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Escrevi em meu caderno de campo:

A tarde fiquei sabendo: 46 alunas matriculadas. Nossa! Será que cabe Registro na sala nova? Será que todas sabem o que e como será a disciplina? 29 de julho 2003 Será que sabem que vão dançar, na roda, de corpo inteiro?

À hora marcada (ou mais ou menos na hora...) foram chegando as alunas: _ Olha, pra entrar tem que tirar o sapato! Era a primeira frase que eu dirigia a elas, antes de qualquer outra fala. Estávamos inaugurando a nova sala da Faculdade de Educação, construída especialmente para dança e vivências corporais, com chão de compensado naval e tudo. Uma lindeza! Um luxo merecido para a formação de professores.

Ao chegarem, o centro já estava demarcado: toalha de renda branca e os quatro elementos dispostos sobre a mesma — logo todos nos sentamos no chão, ao redor. Uma grande roda: hoje vieram 33 pessoas, todas mulheres. Mas, todas queriam estar aí?

Começamos a conversa perguntando:

_ Vocês sabem o conteúdo dessa disciplina? _ Não! O grupo respondeu conjuntamente... _ N ão m esm o?

_ Não! (E então falaram da expectativa, quando solicitaram uma disciplina de “núcleo temático”).

E agora, o que fazer? As alunas pareciam contrariadas...

Tudo bem, percebemos que houve confusão na matrícula — pois como disciplina eletiva, deveria ser apresentado já o programa para as alunas, que inclusive não seriam tantas, no máximo 35 vagas... _ Concretamente, o que fazer? Porque, para dançar, é preciso querer, é d e corpo inteiro, é entrega, é disposição; não p od e ser obrigação, acentuei.

Seguimos a conversa. Um aspecto muito importante levantado pelas alunas diz respeito à arte no curso de Pedagogia. Aliás, à falta de arte. Diz uma aluna: _ O curso é formatado, parece um disquete! Som os acadêm icos, a gente não vive! Tudo (de arte) é só um pouquinho... Precisam os de coisas que mexam com a gente...”.

Foi muita conversa, muito em tom de desabafo das alunas que, parecia, estavam avaliando seu curso. Mediamos, colocamos as condições em que nos encontrávamos e formulamos uma proposta: como era uma disciplina eletiva, quem estivesse se sentindo muito contrariada poderia sair, procurar outra alternativa com a coordenação.

D e modo geral, creio que todas compreenderam a questão e, me pareceu, estavam dispostas a correrem o risco e experimentarem a aventura que propúnhamos, da dança na roda. Então fizemos combinados de organização: horários, dinâmica dos encontros, roupas...

Não estava planejado, mas depois da longa conversa, quando todo o grupo parecia ter desabafado tudo (inclusive suspirando : Ai! Tenho o TCC pra escrever! propus a dança “Coração de C riança". Com o canto e os gestos, o grupo harmonizou, entrou na roda e pareceu acolher o pedido e a invocação daquela criança... O grupo acalmou, começou a entrar em outra sintonia — começou a focar no coração? Acho que sim.

Senti que a cantiga mexeu com todos e reforçou o convite para a roda, para o contato com outras dimensões do nosso ser, nossa inteireza.

Fizemos um intervalo e, na volta, continuamos a pensar na disciplina. Um grupo de alunas ressaltou um ingrediente indispensável para essa proposta: a paixão. _ E preciso se apaixonar pela dança, pela vida. E a paixão que move. Ouvir essas palavras foi muito lindo e significativo para mim. Depois de tudo, estavam reafirmando essa qualidade, um desejo. Senti um ar de abertura para o novo, para a entrega, o que me deixou mais feliz e ajudou a recobrar minha disposição para a dança. Alguém também relacionou com a dança que fizemos _ E o coração que mexe.

Muito bem, mais uma fase passada e vamos dançar! Primeiro dançamos Jacu (América do Sul) e depois, pra fechar, D ança da Cura, E q u ilíb rio e A gradecim eto (Pachelbel Canon). Foram rodas lindas. Harmonia quase total - como grupo acho que foi bem afinada a sintonia. Individualmente, é que percebi uma ou outra pessoa no descompasso. Entretanto, para um primeiro encontro e do jeito que começou, fomos, andamos, avançamos muitos passos.

Ao final, na sala iluminada apenas pela chama da vela no centro da roda, fechávamos o círculo da noite com a promessa de muitas surpresas e muitas vivências — intensas e belas. Internamente, eu senti que estávamos indo, como diz ja cu — “vamos, vamos, minha gente,

é preciso ir”; e como simbolizado em Pachelbel — com equilíbrio e

cura.

PS. A certa altura, olhei pela janela: lá fora, de longe, dois funcionários da Faculdade de Educação, olhavam para nós; através dos vidros olhavam para a roda da dança. Pensei: o que lhes vai à cabeça? Certamente que estavam presenciando (sendo testemunhas!) de algo novo na FE: dança de roda. Não que fosse novo, não pela novidade da dança, mas pela novidade da dança no espaço novo! Foi realmente marcante para todos nós — e pra eles também, creio eu. Uma sala

que não tem carteiras e na qual entramos de pés descalços... Que maravilha poder contar com um espaço tão especial como a nova sala ED 03. Que ela nos acolha e provoque/ testemunhe muitas experiências de criação e vida!

D este com eço, algumas passagens talvez não estejam claras n o relato, dado que são anotações do meu caderno e, a princípio, com o caráter de memória pessoal. A notei sem muitas delongas, pois estive envolvida na cena e, assim, as lacunas da escrita podiam ser com pletadas com a lembrança revisitada. Porém, na medida em que trago a público, constituindo matéria de análise, cabe algum esclarecimento. Primeiro, a respeito da reação contrariada da turma, diante do conteúdo explicitado para a disciplina: o projeto inicial, traçado juntamente com minha orientadora, responsável pela disciplina, era o de oferecer a disciplina com o caráter de eletiva. C om o era clara a intenção de pesquisa, com binamos com a coordenação do curso que, na hora da matrícula, as alunas saberiam o conteúdo: danças circulares, um conteúdo vivencial, ou seja, dançaríamos nas aulas. N ã o foi o que ocorreu.

D e v id o a questões alheias a nossa vontade, a disciplina acabou sendo “eletiva — obrigatória”. Quer dizer, foi oferecida praticamente para todas as formandas daquele semestre, que precisavam integralizar os créditos. Por isso o descontentam ento de algumas alunas (que queriam outro conteúdo e não dança) e, principalmente, o núm ero excessivo de matriculados (inicialmente disponibilizamos apenas 30 vagas). Foram esses os fatos que fizeram com que n o sso com eço fosse tumultuado. O relato traça um ponto de partida, ao m esm o tempo marco da formação de um grupo na roda.