, inclusive o inaudito, deve ficar possível dentro dela. N o fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável que se nos pode defrontar. (Rilke, 1998, p.66).

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